O ano é 2002. Por dezenas de bancadas espalhadas pelo país fora, um cântico sobe mais alto que os outros, alimentado por uma sensação ímpar de júbilo: Só eu sei porque não fico em casa. As gargantas que o debitam têm um nome, Juve Leo, a fiel claque do Sporting Clube de Portugal, que se encontra prestes a celebrar mais um título nacional para a sua equipa, que durante a época foi voando pelas asas de Mário Jardel e João Vieira Pinto. O cântico é deles e assim será até que o futebol se extinga. Mas a música... Isso é outra conversa.

Começa-se este texto com futebol porque, segundo quem privou de perto com os Clash, provavelmente este texto não existiria sem o mais belo jogo de todos. Em 1979, enquanto iam disparando maquetas nos estúdios Vanilla, a banda britânica aproveitava os momentos de pausa para uma futebolada entre si, membros da equipa, amigos e pessoal da imprensa e crianças locais. Chutão para aqui, para ali, e essas pausas transformaram-se numa espécie de ritual que, conta Marcus Gray no ótimo livro “Route 19 Revisited: The Clash and the Making of London Calling”, «foram uma contribuição importante para o ambiente [jovial] dessas sessões».

A culpa de o álbum existir, explica Johnny Green, road manager dos Clash, nesse mesmo livro é dessas partidas. «Parece pateta dizê-lo, mas acho que ajudaram a construir um espírito de equipa», afima. O guitarrista Mick Jones, um dos cérebros por detrás das composições da banda – o outro era o letrista e vocalista Joe Strummer, numa parceria não muito distinta da que existia entre Lennon e McCartney e Morrissey e Marr – diria mais tarde que o futebol fez com que os Clash «tocassem como equipa». Strummer partilhava da mesma opinião: o futebol «era uma espécie de aquecimento» para as sessões de gravação.

O supracitado livro nota como as personalidades de cada membro dos Clash se espelhavam na sua forma de jogar: Mick Jones era o fuço da equipa, sempre a pedir a bola e à procura de fintar todos quantos lhe aparecessem à frente, ao passo que Strummer preferia ficar atrás, à defesa – porque era um romântico incurável, como todos os grandes letristas. Ambos – evidentemente – eram fãs de futebol e, como qualquer rapazinho que mais tarde descobre o rock n' roll, tiveram no jogo a sua primeira grande paixão: Jones era do Queens Park Rangers, e Strummer um fanático do Chelsea (numa altura em que os blues ainda penavam na segunda divisão).

No entanto, tanto um como o outro estariam longe de imaginar que um dos temas aos quais deram vida em “London Calling” seria apropriado, mais de 20 anos depois, pela claque mais antiga de Portugal. Ou talvez não, talvez isso tudo estivesse escrito nas estrelas: se “London Calling” surgiu por causa do futebol, nada mais apropriado que o próprio futebol o homenageie, o inscreva nos anais da cultura, como sucedeu já com tantos e tantos temas retirados à pop ('Can't Take My Eyes Off You', de Frankie Valli; 'Seven Nation Army', dos White Stripes; ou, mais recentemente, 'This Girl', do DJ e produtor francês Kungs, só para dar alguns exemplos).

Certo: 'Wrong 'Em Boyo', o tema de que se fala e que originou só eu sei..., não é um original dos Clash. É, isso sim, da autoria de Clive Alphonso, compositor jamaicano dos anos 60 que, nessa década, o “emprestou” ao grupo vocal The Rulers – sobre os quais, ainda hoje, pouco ou nada se sabe. Mas foram os britânicos quem o deram a conhecer a uma miríade de fãs de rock n' roll, sobretudo ao rock n' roll que foi feito no período punk, o qual os Clash, com “London Calling”, estavam prestes a abandonar.

Uma traição ao punk

Não é como se os britânicos alguma vez tivessem deixado de ser punks, pelo menos em espírito. Musicalmente, a conversa é outra. A sua estreia com 'White Riot' parecia auspiciosa para todos aqueles que gostavam de três acordes e a verdade e pouco ou nada mais: fanáticos da velocidade, da simplicidade, milícias montadas contra os excessos do rock progressivo e da ostentação pop dos anos 70. O lado B desse single, '1977', dava o mote: nada de Elvis, Beatles ou Rolling Stones a partir daqui. A fúria sobrepunha-se ao passado.

créditos: LEON NEAL / AFP

Pelo que “London Calling” foi visto por muitos como uma traição. Os Clash abandonavam a fórmula magicada pelos Ramones e expandiam os seus horizontes rumo a outras paragens sonoras: R&B, reggae, ska, pop solarenga e o bom e velho rock n' roll norte-americano, juntamente com o papá blues. Tal como os seus antepassados de há séculos, os Clash procuravam a América, sobretudo a que ao longo da sua vida foram mitificando através da música, dos filmes, da arte. Para os punks, fãs de uma banda que meses antes havia escrito um tema com o título 'I'm So Bored With the USA', isto não era menos que uma afronta.

Porém, é mais que natural que os Clash tenham optado, em “London Calling”, por alargar o seu espetro musical. O punk a isso obrigava: tudo era permitido e nada era proibido, tirando a ortodoxia e o conservadorismo (muitos não entenderam a mensagem e continuaram a emular os Ramones, o que também não trouxe mal nenhum ao mundo). E, o choque: apesar do que cantavam em '1977', os membros dos Clash eram, de facto, apreciadores de todos esses artistas. Uma capa como a de “London Calling” não surge por acaso...

O lettering da capa, sabemo-lo bem, foi “roubado” ao primeiro disco de Elvis Presley. A fotografia é que acabou por se tornar ainda mais icónica que a tirada ao “Rei do Rock” e incluída nesse mesmo disco. No final de um concerto no Palladium, em Nova Iorque, o baixista Paul Simonon decidiu, sabe-se lá porquê (já muitas histórias se contaram, desde alguma frustração com o público ali presente, até à ideia de que Paul só queria impressionar uma miúda pela qual estava embevecido), atirar com o seu instrumento contra o chão, com toda a força. O bicho não sobreviveu – e é hoje peça de museu – mas o registo desse momento, captado pela fotógrafa Pennie Smith, ganhou a imortalidade.

Tal como o arremesso do baixo não foi um ato planeado (ou será que foi?), a fotografia também não foi planeada: foi captada no último instante e quase sem querer, ao mesmo tempo que Smith tentava fugir a um destino bem mais cruel, que era o de levar com um baixo de alguns quilogramas mesmo em cheio na testa. «O meu dedo limitou-se a carregar no botão», contou ao jornal The Guardian, anos mais tarde. Contra os seus desejos (porque a fotografia está desfocada e não há maior perfeccionista que um fotógrafo), esse registo a preto e branco foi escolhido para a imagem de capa de “London Calling”, sendo votado em 2002, pela revista Q, como a melhor fotografia de sempre da história do rock.

(A título de curiosidade, no mesmo instante que partiu o baixo, Paul Simonon partiu também o seu relógio, o qual ofereceu depois a Pennie Smith. A hora do óbito do quarto-cordas ainda lá se encontra marcada: 21h50.)

De olhos postos na América

Se há Elvis em “London Calling”, há também a mitologia rock n' roll que este ajudou a criar, sem a qual a América pop não existiria hoje em dia. O gatilho foi a primeira viagem dos Clash ao país, em 1978, para misturar “Give 'Em Enough Rope”, mal amado segundo álbum. De punks com esgar irritado e alfinetes no casaco de cabedal, passaram a greasers bem vestidos e resplandecendo brilhantina. Uma viagem que moldou a banda, afirma Marcus Gray: «eles queriam reintroduzir, na América, um estilo rock que esta havia inventado mas posto de parte pelos Aerosmith, Journey e Foreigner», também conhecidas como “as bandas rock das quais até a tua mãe gosta”. «Eles conseguiam ver a América como esta tinha surgido aos olhos dos pioneiros do automóvel e da locomotiva, nos anos pré- e do rock n' roll», a América como descrita no seminal “Pela Estrada Fora”, de Jack Kerouac.

A tramóia adensa-se: se o passado não interessava, porquê esta viragem? Talvez os Clash, principalmente Joe Strummer e Mick Jones, se tenham reconciliado com a sua adolescência, no sentido em que esta foi passada a escutar o rock que vinha do outro lado do Atlântico. O que não significava que não houvesse, em tudo isto, uma pontinha de ironia, para não dizer hipocrisia: em 1979, ano de “London Calling”, uma das coisas que mais irritava Strummer era o revivalismo mod. «Estou farto de ver pessoas a vasculhar o passado», dizia então. «É estúpido. Está toda a gente à procura do ontem porque o amanhã é tão merdoso».

Mesmo que “London Calling” acene diretamente ao período que os Clash nunca viveram, também despreza ligeiramente aquele pelo qual passaram. É como cantam no tema-título: phony Beatlemania has bitten the dust..., um sinal de que, apesar de tudo, o punk ainda estava bem presente nas suas vidas. Até porque as suas escolhas sonoras tinham muito que ver com o sentimento punk de se sentirem à margem da sociedade: o reggae não era “elite”, o ska não era elite, e mesmo o rock dos primórdios era coisa de jovens delinquentes e não de estudantes bem vestidos calçando sapatinho de vela.

O título, do disco e da canção, é que não poderia ser mais britânico: foi resgatado à frase que a BBC utilizava, durante a II Grande Guerra, para dar início às suas transmissões fora do territónio inglês, this is London Calling. A sua temática, 40 anos depois, mantém-se moderna, descrevendo uma situação apocalíptica provocada pelo Homem, pela guerra, pela crise e pelo sentimento de abandono que permeia as classes mais desfavorecidas. Uma agonia à qual acrescentam algum humor, bastante negro: «Londres está a afogar-se e eu vivo junto ao rio»..., como quem ri na cara da morte. E outra curiosidade: os “uivos” que se escutam em 'London Calling' canção são, de facto, Joe Strummer a tentar emular as gaivotas que ouvia junto ao rio, em dias de tempestade no mar...

Mesmo ressoando 40 anos depois, “London Calling” é sobretudo um produto do seu tempo, lançado praticamente no início do período Thatcher no Reino Unido e do período Reagan nos Estados Unidos. As canções abordam temas tão militantemente urbanos e das classes médias-baixas como o avanço frenético do capitalismo selvagem ('Clampdown'), a sensação de anomia ('Lost In the Supermarket') ou a violência policial ('The Guns of Brixton'). A ideologia punk está lá, mesmo que o som não esteja assim tanto. E, como mencionam em 'Death or Glory', através de alegorias várias, a ideia de “se venderem” ao mainstream continuava anátema: «quem fornica freiras acaba na Igreja»...

Tivesse este álbum sido pensado já nos anos 80, quando a new wave e as reaganomics começaram a tomar as rédeas do destino do mundo, e se calhar não teria tido o mesmo impacto. Lançado exatamente na altura certa – antes do descalabro –, a sua mensagem continua a ser total: isto está mau e nós merecemos melhor. Ao longo dos últimos 40 anos, esta foi sendo ouvida e replicada vezes sem conta, o que inevitavelmente coloca “London Calling” num daqueles pedestais raros, atribuídos não só pelos críticos como pelos fãs: o de “melhor álbum de sempre”, lado a lado com outras peças históricas do punk, do prog, do rock n' roll em geral.

A sua influência também é notória: se, certo dia, Chuck D afirmou que os Public Enemy queriam «ser o equivalente rap dos Clash», aquando do seu lançamento houve mais quem estivesse atento, como Bruce Springsteen (o eterno operário do rock norte-americano), os U2 ou até mesmo Bob Dylan, que chegou a ver a banda numa das suas incursões pelos EUA. Fatboy Slim aproveitou a (soberba) linha de baixo de 'The Guns of Brixton' para compor um dos seus primeiros êxitos. Os Manic Street Preachers aprenderam a lição dada, e fizeram carreira aliando a música à política. E “London Calling” não influenciou apenas a música – faça-se, por exemplo, o apanhado de todos os estabelecimentos que existem no mundo com o nome “London Calling” (e há um em Almada). Quatro décadas depois, os Clash ainda chamam por nós.