A vida do maestro João Carlos Martins já deu várias biografias, alguns documentários e, agora, um filme: “João, o Maestro”. Uma história contada por Mauro Lima, um drama com toques de humor como só o grande cinema consegue. "Gostou do filme?", pergunta-me, sorridente, João Carlos Martins. O espanto não podia ser maior, afinal, qual a probabilidade? Estou em São Paulo, uma cidade com 12 milhões de habitantes, mais do que toda a população de Portugal. Por curiosidade decidi fazer uma reportagem sobre a Portuguesa, por oportunidade fui ver o filme “João, o Maestro” e, por absoluta coincidência, cruzo-me com João Carlos Martins num dos 10 mil centros comerciais existentes na cidade.

Ali está ele, 77 anos, camiseta preta com o escudo da Portuguesa, as mãos cobertas com aquela espécie de luvas de skate, uma protecção que já se tornou na sua segunda pele. "Gosto muito de Portugal. O meu pai era de Braga", diz. Como se eu não soubesse.

Foi por causa do pai, José, que João se interessou pela música. E pela Portuguesa também. Filho de uma família pobre, aos dez anos José já trabalhava numa gráfica. É fascinado pelo piano, mas um acidente decepa-lhe o polegar e inviabiliza um futuro na área. Emigra e transfere o sonho para o filho. Para os filhos, na verdade, porque um dos irmãos de João, José Eduardo, também é pianista.

Mas foi João Carlos que se destacou desde cedo e conquistou fama internacional. Tinha oito ano quando o pai o inscreveu num concurso para interpretar Bach. E venceu. É então que vai estudar para o Liceu Pasteur, onde tem aulas com o conceituado professor russo, José Kliass.

Tudo parecia perfeito

Ganha o concurso da Sociedade Brito de São Petersburgo e daí para a glória é um pulo. É acolhido pela crítica mundial e aos 20 anos estreia no Carnegie Hall, com o alto patrocínio de Eleanor Roosevelt. Toca com as maiores orquestras norte-americanas e grava a obra completa de Bach para piano. Inaugura o Glenn Gould Memorial, em Toronto.

Parecia tudo perfeito. Tem apenas 25 anos quando se dá o acidente que acaba com a sua carreira. A Portuguesa está em Central Park, Nova Iorque. João Carlos Martins também. E é convidado para treinar com a equipa. Aceita e, num passe que não é de mágica, cai e perfura o braço direito, rasgando o nervo ulnar, que provoca a atrofia dos dedos.

Primeiro pára, depois recomeça a tocar, com muita dificuldade. Os concertos internacionais são interrompidos, vem a fisioterapia, o regresso aos palcos e nova aclamação do público. Mas João vai desenvolvendo distúrbios dos ossos e dos músculos devido ao esforço que exige tocar. E o pior acontece a 20 de Maio de 1995, em Sófia, na Bulgária: durante um assalto é atacado com uma barra de ferro e sofre um traumatismo craniano, com sequelas neurológicas ao nível do braço direito. A fala também é afectada.

Em 2001 grava o álbum “Só para Mão Esquerda”, escrito por Maurice Ravel para Paul Wittgenstein, que perdeu o braço direito na Primeira Guerra Mundial. É submetido a diversas cirurgias e tudo parece perdido. Um dia, "sonhei que tocava piano com Eleazar de Carvalho e que ele me dizia que ia me ensinar a reger", conta.

Memoriza uma média de 5 mil páginas de música por ano

Foi assim que João Carlos Martins se transformou num grande maestro. Assim, ponto e vírgula: é que por causa das dificuldades de coordenação dos movimentos dos dedos, João não consegue segurar a batuta ou virar as páginas das partituras. Por isso, memoriza uma média de 5 mil páginas de música por ano.

Em 2007, a Associação Portuguesa de Desportos convida João Carlos para tocar o Hino Nacional do Brasil no último jogo da temporada, no estádio Dr. Oswaldo Teixeira Duarte, no Canindé, quando a Lusa voltava para a Série A do Brasileirão. Um clube assim não pode acabar.

No ano passado, o maestro, que realiza na Faculdade de Música da Amazónia um programa de introdução à música para jovens carenciados, foi um dos carregadores da tocha olímpica.