Este é o primeiro romance que publica (pela Companhia das Letras), embora já tenha publicado contos e escreva ficção e poesia “desde muito novo”, em paralelo com o estudo de sociologia e, posteriormente, com o seu trabalho, contou o autor em entrevista à Lusa, durante o festival literário que decorre na Póvoa de Varzim.

A publicação de um romance é “um passo novo”, que enche o escritor "de expectativa e de curiosidade”.

“Outro passo novo também, que é muito evidente no livro, é que eu escrevi com alguma ancoragem na minha investigação social, portanto, é de facto um cruzamento destas minhas duas atividades, que resulta num trabalho de ficção, mas que tem por trás essa substância de investigação”.

Manuel Abrantes é sociólogo com experiência no estudo do trabalho, género, migrações, participação política e desigualdades sociais, e um doutoramento que teve na base um estudo sobre o trabalho doméstico remunerado.

“Na terra dos outros” é um romance que aponta o foco na direção dos invisíveis, fazendo uma crónica de costumes e de episódios da vida privada, a partir da história de uma rapariga de aldeia que vai para a capital como criada de servir, com 11 anos.

"Na Terra dos Outros". Do campo para a cidade, Maria do Carmo é criada para todo o serviço
"Na Terra dos Outros". Do campo para a cidade, Maria do Carmo é criada para todo o serviço
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A história começa no período final do Estado Novo e acompanha a vida desta mulher, Maria do Carmo, que, como milhares de outras naquela altura, foi forçada a deixar para trás a família e o quotidiano severo no campo, e partiu para a cidade sozinha, em busca de futuro.

Maria do Carmo representa as “criadas para todo o serviço”, que se ocupavam do que conviesse aos patrões, recebendo, na maior parte dos casos, pouco mais do que uma cama e comida escassa, sem folgas, férias ou licença para sair.

Entretanto, dá-se a revolução do 25 de Abril, que traz grandes mudanças, mas pouco retorno: a protagonista vai trabalhar “a dias”, casa-se e tem filhos, emigra e volta, e recomeça de novo.

Para a criação desta história, “houve um momento muito importante, que foi quando eu, já há mais de 10 anos, por volta de 2011 e 2012, conduzi um conjunto de entrevistas a mulheres que trabalhavam como empregadas domésticas, no âmbito de um projeto de investigação sobre o serviço doméstico, e nessas entrevistas eu percebi que gostava de contar aquelas histórias, gostava de lhes pegar do ponto de vista ficcional, e dar-lhes vida no papel”, contou.

O que o motivou a dar o passo para lançar o romance, em vez de o guardar para si, como fez sempre, foi o sentir que “estava a dizer qualquer coisa nova, qualquer coisa reveladora que era importante dizer, que era importante contar”.

Foram várias tentativas, nunca estava satisfeito com o que escrevia, com o desenho das personagens, até que um dia conseguiu “agarrar esta mulher, naquele ponto em que o livro começa, em que ela vai servir para Lisboa aos 11 anos de idade”.

“Porque foi algo que aconteceu a várias das mulheres que eu entrevistei e que me marcou muito. Tive curiosidade de saber que história seria esta que nós poderíamos contar, pondo-nos na pele desta rapariga e vivendo esta ida para servir. Tudo do ponto de vista dela: o crescer e descobrir o mundo, descobrir quem ela era e descobrir o que é que se passava no mundo, a partir daquele lugar, que era o lugar da criada do serviço doméstico”.

Esse “lugar” - destaca o escritor - é “um lugar de submissão, mas também de gratidão obrigatória, de dívida para com aquela família que a recebe, independentemente de como a tratam”.

A parte da narrativa centrada no período em que a protagonista emigra tem igualmente por base as histórias de várias entrevistadas com experiências de emigração.

Manuel Abrantes confessa que como escritor foi difícil trabalhar uma protagonista mulher, pôr-se na sua pele, com o maior rigor possível.

Para tal, socorreu-se de outra investigação “mais literária”, que passou por ler textos nos quais acreditava poder encontrar o que procurava.

Foi o caso de Maria Teresa Horta, textos sobretudo dos anos 1970 e dos anos 1980, “às vezes um pouco esquecidos”, os primeiros romances de Lídia Jorge, e textos até anteriores, por exemplo, da Marguerite Duras, dos anos 1960 e 1970.

“Elas agarravam um certo nervo da experiência, do que era ser mulher nesta época e isso interessava-me”, contou.

“Eu estava à procura do ângulo certo para contar a história e nisso ajudou-me muito estas autoras que escreveram muito sobre a experiência de mulheres a partir de dentro, mais preocupadas em contar o que se passou do que propriamente em fazer uma reflexão, uma contemplação, que deixam para o leitor. Foi isso que eu tentei fazer”, acrescentou.

A desigualdade social, de classe e de género, e a naturalidade com que era encarada é um aspeto muito marcante na história, porque foi algo que “impressionou” o autor, durante as entrevistas.

No livro, esse tipo de cenário está espelhado num episódio em que Maria do Carmo vai trabalhar para casa de um casal com duas filhas de idades muito próximas da dela, mas que são tratadas como se tivessem idades muito diferentes, porque Maria do Carmo, aos 15 anos, é uma mulher adulta e uma empregada doméstica.

O título “Na terra dos outros” tem um sentido amplo, não apenas geográfico, mas também intimo, porque Maria do Carmo, à semelhança de tantas destas mulheres, muda constantemente de lugar, não por vontade própria, mas para obedecer a ordens ou para fugir de alguma coisa.

*Por Ana Leiria, da agência Lusa, presente no Correntes d’Escritas