I

Choveu a manhã inteira. Quando já não sobrava água para cair, o vento fez dispersar as nuvens e abriu clareiras de céu límpido acima das montanhas. Frias e húmidas, as rajadas sacudiam os ramos e baralhavam os sons. Aqui o rumor da folhagem, acolá balidos, algures um grito de criança, rasgões no silêncio do inverno logo cerzidos por dedos hábeis. Ao domingo, era escasso o movimento naqueles trilhos sem nome, ladeados por casebres de pedra escura. Erguido entre árvores e arbustos, declives e sombras, o povoado parecia longe do resto do mundo, esquecido como um objeto sem importância que se perde e desaparece até da memória.

À porta de um dos casebres estava a rapariga. Aguardava de olhos postos ora no fundo do trilho, ora no céu incerto. Era tenso o seu silêncio, ansiosa a sua imobilidade. Nem razão existiria para ela observar com tamanha insistência uma paisagem que conhecia como a palma da mão. A terra que tantas vezes pisara descalça, no entanto, afigurava-se-lhe naquele dia perigosa, era terra suja e encharcada, hostil aos sapatos que lhe apertavam os pés. Os rostos à janela tinham algo de ominoso; a rapariga fingia não ver.

Lutava contra a fadiga. Dormira pouco nas últimas noites, dormira com fome e com medo. De nada servia lembrar a si mesma que não podia adivinhar o que estava para acontecer: a ignorância perturbava-a mais ainda. Encolhia-se na ombreira da porta e cruzava os braços para se resguardar do frio.

Chamava-se Maria do Carmo Gouveia. Era pequena, mesmo para os onze anos que contava de idade. Tinha um corpo delgado, braços mais rápidos que fortes. Os olhos muito escuros, quase pretos, vigiavam as imediações com uma demora que havia quem tomasse por insolência. A mãe afiançava que insolente ela não era, pelo contrário, tratava-se de uma rapariga lesta e obediente, aprende rápido, aliás, já sabe cuidar de uma casa melhor que muitas mulheres feitas. Maria do Carmo duvidava das suas próprias aptidões. Se ouvia aludir ao futuro, limitava-se a assentir com a cabeça. Os planos apenas se tinham tornado claros quando a mãe lhe anunciara a data da partida, estavam as duas a lavar roupa na cozinha. Então, Maria do Carmo zangara-se. Gritara que não iria. Gritara que não lhe tinham perguntado nada e que, caso lhe tivessem perguntado, ela teria dito que não, nem morta, muito menos com a Dona Benedita, uma velha horrível que ela vira duas ou três vezes. Com a fúria, arremessara o coto de sabão que segurava. A mãe bradara que não queria conversas e Carmo que apanhasse o sabão ou aquilo acabava mal. Esperando à porta, Carmo recordava os dias entretanto decorridos, quando começara a perceber o que a distinguia dos irmãos. Agora mesmo ouvia-os berrar e choramingar dentro de casa, dois ou três passos atrás de si, e já não lhes acudia, já não os mandava calar, nada. Era uma rapariga que partia. Estava sozinha.

De atalaia no degrau, foi a primeira a vislumbrar o automóvel. O veículo de chapa azul avançou devagar pelo trilho lamacento até se deter junto de Maria do Carmo. Apesar de toda a antecipação, o momento não teve solenidade. Os vizinhos testemunharam com discrição a subida da rapariga para o automóvel, levando consigo nada mais que a bolsa de palha com uma muda de roupa. Os bancos dianteiros, ocupava-os um casal com cabelos grisalhos e indumentária respeitável, de apelidos Lemos de Almeida. A velha dispensou a Maria do Carmo uma mirada rápida sobre o ombro; rápidas foram também as palavras que trocou, pela vidraça aberta, com a mãe da rapariga, que viera à porta de casa e não encontrava forma de se exprimir senão repetindo que estava muito agra- decida, muito agradecida. Quieta no banco de trás, Carmo evitou encarar a mãe e os irmãos que espreitavam da soleira. Teve pena da mãe mas também a odiou. Não faz mal, eu não me importo de ir, pensou, sem saber se procurava com isso consolar a mãe ou vingar-se dela. Depois o automóvel pôs-se de novo em movimento.

O velho conduzia com ambas as mãos no volante, atento aos valados e às silvas, às bifurcações mal discerníveis por entre a vegetação. A velha tinha as mãos caídas no regaço e voltava o rosto para um lado e para o outro; Carmo espiava-lhe o perfil sardento e desassossegado. Lá fora, encontrava-se ainda o mundo reconhecível: os muros das quintas, a azinhaga com o seu empedrado irregular e, um pouco adiante, o asfalto da estrada nacional — finalmente, disse a velha, a minha coluna não aguentava mais solavancos. O marido queixava-se da lama e dos cardos, o automóvel ficara com certeza num estado deplorável. Acerca daquela mulher e daquele homem, era pouco o que Carmo sabia. Sabia que eram ricos. Que tinham uma grande propriedade, com pinhais, olivais e pomares, na qual a mãe de Carmo trabalhava com frequência. Que na vila mais próxima, chamada Sertã, tinham casas e negócios, mas moravam há muito tempo em Lisboa. Sabia que devia tratar a velha por Minha Senhora e o velho por Senhor Doutor. Mais não sabia.

Pedro Moura e Susa Monteiro juntam-se ao É Desta Que Leio Isto no próximo encontro, marcado para dia 21 de fevereiro, uma quarta-feira, pelas 21h00. Consigo trazem  "Mensagem", de Fernando Pessoa, numa edição da RTP/Levoir.

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Começou a sentir-se nauseada à medida que o automóvel descia a montanha, vencendo curva após curva como se progredisse em círculos. Tentou aferrar-se ao céu vazio de nuvens, às copas das árvores que balouçavam exceto nas encostas atingidas pelos últimos incêndios, nas quais só res- tavam correntezas de troncos nus e enegrecidos. Eis que se divisava lá em baixo a mancha de água, a curvatura do Zêzere. O automóvel acelerava, abrandava, acelerava; até que, sem aviso, travou a fundo e parou.

— Não posso crer — disse Benedita Lemos de Almeida.

Estava uma cabra postada no asfalto. Exibia o dorso alvo a meio da via, impedindo a passagem em qualquer dos sentidos. Esboçava um passo, logo o suspendia com placidez, alheada do incómodo que causava. A perplexidade de Benedita converteu-se em indignação. A que ponto chega a irresponsabilidade, questionou ela, quanta ignorância, santo Deus! O marido premiu a buzina uma vez, duas vezes. Carmo preparava-se para dizer algo — o quê?, não fazia ideia — quando a cabra alçou os chifres e pareceu localizar a origem do estridor. Sem pressa, o animal deslocou-se o suficiente para libertar uma das faixas de rodagem.

— Vai com cautela — disse Benedita ao marido.

O automóvel contornou a cabra e voltou a ganhar velocidade.

— Muito perigoso — disse o velho.

— Coitado do bicho — observou Benedita. — Deve ter- -se perdido do rebanho.

Não haveria durante a viagem outro incidente que viesse a perdurar com tanta nitidez na memória de Carmo. Na maior parte do tempo, imperou o silêncio, de tal modo que se ouviam respirar uns aos outros. Benedita disse à rapariga que podia dormir. Carmo, porém, receava emitir algum ruído durante o sono. Receava também que o suor das suas costas manchasse os estofos do automóvel. As náuseas eram outro problema. Sentia a cabeça pesada, a boca seca; desagradava- -lhe o odor a borracha e a gasolina, assim como o que se desprendia do seu próprio vestuário, enxugado dentro de casa. De ambos os lados da estrada, os campos prolongavam-se a perder de vista, as aldeias apareciam e desapareciam num pestanejar. Carmo fechou os olhos, fingiu dormir. As imagens que lhe acudiram à mente carregavam tanto de familiar quanto de bizarro. Reconheceu a mãe, a casa — reconheceu a mãe e os irmãos na penumbra da casa em que tinham habitado sempre, a vozearia dos mais pequenos, o alvoroço incessante, com a peculiar diferença de que ela mesma não figurava nesse quadro de todos os dias. A rapidez com que a mudança se dera! Ainda na véspera acompanhara a mãe ao poço. Ainda na véspera arrancara couves da terra, acendera o lume, cozera couves, varrera o chão. E recuando um pouco — quinze, vinte dias — evocava a ocasião em que, à socapa, experimentara alcandorar-se na bicicleta do irmão mais velho. Com os pés longe do solo e as virilhas fincadas no metal do quadro, lograra a proeza de serpentear por instantes no baldio atrás de casa. O equilíbrio foi breve: o guiador ferrugento da pasteleira escapara-lhe das mãos e ela caíra desamparada num monte de silvas. A sua preocupação tinha sido restituir a bicicleta ao local de onde a subtraíra. O irmão, contudo, descobrira o motivo do tornozelo torcido e do braço em sangue, e castigara Carmo à pancada. A mãe perdera a paciência e esbofeteara ambos. Nada disso impedira Carmo de urdir em segredo uma nova saída com a pasteleira assim que surgisse a oportunidade.

A oportunidade não surgira a tempo. Sentada no automóvel, Carmo trazia o tornozelo ainda dorido da queda no baldio. Cismava nessas experiências recentes, as obrigações detestáveis, os prazeres vividos às escondidas e sem pedir licença, pois pedir licença significava denunciar-se de antemão, da mesma maneira que falar dos irmãos mortos significava chamar a morte. Ao contemplar o dia seguinte, perguntou-se quantos quartos teria de limpar, para quantas pessoas teria de cozinhar, quantas crianças, quantas roupas. Os acontecimentos de maior magnitude que no inverno de 1971 ocorriam em Lisboa não constituíam para ela assunto.

Enquanto o automóvel seguia pela estrada, a mulher agradecida sentava-se num banco da cozinha e pensava. Naquele casebre dera ela à luz os sete filhos. Carmo tinha sido a quarta a nascer, ocupando a posição aziaga ou abençoada entre os dois falecidos, Deus os guarde, murmurou a mulher. Em silêncio, admitiu que Carmo lhe faria falta. Certo era que o marido mandava dinheiro a espaços cada vez maiores. Ou não o ganhava, ou tinha em França despesas inconfessa- das, uma mulher porventura — antes isso que uma doença. O filho mais velho, com catorze anos, trabalhava à jorna como a mãe. A filha mais velha estava a cargo da madrinha em Coimbra. E a mais nova já tinha idade para substituir Carmo em muitas tarefas. Esta família não pede esmola, orgulhava-se ela de dizer; e fez questão de o repetir em voz alta, embora os filhos estivessem demasiado longe para escutar. Seria mais rigoroso dizer que só de vez em quando a família pedia esmola. Sorte têm as raparigas de ir, que Deus as proteja e não as mande de volta. A dor que rodeara a partida da filha começava a dar lugar a uma espécie de alívio, quase esperança.

II

Os Lemos de Almeida residiam num segundo piso da Rua Pascoal de Melo. O apartamento era atravessado por um corredor longo, com uma passadeira sobre o soalho e portas de ambos os lados. Num extremo encontrava-se a cozinha e a sala de jantar, bem como a casa de banho de serviço e o quarto destinado a Maria do Carmo. Este quarto consistia num com- partimento destituído de janelas, com espaço à justa para a cama de ferro e o armário. Acolhera em tempos idos outras raparigas. Depois, tornara-se uma arrecadação. Agora era de novo um quarto e apresentava até, pregada na parede à cabeceira da cama, uma pequena estatueta de Nossa Senhora em baquelite.

No extremo oposto do corredor, os aposentos dos Lemos de Almeida confinavam com o quarto de visitas e com o salão, uma assoalhada de janelas voltadas para a rua, com mobília de carvalho e cerejeira que reluzia ao sol. As peças de prata, porcelana ou estanho excediam largamente as estantes e gavetas disponíveis. A maior parte das peças acabava acomodada, por falta de melhor alternativa, no quarto de visitas — denominação enganadora, já que as visitas eram raras e nunca pernoitavam.

Tudo isso Carmo entendeu com mais facilidade do que as regras da luz elétrica e da água canalizada. Tinha de tomar banho de dois em dois dias, mas devia rodar a torneira só pela metade e esfregar-se até arranhar a pele. Uma vez, alertada por Benedita de que deixara um fio de água a correr, retorquiu que a torneira estava perra: apanhou uma chapada para aprender a pedir perdão. De pouco lhe serviam as instruções que trouxera da mãe. Não comas nada que não te tenham dado permissão para comer. Obedece sempre à Dona Benedita. Assim fazia Carmo, seguindo a patroa pelo apartamento e perdendo-se nas ordens repletas de pormenores e palavras incompreensíveis. Se lhe acontecia ficar uns passos para trás, logo ouvia a repreensão: não tenho o dia todo, estás à espera de quê? Às vezes caminhava tão perto da patroa que embatia nas costas dela ou pisava-lhe um calcanhar. Havia preceitos fundamentais que a mãe desconhecia ou que se esquecera de lhe transmitir. Nunca interromper o discurso da patroa, nunca argumentar, nunca responder, salvo se lhe tivesse sido colocada uma pergunta — e dependia da pergunta, visto que algumas não consentiam resposta. Pedir licença para entrar ou sair da divisão. Sobretudo, nunca rir fosse do que fosse. Bastava um sorriso para Benedita suspeitar de que estava a ser alvo de troça. Agarrando a rapariga pelo pulso, reiterava regras elementares ou lançava-se numa diatribe sobre os prejuízos da arrogância e da estupidez. Desesperava com as hesitações em tarefas rudimentares como limpar o pó às molduras, lavar os vidros, esfregar a louça sanitária. Depois, exausta, pare- cia olvidar a existência de Carmo a ponto de se surpreender quando de repente a via atrás de si.

Livro: "Na Terra dos Outros"

Autor: Manuel Abrantes

Editora: Companhia das Letras

Data de Lançamento: 19 de fevereiro de 2024

Preço: € 17,45

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— Santo Deus, esta rapariga é uma sombra! — E dispensava-a entre suspiros: — Deixa-me em paz um bocadinho, vai para o quarto.

Todos os dias da semana, Henrique Lemos de Almeida saía para o emprego às oito da manhã; e às nove aparecia uma criada que dava pelo nome de São, batizada embora Maria da Conceição. Era uma mulher de meia-idade, corpulenta, de tez clara e braços vigorosos. Logo que chegava, vestia a farda e precipitava-se sobre a lida da casa. Cumpria as obrigações com uma desenvoltura extraordinária, de tal modo que protestava se a patroa decretasse qualquer alteração pontual. Aos olhos de São, era óbvio que se começava por abrir as janelas de par em par, não importava se chovia ou quão forte soprava a corrente de ar. Os quartos e as salas tinham de estar limpos e arrumados antes de se passar à cozinha. Na cozinha, o azedume entre ela e Benedita encontrava solo fértil para medrar. Desentendiam-se a respeito de comidas e roupas, de utensílios e procedimentos. Carmo assistia à escalada das quezílias num silêncio trémulo, receando a culminação no confronto físico. Isso não sucedia, claro. A vontade de Benedita prevalecia sempre, mesmo que precisasse de levar São às lágrimas para a vergar. Os incidentes, ainda assim, deixavam máculas na patroa. Consumida pelas inaptidões de Carmo e pelas teimosias de São, encerrava-se no quarto, queixando-se de enxaquecas ou dores de estômago, ou enfiava um casaco e saía de casa para tratar dos seus afazeres sem indicar hora de regresso.

Nas ausências da patroa, Carmo tornava-se a sombra de São. A segurança de que a rapariga então beneficiava dependia dos humores imprevisíveis da tutora. Em poucos minutos, São podia transitar de um estado de espírito enérgico e protetor para um outro, revoltado e angustiado. Assim variava também a postura com que avaliava o desempenho de Carmo. Em todo o caso, possuía as reservas suficientes de paciência para mostrar — São não ensinava com palavras, mas exemplificando uma e outra vez — como se usava a máquina de lavar e como se pendurava a roupa no estendal; como se punha a mesa; como se polia as pratas; como se manobrava o fogão a gás, ainda que neste quadrante proibisse Carmo de tomar a iniciativa. A confeção da comida era uma das maiores fontes de descontentamento de Benedita, que aproveitava todas as oportunidades para manifestar o desejo de atribuir a Maria do Carmo a responsabilidade de cozinhar assim que esta dominasse os princípios essenciais. Carmo tinha a certeza de que jamais corresponderia às expectativas. Se nem São o lograva, com tantos anos de experiência! O grau de cozedura nunca estava certo, o doce ou o salgado nunca o eram na medida pretendida, a temperatura e a consistência nunca atingiam a perfeição. Benedita provava o resultado final com o cenho já franzido de deceção. Recapitulava vezes sem conta todos os passos da receita, sublinhando aqueles que teriam sido negligenciados. Durante o jantar, lamentava-se ao marido da incapacidade das criadas para entenderem e corrigirem os erros que cometiam. Numa ocasião, desagradado com a perspetiva de suportar mais um relatório exaustivo da esposa, Henrique Lemos de Almeida perguntou-lhe de chofre porque não resolvia ela o problema arranjando novas criadas. Carmo, da cozinha, ouviu a resposta da patroa na sala de jantar:

— Para quê? Ia ser mais do mesmo. Antigamente sim, havia criadas boas e espertas. Hoje em dia, uma pessoa dá-se por agradecida se não roubarem.

De algum modo, São aprendera a conviver com a hostilidade. Talvez não concedesse à patroa tanta importância quanto as suas reações impulsivas sugeriam. Com as faces ainda ruborizadas de uma desavença, São era capaz de se alegrar se ouvia chilrear no pátio das traseiras: corria à janela da marquise para esfarelar uma côdea de pão seco, cujas miga- lhas logo atraíam uma abundância de pássaros.

— Este é uma pomba, aquele é uma rola — explicava a Carmo. — São muito diferentes, vês? Olha as pombinhas, estão ali todas. Psiu-psiu, venham cá. Venham cá ao pãozinho.

Foi após um desses momentos de júbilo com os pássaros que, voltando ambas à cozinha, Carmo formulou a interrogação:

— Eles não têm filhos?

— É a nossa sorte. — São sussurrou, embora a patroa estivesse fora de casa. — Se tivessem filhos, a esta hora também já tinham netos e havia de ser uma família inteira a chagar-nos o juízo.

Quanto a São, tinha marido e três filhos. Além do serviço em casa dos Lemos de Almeida, fazia limpezas para outros patrões aos sábados. No resto do tempo, era ao seu lar que atendia. Um dos filhos já lhe dera netos. Outro estava em Angola: a fotografia que ela trazia no porta-moedas mostrava um jovem circunspecto com a farda malhada do exército, boné na cabeça, botas de cabedal. Dizia-se que Angola era melhor do que a Guiné. No seu íntimo, São tinha dúvidas de que fizesse sentido a ida do rapaz para a guerra. Custava-lhe a crer que não houvesse outras maneiras de defender a pátria, que não houvesse soldados mais preparados para a frente de combate. Estes pensamentos, guardava-os para si; quem os conhecesse poderia papagueá-los aos ouvidos errados. Por cá, até ver, temos paz — era tudo o que ela dizia sobre o assunto diante de Carmo. Mas relatava com prazer as atribulações da sua grande família, dispersa pelos quatro cantos do país até ao Ultramar. Também inquiria Carmo acerca da família desta. A rapariga tentava responder, soçobrava; repetia, com longas pausas de permeio, os nomes e as idades dos irmãos, sem mencionar os que tinham morrido. Mordia o lábio para se impedir de chorar.

— Tens muitas saudades, não tens, pequenina? — Logo São acrescentava: — É normal. Depois habituas-te.

Por mais penosa que fosse a solidão, pior era uma tarde passada com a patroa diante da tábua de engomar. Em bom rigor, passar a roupa a ferro constituía a única tarefa na qual Benedita Lemos de Almeida se revelava compassiva com a inabilidade. Dedicava um ror de tempo a cada peça de vestuário; explicava minuciosamente como fazer as dobras e os vincos. Estacava atrás de Maria do Carmo e, pousando as mãos sobre as mãos dela, demonstrava-lhe como conduzir o ferro. Quando cabia à rapariga fazê-lo sem ajuda, no entanto, o receio de provocar danos no tecido enfraquecia o gesto e as rugas duplicavam-se e aprofundavam-se, ao invés de desaparecerem. Muito depois de São partir rumo à vida que levava lá fora, Carmo permanecia na cozinha a praticar o ferro, esgotada da jornada interminável, com o crepúsculo a anunciar-se demasiado devagar pelas vidraças da marquise.

Saía de casa uma vez por semana, ao domingo de manhã. Para o efeito, vestia uma saia e uma blusa providenciadas por Benedita, malhas largas e escuras, mais ásperas que a farda. Na rua, mantinha-se um passo atrás dos patrões, atenta para prevenir que o intervalo se encurtasse ou ampliasse. A caminhada terminava à porta da igreja: entravam e sentavam-se. Durante o ofício religioso, Carmo fitava o padre e interrogava- -se acerca dos devotos de rostos compenetrados. Seriam genuínos todos aqueles semblantes sóbrios e humildes? Sabia que o seu próprio comportamento tinha algo de dissimulado: imitava os demais quando se levantavam, quando se sentavam, quando repetiam as palavras do padre — nada compreendia. Estava sempre pronta a esclarecer, a quem lhe perguntasse, que a mãe a levara a batizar com seis meses de idade, mas ninguém mostrava interesse nos seus antecedentes. Ninguém dava sequer sinal de notar a presença dela.

Em contrapartida, os patrões detinham-se à saída da igreja e ao longo da calçada para cordiais intercâmbios com vizinhos. A um passo de distância, cabisbaixa, Carmo espreitava os movimentos ao redor, os ritmos da cidade. Descobria assim que também ali as estações do ano seguiam o seu curso e que também ali existiam bicicletas. No regresso a casa, se Henrique Lemos de Almeida parava numa esplanada a desfrutar do sol ou a discutir a temporada do futebol com conhecidos, Benedita seguia direita ao lar com a rapariga, para garantir que o almoço não se atrasava.

Por altura do verão, já Carmo enviara duas notas de cem escudos à mãe e tinha uma noção das rotinas com que contar. Pressentia, ao entardecer, o instante em que a chave rodaria na fechadura da porta. Após entrar no apartamento, Henrique Lemos de Almeida largaria a pasta e o chapéu onde calhasse e iria sentar-se no salão a folhear o jornal e a beber um uísque. A esposa desaprovava o álcool, motivo pelo qual Henrique aludia ao uísque dizendo que ia tomar o seu chazinho ou pedindo à rapariga que lhe trouxesse gelo para o refresco. Carmo preparava e servia o jantar sob a vigilância de Benedita. Depois o casal instalava-se no sofá a ver televisão e Carmo comia as sobras da refeição antes de lavar e arrumar a louça. Empenhava-se em trabalhar sem ruído. Constatara por outro lado que, se fosse demasiado silenciosa, não tardava a ser procurada por Benedita, desconfiada de que a rapariga estivesse a preguiçar. O truque consistia em produzir, a espaços, uma prova subtil de atividade — a porta de um armário que se fechava, o tilintar de tachos, um alguidar a pousar no ladrilho.

Dizia as orações da noite ajoelhada no seu quarto com a patroa. Pai nosso que estais no Céu, tende piedade de nós. Perdoai os nossos pecados. Velai pelas nossas famílias, pelos pobres e desamparados, pelos soldados na guerra, pelos velhos e pelas crianças. As palavras que corriam límpidas na voz de Benedita baralhavam-se na voz de Carmo. A rapariga entrelaçava os dedos com força, na ânsia de terminar a oração. Ao adormecer, caía com frequência em sonhos agitados e funestos. Presença regular nos seus trilhos oníricos era a da cabra que um dia, na montanha, estorvara a passagem do automóvel no qual Carmo viajava. Não que a cabra mantivesse traços constantes. Às vezes era branca, às vezes preta; ora com chifres, ora de cabeça lisa; e transfigurava-se no decorrer de um mesmo sonho, convertendo-se numa fera disforme, misto de caprino e canídeo, da qual Carmo fugia correndo descalça pela estrada até o animal lhe abocanhar uma coxa. Noutras noites, descobria-se a rastejar na terra molhada e sentia-se livre, revigorada; depois ouvia o estrépito de pedras a ruir e compreendia em pânico que estava a ficar soterrada nos escombros de um edifício. Acordava desorientada no escuro. Demorava a identificar o colchão que tinha sob o corpo, o rumor mecânico do frigorífico lá fora. Os passos no corredor sobressaltavam-na — tratava-se tão-só de Benedita, que padecia de insónias. Se os passos se acercavam do quarto de Carmo, ela encolhia-se na cama e rezava para que a porta não se abrisse. Deus devia ouvir, pois a porta nunca se abriu a hora tão tardia. O susto, no entanto, tornava impossível readormecer na penumbra da qual se destacavam já com demasiada clareza os contornos da porta, do armário e da Nossa Senhora de baquelite.

Havia criadas que passavam muitos anos sem voltar à terra de onde tinham partido. Maria do Carmo devia contentar-se por não ser esse o seu caso, lembrava-lhe Benedita. Como os Lemos de Almeida provinham da mesma região que ela e faziam questão de lá ir pelo menos duas vezes ao ano, concediam então à rapariga uns dias com a família. De facto, Benedita não era natural daquela zona, mas da Beira Litoral, raízes das quais nunca falava, tomando por seus os parentes do marido.

As estadas de Carmo na montanha, ainda que breves, eram extenuantes. A paisagem surpreendia-a pela capacidade de se manter intacta: encostas íngremes, céu imenso, casebres toscos entre o arvoredo. Os badalos de um rebanho ou o cheiro da terra molhada podiam levá-la às lágrimas. Estranhava também o cansaço tremendo que a acometia ao ajudar a mãe nas tarefas usuais. As noites de inverno eram muito frias, a casa cheia de odores pesados e incomodativos; na enxerga partilhada com a mãe, Carmo tossia e doía-lhe o peito; ou era um dos irmãos que tossia toda a noite. Os irmãos, esses, cresciam e mudavam. Falavam alto demais, envolviam-se em brigas, praguejavam como loucos. Na véspera do regresso a Lisboa, Carmo caía num torpor inexplicável. Temia que os patrões não aparecessem para a levar. Que faria então? Como o justificaria à mãe? Não descansava até a chapa azul do automóvel se anunciar ao fundo do trilho.

Só o irmão mais velho lhe fazia perguntas sobre Lisboa. Amílcar Gouveia era um rapaz de estatura mediana, com um rosto que a idade transformava sem rigor nas proporções: a testa saliente, as orelhas pequenas, as faces magríssimas nas quais despontava uma barba rala. Nada contava dos seus próprios movimentos, mas mostrava-se altivo e autoritário como se todos lhe devessem satisfações. Queria saber como obtivera Carmo as roupas que trazia — arranjou-mas a Dona Benedita — e como era a cidade — grande — e como se vivia por lá — ao que ela se dispunha a rela- tar todas as suas atividades em casa dos patrões, bem como as manias de São e as idas à missa. O irmão não estava interessado em tais minudências, o que pretendia era averiguar possibilidades de ganha-pão. A esse respeito, não tinha Carmo como elucidá-lo. Percebeu que Amílcar, aos quinze anos, esperava de si mesmo as decisões de um homem adulto. Tanto lhe fazia partir para Lisboa, para França ou para qualquer outro lugar. Que tinha aquela terra para lhe dar? Trabalho de sol a sol por uma paga miserável. Depois, chegada a altura, também ele receberia o postal do exército, como acontecera a rapazes que conhecia, e ala para a guerra. Carmo tentou apaziguá-lo:

— Se calhar não é tão mau como pensas. Dão-te uma farda. Dão-te botas.

— És mesmo estúpida — vociferou Amílcar. — Sabes o que há na guerra? Há pistolas e canhões e bombas. Que diferença vai fazer um par de botas quando me estraçalharem de alto a baixo?

Após essa conversa, a imagem de corpos decepados e ensanguentados começou a atravessar de quando em quando o espírito de Carmo. Era até concebível que um dia marchassem soldados na Avenida Almirante Reis, que rebentassem bombas no Mercado de Arroios — ela já ia, aos poucos, acompanhando Benedita Lemos de Almeida em périplos pelo bairro. Todas aquelas fachadas nobres, todos aqueles olhares que se cruzavam sem palavras, tudo aquilo inspirava à rapariga curiosidade e receio. Desconfortável na farda de ir à rua, carregava os sacos de compras e escutava os monólogos da patroa entre o mercado e o posto do correio, entre a retrosaria e a drogaria. Não havia preço que Benedita considerasse razoável; regateava como se fizesse um favor aos comerciantes, como se repusesse ordem e dignidade no caos. Os artigos pareciam-lhe sempre de má qualidade, mesmo após os descontos negociados. Na sua opinião, as montras das lojas abarrotavam de futilidades, nada mais que iscos para extorquir uma clientela que se comprazia em exibir as suas aquisições, sintoma de uma época em que o valor de uma pessoa se media pelos seus gastos, pela opulência do vestuário, pela pretensa elegância de um penteado que não era sequer bonito, mas que interessava isso quando o objetivo era apregoar aos quatro ventos que tinha sido feito num dos salões da moda? O pior, concluía Benedita, era o modo perverso como a vaidade dos fregueses e a ganância dos vendedores se alimentavam mutuamente, uma aparente vitória de todos, na verdade perdiam todos, não só eles mas também nós, os poucos que ainda recordavam a primazia da espiritualidade, a espiritualidade autêntica, não aquela de pacotilha, não aquela que tantos declaravam para aliviar a consciência sem qualquer tradução nos seus comportamentos efetivos. E os jovens — era com os jovens que Benedita mais se preocupava! Quantos não havia por aí a querer apenas desfrutar da vida, contaminados pelo egoísmo. Neste aspeto era indiferente que viessem da província ou da cidade, que tivessem crescido na miséria ou no maior dos luxos. Por isso era tão importante, dizia Benedita, que Maria do Carmo soubesse separar o trigo do joio. Que reconhecesse as armadilhas e os bons exemplos. Que entendesse por que razão algumas criadas eram castiga- das com severidade e outras tratadas como filhas.

Carmo sentia-se pouco tentada pelos desvarios de algumas mulheres que serviam no mesmo prédio, entre os quais avultava o de se encontrarem com homens ao domingo. Também essas criadas vinham da província; os seus sotaques eram tão bizarros quanto as suas ideias. Havia uma que afirmava não ser criada mas sim empregada, sem adiantar por- menores quanto à distinção. Exceto pelas alusões da patroa, os pensamentos de Carmo não se detinham em aspetos do foro moral. Tentava tão-só discernir a ligação entre as ruas e os quarteirões — se eu seguisse por ali, ia dar à Alameda Dom Afonso Henriques; se dobrasse aquela esquina, subia a Morais Soares. Estas anotações mentais, fazia-as em segredo e sem saber porquê: de imediato teria rejeitado qualquer oportunidade de uma expedição por conta própria.

Quando Benedita ia às compras com o marido, Carmo vigiava os ponteiros do relógio de parede na cozinha — à hora marcada teria de ajudar a transportar os sacos escadas acima. Descia antes da hora, menos por zelo do que pelo prazer de aguardar à porta do prédio. Aqueles minutos de espera permitiam-lhe observar o vaivém na rua. Desejava que o tempo se suspendesse, que o momento durasse um pouco mais, um pouco mais. Acocorava-se para brindar com uma carícia o cão que outra criada passeava pela trela. Erguendo-se de novo, a sua atenção era cativada primeiro pelo autocarro que se afastava com estrépito, depois pela mulher a fumar diante da leitaria, depois ainda pelo mendigo a pedir esmola de chapéu em punho, o qual por sua vez dava lugar às raparigas que passavam de bicicleta com risadas joviais. As raparigas das risadas, Carmo já sabia a que famílias pertenciam. Não deixava de se impressionar com a felicidade que elas sempre aparentavam, raparigas bem vestidas, com corpos ágeis e imaculados, que a faziam lembrar-se dos seus joelhos macerados de esfregar o soalho. Certa vez, uma dessas raparigas — menina ainda, com uns dez anos de idade — levava a bicicleta pela mão e notou que Carmo a fitava.

— Queres andar na minha bicicleta?

Carmo queria. Disse que não.

— Tu é que sabes — disse a menina, antes de se afastar.

Corria o verão de 1972 quando Benedita Lemos de Almeida se sentiu impelida a tomar medidas. Outras mulheres permitiriam que o dinheiro lhes fugisse como areia por entre os dedos; ela não, nunca. Reconhecia para consigo que era fácil atribuir as culpas ao aumento dos preços e às despesas do marido, problemas que ela não podia resolver. Os gastos da casa, pelo contrário, estavam sob a sua alçada. Escandalizava-se só de pensar que todos os meses pagava a São quase um conto de reis. A uma incompetente sem tino! Considerando aliás que Maria do Carmo realizava uma parte crescente do trabalho, a diferença de ordenados tornara-se desproporcionada. A rapariga tinha a seu favor a idade e o temperamento, além do que se economizava com as regalias do alojamento e da alimentação. Entendeu assim Benedita que devia prestar-se a certos investimentos, o primeiro dos quais consistiu em levar Maria do Carmo ao dentista. O segundo seria mais ambicioso. Estavam na cozinha, às sete horas da manhã; o calendário marcava 30 de setembro, data em que Carmo completava treze anos. A rapariga não escondeu a admiração quando Benedita lhe depositou nas mãos um livro.

— É um presente: a Santa Bíblia.

E viu a rapariga folhear com timidez as páginas iniciais, conseguindo, se tanto, soletrar sílabas avulsas.

— Vais aprender a ler como deve ser.

— Vou à escola?

— Talvez, um dia. — Benedita perdoou a impertinência. Teria de ensinar a rapariga a pensar antes de falar. — Para já, tens é de te aplicar.

Tornou-se uma prática frequente. Ao entardecer, Benedita lia em voz alta um excerto da Bíblia. Depois Carmo sentava-se à mesa da cozinha e, muito devagar, copiava esse trecho para um caderno de folhas pautadas. A operação tinha um cariz sobretudo físico, do mesmo modo que aconteceria ao copiar uma ilustração, até porque os caracteres impressos no livro tinham uma forma diferente dos que Carmo recordava da escola. Apercebia-se da generosidade de Benedita, que a tomara a seu cargo garantindo-lhe teto e pão; que avaliava os gatafunhos no caderno e corrigia a curva de uma minúscula ou de uma vírgula, que mandava replicar letras difíceis ao longo de folhas inteiras. Só raramente Carmo colhia algum sentido do texto. Mais depressa os dedos doridos perdiam o controlo da caneta, os borrões de tinta aumentando com o cansaço. As têmporas latejavam-lhe ao servir o jantar. Arrumava a cozinha sem qualquer lembrança do episódio religioso sobre o qual estivera debruçada ao entardecer. Torcia para que Benedita não lhe pedisse que o reconstituísse de memória, como às vezes sucedia antes das orações da noite.

Carmo estava convencida de que os exercícios à mesa da cozinha eram infrutíferos. O único sinal de que talvez surtissem efeito manifestou-se por casualidade no decorrer da lida diária. Por regra, o patrão colocava numa cesta de vime os jornais que Carmo e São podiam usar para limpezas ou para acender a lareira. O propósito original dos grandes pedaços de papel evidenciou-se quando Carmo, sem deliberação, começou a associar entre si as palavras que compunham os títulos das notícias. Dispondo de tempo, conseguia mesmo aferir se a notícia tratava de política ou de futebol e a que assunto respeitava a fotografia em destaque. São interessava-se pouco por tais averiguações, na melhor das hipóteses apontava para a fotografia e declarava categoricamente:

— É o Marcello Caetano. — Embora reservasse os encómios para o governante anterior: — O Salazar é que era!

O porte daquele senhor... A preocupação dele com as pessoas... Eu vi o Salazar uma vez: vi-o em carne e osso, numa procissão!

Quanto à morte do ídolo, São desconfiava da versão oficial. Quais causas naturais? Sempre tinham andado muitos terroristas à solta.

— Olha, terroristas outra vez — disse ela um dia, aludindo à folha de jornal com a qual se preparava para esfregar a grelha do forno.

Na fotografia em causa, Carmo viu militares a posar para a câmara com uma expressão afável, militares desarmados que sorriam. Esperou que São terminasse a limpeza da grelha e atirasse a folha de jornal para o lixo. Recuperou do cesto a folha amarfanhada, suja de fuligem.

— Não são terroristas — disse, após decifrar a legenda por baixo da imagem. — São soldados nossos.

— Soldados nossos? Estás a ler mal. — Por azar, São estava de péssimo humor e nem admitiu a contestação de Carmo, rematando com brutalidade: — Ler é uma coisa, inventar é outra.

As palavras deixaram Carmo atordoada. Enervava-se amiúde com a conduta intempestiva de São, com as tiradas agressivas às quais não ousava responder. Nesse aspeto, São tinha muito em comum com Benedita, que se esquecia de ordens que dera e acabava a ralhar com as criadas quando estas se limitavam a executá-las. Nem valia a pena recordar a instrução de partida, como Carmo sabia pelas bofetadas que levara ao tentar. Só a si mesma podia responsabilizar pelas suas dores.

Tudo conduziu ao acidente da camisa. Carmo já engomava com razoável destreza, de maneira que pousou o ferro por um momento para pôr ao lume a água na qual cozer o arroz do jantar. Tarde demais se deu conta da posição em que largara o ferro: sobre uma camisa de algodão por passar. E, infortúnio dos infortúnios, tinha de ser uma das camisas que Benedita mais estimava. A marca negra e fumegante no tecido branco fez disparar a pulsação da rapariga. Deambulou frenética pela cozinha. Acabou por esconder a camisa no seu quarto, enfiando-a entre o estrado da cama e o colchão. Tentou comportar-se com naturalidade ao longo do serão. No sábado seguinte teve a sorte de ficar em casa sozinha por umas horas. Saiu com a camisa entrouxada dentro do casaco e, numa viela sem movimento, deitou-a num contentor de lixo. No estado de agitação em que se encontrava, não teve sequer consciência de que era a primeira vez que caminhava sozinha nas ruas da capital.

A solução não lhe trouxe serenidade, até porque Benedita cedo notou a ausência no guarda-roupa. Questionada, Carmo garantiu que não se lembrava de ter visto a camisa nos últimos tempos. A resposta soou mais firme do que ela própria esperara. Ainda assim, a patroa fez questão de lhe vasculhar o quarto para tirar o caso a limpo. Afastada a primeira hipótese, as suspeitas recaíram sobre São. Esta, a princípio, não levou a sério a acusação. Riu-se ao assina- lar o óbvio, para que havia ela de querer a camisa se vestia três medidas acima da patroa? Mas Benedita teimava que ela podia ter furtado a camisa para a vender ou para a entregar a uma parente.

— Não pense que sou cega, bem a vejo cobiçar as minhas coisas!

— A cobiçar? — São gritava, com o rosto inchado de raiva. — De si só tenho mesmo pena!

A discussão prolongou-se numa espiral de rancores e recriminações. No fim do mês, Benedita subtraiu o valor da camisa ao ordenado de São. As duas mulheres não dirigiram a palavra uma à outra durante muitos dias. A tensão desses dias foi tão agoniante para Carmo quanto a calamidade que estivera na sua génese. Nunca revelou o ocorrido.