Poderíamos nem sequer ali estar. Ali, rodeados de «familiares e amigos», a expressão que Michael Bublé utilizou para se referir ao seu público («'fã' vem de 'fanático', e vocês não são fanáticos», raciocinou). Ali, numa noite de segunda-feira, tendo de acordar cedo para laborar no dia seguinte. Ali, com bilhetes caríssimos (palavras dele, uma vez mais), que não foram proibitivos quanto baste para impedir a Altice Arena de encher. Ali, com futebol e debates políticos à mesma hora. Ali, depois de uma hora encafuados no trânsito de fim de tarde.
Poderíamos não estar, mas estivemos. Porque ele, Bublé, também esteve, sinal de que o universo foi generoso para consigo. Passamos a explicar: em 2016, o seu filho mais velho, Noah, viu-se a braços com um diagnóstico de cancro. E se isto já seria extremamente difícil para um adulto, imagine-se para uma criança de apenas três anos e, por arrasto, para alguém que para além de ser adulto também é pai, também sofre por causa dessa ignóbil doença, também sente o seu mundo desabar em seu redor. O cancro do filho levou o cantor canadiano a cancelar uma digressão e a voltar imediatamente para casa, para passar mais tempo com o primeiro enquanto este fosse sujeito a quimioterapia. Nenhuma nota musical saiu entretanto da sua boca; havia demasiadas lágrimas a encobri-las.
Pouco tempo depois, um raio de esperança voltou a iluminar os caminhos de Michael Bublé. A colocá-lo no caminho do amor e da boa disposição, os mesmos que demonstrou na passada noite em Lisboa para mais uma etapa da tour “An Evening With Michael Bublé”, de apoio ao seu último álbum, “Love”, de 2018. Independentemente daquilo que se possa achar da música de Michael Bublé ou da sua capacidade interpretativa, há que parabenizá-lo por isto: o homem esteve perto de perder a sua humanidade, perto de abandonar a sua arte, mas conseguiu – felizmente! – voltar ao ativo. E este “felizmente!” nada tem a ver com a música em si; tem a ver, apenas e só, com o facto de sabermos que, hoje, o seu filho está bem. Há quem diga que uma criança quando morre vira anjo. Uma criança que sobreviva é um Éden inteiro.
Mas falemos da música. O cantor canadiano é um homem do jazz, no seu formato mais tradicional, o da canção propriamente dita; tudo o que venha de Sinatra para cima, seja o bebop ou a revolução free jazz, não entrará de todo no seu repertório. É uma sonoridade clássica, própria da Hollywood antiga, própria do preto e branco e do fumo sensual de um cabaré. Êxitos pop, para ele, são todos aqueles que alimentaram imaginações e discussões há bem mais que meio século. Como 'Feeling Good', tema imortalizado por Nina Simone, com o qual abre o concerto e que ainda assim foi um dos mais “recentes” que interpretou (excluindo os seus próprios originais, naturalmente).
Acompanhado por orquestra e secção de sopros, Bublé procurou sobretudo mostrar aos presentes o porquê de amar tanto esta música – um amor que nasceu com o seu avô, que lhe foi mostrando os temas e os intérpretes que interessam ouvir, conforme foi explicando ao longo da noite. A sua voz não é absolutamente extraordinária (“coesa” e “competente” talvez sejam adjetivos melhores) e os arranjos empregues não fugiram muito às regras do jogo, mas há algo que o destaca enquanto entertainer: o seu fabuloso sentido de humor. Tão sagaz, que quase diríamos estar na presença de um inglês e não de um canadiano.
Citemos alguns exemplos: «obrigado por terem gasto o vosso dinheiro em bilhetes caros» (gargalhada geral), «quantos turistas estão cá hoje? Eu sei que os ingleses adoram Portugal, topo-os sempre, mal o sol surge tiram a camisola e vê-se que são branquíssimos» (idem), «eu prometi romance mas isto soou a homicídio» (ibidem, após um arranjo orquestral tenso de 'My Funny Valentine'), «esta é dedicada aos casais mas também aos solteiros: é a vossa oportunidade para safarem um ménage a trois» (ibidem, antes de 'When I Fall In Love'). Ou, ainda, a troca de palavras entre cantor e seu guitarrista, o brasileiro Marcel Camargo:
MC, em português: É muito bom estar aqui a falar a nossa língua...
MB, em inglês: Que é que lhes disseste?
MC, em inglês: Disse-lhes que eras um idiota.
A comicidade deu lugar à ternura, pouco depois, quando Bublé chama uma convidada especial: Chloe, filha do guitarrista supracitado, e que não deverá ter mais do que cinco anos. Nas últimas etapas da digressão, este seria o momento em que o cantor pediria a alguém do público para que arriscasse cantar; com Chloe, interpretou 'You've Got a Friend In Me', que os portugueses conhecerão melhor enquanto 'Sou Teu Amigo, Sim', na voz de Miguel Ângelo e na banda-sonora do mágico “Toy Story”. E tudo isto fez sentido: a ternura é um ramo do amor, e esta só poderia ser uma noite de amor. «Não estou cá pelo dinheiro ou pelo ego, mas para mostrar amor», afirmou a dada altura.
Por entre standards e originais seus, Bublé foi dando ao público o que havia prometido: a sensação de que o seu dinheiro havia sido bem empregue. Mostrando-se sempre grato não só por ali estarmos, mas também por ele próprio ali estar, não deixou de confraternizar com o público, agarrando mãos, metendo-se com mulheres, tirando selfies com telemóveis alheios. Perto do final, 'Just a Gigolo' trouxe o swing necessário, e 'You Can Never Tell', canção do rockeiro Chuck Berry, teve até direito ao famoso duck walk. Uma versão trovejante de 'Cry Me a River' pôs termo ao espetáculo, antes de um encore mais lento de três canções, a última das quais 'Always on My Mind', tema de Johnny Cristopher, Mark James e Wayne Carson que Elvis Presley melhorou e os Pet Shop Boys aperfeiçoaram. «Vocês mudaram as nossas vidas», concluiu, referindo-se ao público e acrescentando a sua big band a este círculo de amor. Bem, Michael Bublé também terá mudado as nossas. Quanto mais não seja por nos fazer ver que, afinal, existe esperança após um abismo.
Comentários