LONDRES, 1938

1

«As nossas ações acompanham-nos por mais longo que seja o caminho e o que fomos faz de nós o que somos.»

George Eliot, Middlemarch

Naquela manhã, Gertie chegou cedo à livraria. Nos últimos cinco dias não dormira muito. Era uma chatice, mas as coisas são como são. Hemingway, o meigo labrador amarelo, estava ao seu lado, como já era habitual. Desde que se juntara ao pessoal da livraria há cerca de quatro anos que o cão se tornara numa espécie de celebridade local. Gertie percebeu que ele tinha a capacidade de arrancar um sorriso até ao mais austero dos clientes e eram várias as mães que se sabia que faziam desvios nas suas idas às compras para passarem na livraria e deixar que os filhos afagassem a cabeça peluda do cão.

Desde que Harry e Gertie tinham aberto as portas da Livraria Bingham, já há tantos anos, que pouco mudara na cidade de Beechwood. A família Tweedy continuava a gerir a padaria e o talhante, o senhor Piddock, só se aposentara no ano anterior, entregando as suas facas impecavelmente afiadas ao filho, Harold, que, de acordo com a bisbilhoteira local, a menina Crow, deixava demasiados nervos na carne de vaca. Gertie olhou de relance para a rua principal. Os seus ombros curvaram-se ao ver o letreiro cor de mel da Confeitaria Perkins. Harry costumava comprar um pacote de caramelos à senhora Perkins todas as semanas, para partilharem ao serão enquanto ouviam a telefonia.

– Vamos, Hemingway. Isso, lindo menino – disse Gertie, apressando o cão a entrar na livraria; sentia-se sempre muito grata pela presença do cão, que a distraía.

Os primeiros raios de sol da manhã passavam pela janela e iluminavam os grãos de pó como se estes fossem traças que esvoaçavam e dançavam em redor da luz. Gertie parou para inspirar a maravilhosa possibilidade de livros por abrir, como fizera todas as manhãs ao longo dos últimos trinta anos. Este lugar trouxera-lhe tanta alegria durante tanto tempo. Ela e Harry construíram ali algo admirável, o seu próprio mundo cheio de ideias e histórias. A certa altura da sua vida, Gertie pensou que iria mudar o mundo de alguma forma extraordinariamente pública, mas percebeu bastante cedo que também podia fazê -lo através dos livros. Os livros eram poderosos. Forjavam ideias e inspiravam a História.

"É Desta Que Leio Isto"

"É Desta Que Leio Isto" é um grupo de leitura promovido pela MadreMedia e por Elisa Baltazar, co-fundadora do projeto de escrita "O Primeiro Capítulo”.

Lançado em maio de 2020, foi criado com o propósito de incentivar à leitura e à discussão à volta dos livros. Já folheámos as páginas de livros de autores como Luís Sepúlveda, George Orwell, José Saramago, Dulce Maria Cardoso, Harper Lee, Valter Hugo Mãe, Gabriel García Marquez, Vladimir Nabokov, Afonso Reis Cabral, Philip Roth, Chimamanda Ngozi Adichie, Jonathan Franzen, Isabel Lucas, Milan Kundera, Joan Didion, Eça de Queiroz e Patricia Highsmith, sempre com a presença de convidados especiais que nos ajudam à discussão, interpretação, troca de ideias e, sobretudo, proporcionam boas conversas.

Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

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No entanto, a alegria de outrora estava agora a começar a diminuir. Olhou na direção da porta dos fundos da livraria e imaginou Harry ali de pé, com os braços cheios de livros, a sorrir para si. Quando a memória lhe apertou o coração, levou instintivamente a mão à orelha aveludada de Hemingway, para lhe fazer uma festa. O cão olhou para cima, para ela, com os olhos pesarosos.

Harry não participara na Grande Guerra, já que a sua condição médica lhe garantira a dispensa. Porém, fora essa mesma doença que causara a sua morte, havia dois anos. Gertie sentira que era uma sortuda quando Harry fora dispensado por razões médicas, apesar de a menina Crow não perder a oportunidade para se referir a ele como «um mandrião», a quem a quisesse ouvir. Se Harry ficava magoado com este tipo de comentários, nunca o demonstrara. O seu serviço discreto enquanto voluntário encarregue da defesa contra os ataques aéreos deixara Gertie a rebentar de orgulho pelo marido. Mas a vida tem sempre uma forma de nos apanhar e as doenças respiratórias que Harry tinha desde a infância fizeram com que o seu corpo deixasse de conseguir batalhar contra a tuberculose, que acabara por o levar. Gertie ainda não conseguia acreditar. Como podia Harry ter morrido? Ainda tinham tanta vida para viver.

– Isto não é a mesma coisa sem ele, pois não? – perguntou Gertie, a voz ligeiramente alta no espaço vazio, como se estivesse a gritar numa igreja. Hemingway suspirou concordando com a dona e Gertie limpou uma lágrima. – Bem. Não vale a pena demorarmo-nos em coisas que não podemos mudar. Vamos. Já estamos no último volume de Wodehouse e o Harry não iria gostar nem um bocadinho disso.

Quando Betty – a assistente livreira que Gertie contratara depois de Harry morrer – chegou à livraria, já esta limpara o pó, arrumara e reabastecera as prateleiras e estava pronta para abrir ao público.

– Deixe -me dizer-lhe, senhora B., isto está um brinquinho – comentou Betty, despindo o casaco. – Preparo um chá?

– Obrigada, querida. Estou completamente sequiosa.

Betty reapareceu pouco depois com duas chávenas desemparceiradas na mão, assim como os respetivos pires.

– Aqui temos. Já agora, ainda ando a matutar a respeito do livro que havemos de ler para o clube de leitura do próximo mês. Tem alguma sugestão?

Gertie acenou casualmente com a mão.

– Tenho a certeza de que aquilo que decidires será ótimo.

– Bem, estou bastante inclinada para o Middlemarch.

– É uma boa ideia – concordou Gertie. – Já não me lembro da última vez que escolhemos um romance do George Eliot.

– Pois, mas, infelizmente, a menina Snipp não está muito convencida.

– Não me digas que anda outra vez a fazer campanha para mais um livro do Thomas Hardy?

Betty assentiu.

– Não quero ser desagradável, senhora Bingham, porque ele é um excelente autor, mas ainda há dois meses lemos Tess dos D’Ubervilles e, desculpe dizer isto, mas alguns dos membros do clube de leitura não gostaram muito da forma como a menina Snipp conduziu a sessão.

Livro: "O Clube de Leitura Antiguerra"

Autor: Annie Lyons

Editora: Bertrand Editora

Data de Lançamento: 1 de fevereiro de 2024

Preço: € 18,80

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Este facto não surpreendia Gertie. O estilo de comunicação da menina Snipp podia certamente ser descrito com grande precisão como abrupto, ali quase a raiar o rude. Quando se conheceram, Gertie presumira que a menina Snipp não gostara simplesmente dela. No entanto, não demorou muito tempo até perceber que ela não gostava de praticamente ninguém. A exceção era Harry, mas também, toda a gente adorava Harry.

– Compreendo. E o que propõe ela que se leia a seguir?

Judas, o Obscuro.

Gertie estremeceu.

– Ai, Deus nos ajude.

– O senhor Reynolds ficou tão perturbado com o que aconteceu com a Tess, que não sei se aguenta este livro.

– Eu falo com a menina Snipp.

Betty expirou profundamente.

– Fico muito grata, senhora Bingham. Já estou um pouco preocupada com o número de membros que temos no clube. Sei que também temos os membros por correspondência, mas a sessão do mês passado teve muito pouca gente. O senhor Reynolds disse que antigamente, quando a senhora e o senhor Bingham conduziam o clube de leitura, as pessoas tinham de ficar de pé. Não quero desiludi-la.

Gertie dirigiu-lhe um sorriso reconfortante.

– Oh, Betty. Tu não estás a desiludir -me. O mundo mudou e neste momento as pessoas estão muito distraídas com outras coisas. Vou falar com a menina Snipp, mas, por favor, não penses mais nisso. O Clube de Leitura Bingham é a menor das tuas preocupações. – Gertie não conseguia verbalizar aquilo que verdadeiramente sentia. O seu mundo mudara e andava demasiado distraída; o clube de leitura estava no fundo da sua lista de preocupações porque não conseguia sequer pensar nele. Desde que Harry morrera que não fora a uma única sessão. Na verdade, Gertie faltara intencionalmente, porque não suportava a ideia de estar no clube sem ele.

O Clube de Leitura Bingham fora criado por ambos e era gerido como uma verdadeira parceria. Ficavam deliciados com o desafio mensal que era escolher o livro perfeito para a próxima sessão e com as discussões maravilhosas e estimulantes que conduziam com os seus membros. O senhor Reynolds dissera a verdade. As pessoas vinham de cidades vizinhas para participarem nas sessões. Até tinham atraído alguns autores que participaram para discutir os seus trabalhos, atingindo uma espécie de ponto alto quando Dorothy L. Sayers concordara em estar presente naquela que se veio a revelar uma sessão particularmente animada.

Para Gertie, tudo isto parecia ser agora uma memória distante. Já não sentia a centelha de entusiasmo que lhe inundava o pensamento enquanto ela e Harry escolhiam cuidadosamente o próximo título para o clube de leitura. Ultimamente, mal conseguia reunir energia para ler e não sentia o menor entusiasmo por algo novo ou original. Fora por este motivo que delegara o papel de direção do clube de leitura em Betty. A rapariga era uma leitora ávida com muito mais entusiasmo e genica do que Gertie alguma vez poderia sentir.

Betty não era apenas uma mais-valia muito bem-vinda ao pessoal da Livraria Bingham, como também servia de agradável antídoto à menina Snipp, que passara a vida inteira a esculpir uma bem-sucedida carreira nos livros e na fina arte do queixume. Depois de esta se aposentar da biblioteca, fora por insistência de Harry, claro, que ela viera trabalhar para a livraria.

– O seu conhecimento bibliográfico é enciclopédico, Gertie – disse -lhe ele. – Não há ninguém mais bem qualificado para encontrar livros para os nossos clientes. – Claro que ele tinha razão, mas, ainda assim, Gertie sentia-se aliviada por ultimamente a menina Snipp só trabalhar duas manhãs por semana e ficar quase sempre no seu escritório improvisado num canto do armazém.

O seu coração comprimiu-se quando viu a menina Snipp à porta, com uma expressão tão azeda no rosto como se estivesse a beber um refresco de limão. Decidiu tentar adotar a atitude amistosa de Harry, embora se sentisse bastante inquieta com a conversa que tinha pela frente.

– Bom dia, menina Snipp – disse Gertie, com tanta alegria quanta lhe foi possível reunir. – Espero que esteja bem.

– Nem por isso – respondeu a menina Snipp com o sobrolho franzido. – Ultimamente ando cheia de dores na minha anca má.

– Oh, lamento imenso – disse Gertie. – Já tentou tomar magnésio?

– Claro que sim. É este maldito tempo húmido – respondeu, olhando acusatoriamente para Gertie, como se esta tivesse alguma culpa.

– Ah, sim. Pois, nesse caso não há grande coisa a fazer.

– Hum. Presumo que não. Bem, senhora Bingham, tem um minutinho?

– Claro que sim.

A menina Snipp ajeitou os óculos no nariz.

– É sobre o clube de leitura.

– Oh, sim – disse Gertie, com uma sensação crescente de temor.

A menina Snipp cruzou os braços.

– Receio ter de me demitir da minha posição de presidente.

– Presidente? – repetiu Gertie, surpreendida.

A menina Snipp assentiu.

– É simplesmente uma tarefa demasiado exigente para a minha idade e, para ser franca, ultimamente as pessoas que vêm às sessões não merecem de todo o meu esforço.

– Lamento muito saber disso.

A menina Snipp olhou para o vazio e abanou a cabeça.

– Elas não conseguem apreciar a magnitude de alguns dos nossos melhores autores. Não tenho como as ajudar.

– Oh, valha -me Deus.

– É verdade. Por isso, creio que será melhor que a menina Godwin assuma as rédeas do clube.

– Compreendo. Bem, se acha que é melhor assim.

A menina Snipp levantou os olhos muito de repente.

– Deixe-me que lhe diga que está a encarar esta situação com grande ligeireza, senhora Bingham.

Gertie suspirou com o que esperava que fosse uma solenidade adequada.

– Oh, acredite que fico imensamente triste, menina Snipp, mas apoio a sua decisão a cem por cento.

A menina Snipp olhou para ela por cima dos óculos em forma de meia-lua.

– Bem. É melhor ir andando – disse, coxeando em direção às traseiras da loja.

– Bom dia, menina Snipp! – cumprimentou Betty quando se cruzaram na porta.

– Será? – resmungou a idosa, antes de desaparecer para a salinha das traseiras.

– Ela está bem? – perguntou Betty, aproximando -se do balcão.

– Está ótima. Acabou de te delegar as suas responsabilidades no clube de leitura, por isso, este mês temos George Eliot. Espero que estejas de acordo?

– Não a vou desiludir, senhora B.

Gertie deu -lhe uma palmadinha na mão.

– Eu sei que não vais, querida.

O dia pareceu arrastar-se interminavelmente até ao meio da manhã, quando apareceu Barnaby Salmon, o jovem de óculos que trabalhava como representante de uma editora. O facto de Betty endireitar sempre as costas, sacudir o vestido e dar um jeito no cabelo quando ele entrava na livraria não passava despercebido a Gertie, assim como o facto de o senhor Salmon fazer questão de só a visitar quando sabia que Betty estava a trabalhar.

– Bom dia – cumprimentou Gertie.

Barnaby tirou o chapéu para retribuir o cumprimento.

– Bom dia, senhora Bingham, bom dia, menina Godwin.

– Senhor Salmon – disse Betty, parecendo crescer vários centímetros sob o olhar do jovem.

Gertie virou -se para ele.

– Senhor Salmon, acha que esta manhã o posso deixar nas mãos ágeis da menina Godwin? Ultimamente ela tem assumido cada vez mais responsabilidades na livraria e quero muito encorajar o seu progresso.

O senhor Salmon ficou com ar de quem tinha recebido as chaves do reino de mão beijada.

– Naturalmente que sim, senhora Bingham. Seria um imenso prazer. – Virou -se para Betty. – Tenho um livro novo, maravilhoso, do George Orwell, do qual sei que vai gostar, menina Godwin.

– Excelente – disse Betty, com um brilho nos olhos.

Gertie sorriu. Adorava ver o romance bibliófilo dos dois a desenrolar-se. Levava-a de volta para os tempos em que ela e Harry se conheceram. Tinha recordações tão felizes. Oh, como sentia falta da sua presença desalinhada.

Sentia-se muito agradecida por Betty aceitar sempre as responsabilidades extra que Gertie lhe ia entregando. Gertie dizia para si mesma que era importante encorajar as novas gerações, mas no fundo sabia que estava a retirar-se aos poucos. A livraria e os livros eram o seu mundo, mas, sem Harry, tudo perdera o seu encanto mágico. Na verdade, o mesmo acontecera a todos os aspetos da vida. A ausência de Harry era a companhia mais assídua de Gertie. Ainda dava por si a pôr duas chávenas de chá e dois pires em cima da mesa, ou ouvia qualquer coisa importante ou preocupante na telefonia e virava-se para comentar com ele, ou então um cliente pedia-lhe uma recomendação de um livro e ela pensava imediatamente em Harry. Ele sabia sempre, por instinto, que tipo de livro cada cliente gostaria de ler, desde os meninos mais pequenos que adoravam histórias de piratas aos cavalheiros mais velhos já aposentados que apreciavam Shakespeare. Gertie também possuía este instinto, claro, mas para Harry era algo natural. Ela costumava lidar com os editores e ele dedicava o seu cuidado aos clientes. Dois anos depois, ainda havia quem entrasse na livraria e pedisse para falar com ele e ficasse profundamente perturbado quando Gertie dizia que Harry tinha morrido. Ela entendia como se sentiam as pessoas. Por vezes, passava os dedos pelas lombadas dos livros, porque continuava a ver Harry em cada livro, em cada página, em cada palavra. Era algo que lhe trazia algum conforto, mas também uma pontada aguda de mágoa. Gertie adorava a sua livraria, mas gostara ainda mais dela quando Harry ali estava.

– Ouviu o que eu disse, senhora B.?

Gertie pestanejou e acordou do seu sonho diurno.

– Ai, desculpa, querida. O que disseste?

Betty soltou uma risada.

– Estava mesmo no mundo da lua, senhora B. Estava só a dizer que o senhor Salmon já se vai embora. Quer verificar a encomenda? Pensei que podíamos destacar este novo livro do George Orwell. Se quiser, posso fazer uma montra com ele? Gertie olhou para o talão da encomenda, satisfeita por ter alguém para tomar as decisões por si.

– Parece -me esplêndido. Muito obrigada aos dois.

O senhor Salmon fez uma vénia educada.

– Muito obrigada, senhora Bingham. Menina Godwin. Vejo-a no sábado?

Betty susteve o seu olhar.

– Mal posso esperar.

– Um bom dia, minhas senhoras – disse ele, parando à porta para assentir a Betty, em jeito de despedida.

– No sábado? – perguntou Gertie, depois de ele sair.

Betty assentiu.

– Convidou-me para ir ao cinema. Vamos ver o novo filme do James Stewart. Em situações normais, estaria doida com ele, mas agora, nem me lembro da sua cara.

– Fico muito contente por ti, minha querida. Betty soltou um suspiro de felicidade.

– É maravilhoso encontrar alguém que ama as mesmas coisas que nós, não é? Eu e o Barnaby…

– Com que então, já é Barnaby, é? Betty ficou com um ar envergonhado.

– Bem, tratá-lo por senhor Salmon é um pouco formal, não é? Não estamos propriamente no início do século. Estávamos só a comentar que nenhum de nós conseguia pensar em nada melhor do que trabalhar com livros. São realmente o alimento da alma. Quero dizer, veja só P. G. Wodehouse. Os fascistas tomam a Europa de assalto e ele cria o Roderick Spode para os fazer parecer uns patetoides.

Enquanto Gertie ouvia Betty explanar as suas teorias de como todos os autores, desde Charlotte Brontë a Charles Dickens, melhoravam a vida das pessoas, uma ideia começou a germinar na sua cabeça. Betty e Barnaby eram a nova geração. Tinham a paixão que tanto lhe faltava ultimamente. Talvez estivesse na hora de passar o testemunho, como o senhor Piddock fizera com o seu talho.

Gertie já andava a pensar nesta possibilidade há alguns meses, mas agora parecia -lhe algo óbvio. Estava na hora de avançar com a vida e talvez até de se mudar para outro sítio. Gostava bastante de Rye, ou talvez Hastings. Os sessenta anos aproximavam -se e, não obstante o que o senhor Chamberlain afirmava, o país parecia estar a encaminhar -se para uma nova guerra. Antes de qualquer coisa acontecer, Gertie gostaria de estar confortavelmente instalada – longe de Londres. Não se sentia capaz de enfrentar outra guerra na capital. Ou melhor, não sabia como ia enfrentar outra guerra. Mas, mais do que isso, queria fugir das recordações constantes da ausência de Harry e da dolorosa realidade que era ter de viver sem ele.