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3.
Não posso ignorar o homem aos murros à minha porta. Os meus pés deixam atrás de si um rasto de pegadas molhadas enquanto atravesso os poucos metros até à porta. Aproximo a minha vista ao óculo. Está um homem parado do outro lado, de braços cruzados sobre os bolsos do peito do seu fato de trabalho da Brooks Brothers.
– Millie – a voz tornou-se um rosnido grave. – Deixa-me entrar. Já.
Afasto-me um passo da porta. Por um momento, levo as pontas dos dedos às têmporas. Mas isto é inevitável – tenho de o deixar entrar. Assim, estendo a mão, abro o ferrolho, rodo a chave na fechadura e entreabro cuidadosamente a porta.
– Millie. – Abre o resto da porta e desliza para dentro de minha casa. Os seus dedos rodeiam-me o braço. – Que raio?
Deixo descair os ombros.
– Desculpa, Brock.
Brock Cunningham, com quem tenho andado a sair desde há seis meses, lança-me um olhar.
– Tínhamos planos para jantar esta noite. Não apareceste. E não respondes às mensagens nem atendes o teu telemóvel.
Tem razão em todos os aspetos. Sou basicamente a pior namorada de sempre. Era suposto eu e o Brock encontrarmo-nos num restaurante em Chelsea depois de eu terminar as minhas aulas por hoje, mas, depois de Amber me ter despedido, mal me conseguia concentrar nas aulas – e não me apetecia certamente jantar fora – pelo que vim simplesmente direita a casa. Ainda assim, sabia que se ligasse ao Brock a dizer que não queria ir, sentir-se-ia obrigado a convencer-me – e, enquanto advogado, é superconvincente. Por isso, tinha o plano de lhe enviar uma mensagem de texto a desmarcar, mas fui adiando, e depois estava tão ocupada a sentir pena de mim mesma que me esqueci por completo.
Como disse, pior namorada de sempre.
– Desculpa – repito.
– Estava preocupado contigo – diz. – Pensei que talvez algo terrível te tivesse acontecido. – Porquê?
Uma sirene ensurdecedora faz-se ouvir do lado de fora da janela, e o Brock olha para mim como se eu tivesse feito uma pergunta muito estúpida. Sinto uma pontada de culpa. Provavelmente, o Brock tinha montes de coisas para fazer esta noite, e eu não só o fiz esperar por mim no restaurante como um idiota, como também o fiz desperdiçar o resto da noite a vir até ao sul do Bronx para se certificar de que eu estava bem.
No mínimo dos mínimos, devo-lhe uma explicação.
– A Amber Degraw despediu-me – digo. – Portanto, estou basicamente lixada.
– A sério? – arqueia as sobrancelhas. O Brock tem as sobrancelhas mais perfeitas que eu alguma vez vi num homem, e estou convencida de que as deve arranjar profissionalmente, ainda que jamais admita tal coisa. – Por que te despediu? Pensava que tinhas dito que não podia funcionar sem ti. Disseste que estavas basicamente a criar-lhe a filha.
– Exato – respondo. – A miúda não parava de me chamar mamã e a Amber passou-se.
O Brock fita-me por um momento. Depois, inesperadamente, desata a rir. De início, fico ofendida. Acabo de perder o meu emprego. Será que não percebe o quanto isso é uma treta?
Mas então, passado um segundo, dou por mim a juntar-me ao riso. Atiro a cabeça para trás e rio-me do ridículo de toda a situação. Lembro-me da Olive a estender os braços para mim e a soluçar «mamã» enquanto a Amber ficava cada vez mais furiosa. Pensei seriamente que lhe ia rebentar um aneurisma no cérebro.
Passado um minuto, estamos ambos a limpar as lágrimas dos olhos. O Brock envolve-me nos seus braços e puxa-me para si, não mais zangado por o ter deixado pendurado. Não se zanga facilmente. A maioria das pessoas contaria isso entre as suas qualidades, embora haja alturas em que eu gostaria que mostrasse um pouco mais de paixão.
De modo geral, porém, estamos no ponto ideal do nosso relacionamento. Seis meses. Haverá melhor altura numa relação do que os seis meses? Sinceramente, não sei, porque é apenas a segunda vez que atinjo esse marco. Mas parece-me que os seis meses são aquela fase perfeita em que largamos o constrangimento do início da relação, mas ainda estamos a mostrar um ao outro o nosso melhor lado.
O Brock, por exemplo, é um atraente advogado de trinta e dois anos de uma família abastada. Parece basicamente perfeito. Estou certa de que tem maus hábitos, mas não faço ideia de quais são. Talvez limpe a cera do canal auditivo com o dedo e depois o limpe à bancada da cozinha ou ao sofá. Ou talvez coma a cera. Apenas quero dizer que pode ter muitos maus hábitos que eu desconheço, alguns deles não envolvendo sequer a cera dos ouvidos.
Bem, tem uma imperfeição. Apesar de ser um jovem robusto, com o rosto corado de saúde, sofre, na verdade, de um problema cardíaco que desenvolveu em criança. Mas não parece afetá-lo minimamente. Toma um comprimido todos os dias e parece não passar daí. Ainda assim, é suficientemente importante para manter um frasco de reserva no meu armário dos medicamentos. E a sua doença e a incerteza quanto à sua esperança de vida deixaram-no um pouco mais ávido de assentar do que a maioria dos homens.
– Deixa-me levar-te a jantar fora – pede o Brock. – Quero animar-te.
Abano a cabeça.
– Só quero ficar em casa a sentir pena de mim mesma. E depois talvez procurar empregos na Internet.
– Agora? Ainda há poucas horas perdeste o teu emprego. Não podes esperar pelo menos até amanhã?
Ergo o olhar para o fulminar.
– Alguns de nós precisam de dinheiro para pagar a renda. Lentamente, assente.
– Está bem, mas e se não tivesses de te preocupar com a renda? Tenho um mau pressentimento de que sei onde isto vai dar. – Brock...
– Vá lá, por que não queres viver comigo, Millie? – pergunta, franzindo o sobrolho. – Tenho um T2 com vista para o Central Park, num prédio onde ninguém te vai cortar a garganta durante a noite. E, seja como for, vais tantas vezes lá a casa...
Não é a primeira vez que me sugere que vá viver com ele, e não posso dizer que os seus argumentos não sejam persuasivos. Se me mudasse para casa do Brock, estaria a viver no colo do luxo e não teria de pagar nem um cêntimo por isso. Não me deixaria contribuir mesmo que eu quisesse. Podia focar-me em obter a minha licenciatura para poder tornar-me assistente social e fazer algum bem no mundo. Parece uma decisão simples.
Sempre que pondero dizer-lhe que sim, contudo, uma voz ao fundo da minha cabeça grita: Não o faças!
A voz na minha cabeça é tão persuasiva quanto a do Brock. Há muitos bons motivos para irmos viver juntos. Mas há uma boa razão para não o fazer. Não faz ideia de quem eu realmente sou. Ainda que ande mesmo a comer a cera dos próprios ouvidos, os meus segredos são muito piores.
Portanto, eis-me aqui, na relação mais normal e saudável da minha vida adulta, e aparentemente decidida a estragar tudo. Mas estou a modos que num dilema. Se lhe contar a verdade sobre o meu passado, pode deixar-me, e eu não quero isso. Mas se não lhe contar...
De uma maneira ou de outra, vai descobrir tudo. Simplesmente não estou preparada para isso.
– Desculpa – digo-lhe. – Como disse, preciso do meu próprio espaço neste momento.
O Brock abre a boca para protestar, mas depois muda de ideias. Conhece-me o suficiente para saber quão teimosa posso ser. Veem? Já está a descobrir alguns dos meus maiores defeitos.
– Diz-me ao menos que vais pensar no assunto. – Vou pensar no assunto – minto.
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