Introdução

Aqui estamos novamente. É março de 2021 e estou a escrever um segundo livro depois de um ano difícil para todos nós. Decidi escrever uma continuação do meu bestseller, Somebody I Used to Know, no verão de 2020. O plano era que fosse publicado em 2022, e a primeira coisa que eu disse à minha parceira de escrita, Anna Wharton, quando me apercebi, foi: «Não tenciono estar por cá nessa altura.»

A Anna teve a gentileza de me recordar que eu tinha dito o mesmo aquando da publicação do meu primeiro livro, em 2018, e, no entanto, ainda cá estou.

No momento em que escrevo isto, passaram quase sete anos desde o meu diagnóstico de demência precoce e ainda vivo sozinha, independente, sem cuidadores. O que aprendi desde aquele dia de julho de 2014, quando me sentei em frente ao neurologista e ouvi a confirmação das palavras que me foram sussurradas em várias cartas e exames anteriores àquela data? Como muitas pessoas, eu não sabia nada sobre a demência aquando do meu diagnóstico. Tudo o que eu sabia eram fragmentos que recolhemos, através dos meios de comunicação social, jornais, televisão, talvez através de uma história contada por algum amigo. Fiquei aterrorizada, claro, como a maioria das pessoas ficaria. Tive medo desta doença progressiva e da sua trajetória planeada, que, lenta mas certamente, me seria revelada. De repente senti que tinha perdido o controlo da minha própria vida, uma sensação muito assustadora — e também uma sensação muito normal.

Voltando então à minha pergunta: que aprendi eu? Bem, em primeiro lugar, que tinha muito menos a temer do que pensava. Que sim, a demência é uma chatice de um diagnóstico, mas, como tudo na vida, tem um princípio, um meio e um fim. Quem sabe em que ponto estou na minha viagem com esta doença? O que vejo agora, deste ponto de vista, é apenas uma fatia da soma total final da minha história com a demência. Será isso realmente assim tão diferente da forma como qualquer um de nós vive a sua vida? Afinal, a única certeza que tenho é a mesma que toda a gente tem, que, na verdade, é apenas o dia de hoje.

É Desta Que Leio Isto: Em abril recebemos Richard Zimler

Richard Zimler junta-se ao É Desta Que Leio Isto no próximo encontro, marcado para dia 20 de abril, pelas 21h.

O livro escolhido para leitura é "A Aldeia das Almas Desaparecidas I - A floresta do avesso", o primeiro volume da mais recente saga do escritor — e um reencontro com a família Zarco.

Nascido em 1956 em Roslyn Heights, subúrbio de Nova Iorque, Zimler escolheu o Porto como novo lar em 1990, onde lecionou na Escola Superior de Jornalismo e na Universidade do Porto durante 16 anos. É onde ainda mora, tendo obtido a nacionalidade portuguesa em 2002.

Foi a partir da Invicta que iniciou uma carreira que já conta com 12 romances publicados, o último dos quais dividido em duas partes: "A Aldeia das Almas Desaparecidas II - Aquilo que procuramos está sempre à nossa procura", acabado de lançar, fecha o díptico iniciado com o volume I.

Zimler conta com uma série de best-sellers bem recebidos tanto pela crítica e como pelo público, como "O Último Cabalista de Lisboa", "O Evangelho segundo Lázaro" ou "Anagramas de Varsóvia".

Quanto a "A Aldeia das Almas Desaparecidas I — A floresta do avesso" é um regresso de Zimler aos Zarco, família de judeus sefarditas cuja saga atravessa vários séculos.

Para se inscrever no encontro basta preencher o formulário que se encontra neste link. No dia do encontro receberá um e-mail com todas as instruções para se juntar à conversa.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

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Contudo, quis escrever este livro para partilhar convosco apenas um pouco do que aprendi sobre a demência — porque acho que pode surpreender‑vos, pode inspirar‑vos, vai definitivamente informar‑vos e, com alguma sorte, ajudar‑vos a viver a melhor vida que puderem com a doença, ou a apoiar muito melhor alguém que conhecem.

O que tem feito a maior diferença para mim são as pessoas que tenho encontrado ao longo do caminho. Poder falar e partilhar experiências com os amigos que fiz, que também vivem com demência, fez‑me sentir mais normal em dias em que o mundo parece um pouco confuso. Saber que há outras pessoas lá fora, batalhando num dia, prosperando no dia seguinte, mas continuando a viver — não a sofrer (detesto esta palavra), mas a viver — faz uma diferença enorme. E por eles terem feito uma diferença tão grande para mim, quis que a voz deles fosse também aqui ouvida, porque a minha experiência de demência é apenas a minha experiência. Quando se conhece uma pessoa com demência, simplesmente conhece‑se uma pessoa com demência. Somos tão diferentes uns dos outros como éramos antes da demência. Por isso era importante para mim que, desta vez, fosse dada a palavra a outras pessoas. Embora nem sempre os seus nomes estejam expressos no livro, as vozes que irão partilhar as suas experiências pertencem às seguintes pessoas: Elaine, Eric, Eddy, Pat, Monica, Sue, Roland, Bob, Sue, Barbara, Colin, Brian, Janet, Paul, Delyse, Stewart, Gail, George, Dory e Agnes. Todas estas pessoas vivem com demência aos cinquenta, sessenta, setenta e oitenta anos. Algumas foram diagnosticadas há mais tempo do que eu, outras foram diagnosticadas mais recentemente.

Quando fui diagnosticada, não fazia ideia de onde começar a recolher informação sobre o que esta nova doença poderia representar para mim. Quando somos diagnosticados, de repente temos de descobrir tudo isto por nós próprios: ninguém nos contacta para nos indicar a direção dos serviços de apoio ou grupos de pares. É provável que nem sequer estejamos prontos para comparecer a nenhum, talvez durante vários meses. Mas, então, por onde começar? Tantas vezes ouço dizer: «Bem, nós partilhamos folhetos e cartazes.» Mas como é que se sabe onde os procurar, ou o que procurar?

Espero que este livro proporcione pelo menos um começo. Imagine que, enquanto está a ler, eu o levo gentilmente pelos ombros e o oriento na direção de alguma informação que penso poder ser‑lhe útil. Não proclamo que esta seja uma lista exaustiva de respostas às suas perguntas, mas é uma boa maneira de começar.

Quando as pessoas pensam em demência, associam‑na imediatamente à memória. Poucas pessoas percebem, por exemplo, como ela muda as nossas relações com os nossos sentidos, as nossas emoções, a nossa comunicação. Poucas pessoas compreendem a importância de um bom ambiente — tanto interior como exterior — após um diagnóstico de demência, e as pequenas mudanças que podem fazer uma grande diferença. A menos que se lhes diga, ou que se fale sobre isso, as pessoas nunca saberão a diferença que a demência faz nas suas relações — e como as fazer funcionar melhor. E se não souber nada disto, como poderá ser responsável pela sua atitude?

Espero abordar todas estas áreas para seu benefício, quer o leitor seja alguém que vive com demência, alguém que cuida de uma pessoa com a doença, um profissional da área ou apenas uma pessoa curiosa que acredita que a empatia e a inclusão são o melhor para todos nós — a si dirijo uma saudação especialmente calorosa. Nestas páginas encontrará todas as coisas que eu gostaria que as pessoas soubessem sobre a demência.

Wendy Mitchell
Março de 2021

Sentidos

Como pequenas bolhas subindo à superfície numa panela de água a ferver, as memórias ainda podem surpreender até quem tem uma doença que as rouba. Pensei precisamente numa dessas situações num dia destes: a minha primeira aula de economia doméstica, ferver uma panela de água para cozer um ovo.

Eu tinha transportado aquele ovo para a escola com ternura, aninhado dentro de uma bola de lã. Quando cheguei, a Sra. Marple, professora de economia doméstica, censurou‑me: «Os ovos pertencem às caixas de ovos», disse ela.

Tínhamos aprendido rapidamente que se tratava de uma mulher com a língua afiada. Estávamos todos aterrorizados com ela, mas aquele era o primeiro ano da escola secundária e sentíamo‑nos muito importantes a levar os nossos ingredientes para a escola todas as semanas num tupperware.

«Hoje, vamos aprender a cozer um ovo», disse‑nos a Sra. Marple na primeira aula.

Ouvimos as instruções, tendo o cuidado de anotar bem cada etapa nos nossos cadernos pautados. Colocar o ovo numa panela de água, certificando‑nos de que este tocava no fundo e não voltava a subir, iniciar os cronómetros e retirar o ovo da água a ferver na altura certa.

Senti a respiração da Sra. Marple na parte de trás do meu pescoço enquanto ela se movimentava pela sala, observando cada um de nós.

«Muito bem, Wendy», disse ela antes de prosseguir, deixando‑me a trocar olhares de alívio com a minha colega de carteira.

Terá sido aí que me sintonizei pela primeira vez com tais prazeres sensoriais? Agora é difícil afirmá‑lo. A minha mãe não gostava muito de cozinhar, ou pelo menos não tinha o mesmo tipo de prazer que eu tinha enquanto crescia. Não consigo lembrar‑me do que ela me ensinou na cozinha, se é que me ensinou alguma coisa. Era o meu pai que eu por lá encontrava, de mangas arregaçadas até aos cotovelos, mãos brancas da farinha, fazendo experiências de pastelaria. Fiz o mesmo enquanto mãe solteira, tentando ser o mais inventiva possível para persuadir bocas minúsculas a experimentar uma nova iguaria. Elas estavam sempre mais dispostas a experimentar algo que eu fizesse de modo a caber‑lhes entre os dedos — tortas e pastéis em miniatura, com mais vegetais escondidos no interior do que eu normalmente lhes conseguiria dar. Víamos juntas o Masterchef enquanto as raparigas tentavam imitar o Loyd Grossman. Uma vez por mês recriávamos o espetáculo, uma oportunidade para eu as convencer a experimentar coisas novas enquanto elas avaliavam o menu de degustação que eu lhes preparara: uma pequena quiche coberta com pimentos assados ou cavala, um risoto dividido em três pequenas porções. As minhas filhas nunca precisaram de muita persuasão para comer as sobremesas, que normalmente eram o único prato a receber a classificação máxima.

Agora é mais difícil invocar essas memórias — os cheiros da culinária, a consistência de um bolo confecionado na perfeição. Os fantasmas destes cheiros talvez ainda pairem pela minha cozinha, embora eu já não os consiga reconhecer.

Como me alimento

A demência transforma a nossa relação com a comida, desgastando lentamente o prazer de que outrora desfrutávamos. Eu adorava as oportunidades sociais que a comida oferecia, uma grande panela de caril a borbulhar sobre o fogão, o ar carregado de especiarias, os amigos a chegar, sentados em volta de uma mesa que eu tinha adornado com um ramalhete de flores frescas do jardim. É difícil apontar um momento a partir do qual a parte social da alimentação se tornou complicada, em que aquelas conversas que atravessavam a mesa se tornaram confusas de seguir, e eu passei a pousar o guardanapo no colo e a ficar simplesmente sentada a ouvir sem intervir. Ou em que o tilintar metálico dos talheres num prato se tornou demasiado ruidoso para os meus ouvidos, provocando‑me ansiedade e insegurança.

Comer é uma experiência tão sensorial, não só em termos de sabor e cheiro, mas também de tato, som e visão. Uma toalha de mesa preta deixava‑me confusa quanto à possibilidade de a mesa que cobria ser um enorme buraco no meio da sala de jantar e, quando os meus olhos se ajustavam ou o meu cérebro se ajustava e eu percebia que era, de facto, uma toalha de mesa, não fazia ideia de onde a mesa começava ou terminava sob a toalha.

Do mesmo modo, os pratos brancos tornaram‑se um problema. Sirva um prato branco de comida a alguém com demência e encha‑o com puré de batata claro, ou filete fino de peixe, e a pessoa poderá não se aperceber que existe qualquer comida no prato. Nem mesmo os nossos olhos têm tanta fome como em tempos tiveram. Precisamos de contraste para distinguir se há ou não comida no prato.

Assim que percebi que se tratava dos efeitos da demência, decidi enganá‑la, comprando pratos amarelo‑vivos, pensando que não é muito comum comer‑se coisas amarelo‑vivas, exceto os ovos mexidos. Porém, até mesmo os pratos se tornaram problemáticos. Os meus talheres perseguiam a comida pelo prato até esta cair sem cerimónia das bordas, e, uma vez que não estava à minha vista, simplesmente nunca tinha sequer existido. Pensei naqueles tempos em que eu sentava as minhas filhas nas suas cadeiras altas e via exatamente a mesma coisa acontecer. A solução para isso passara por tampos com um rebordo à volta, tornando mais difícil para um bebé empurrar para os lados, e foi assim que me desfiz dos meus pratos amarelos e comprei tigelas — grandes, tigelas de massa. Assim, a comida tinha menos probabilidades de me escapar.

Até termos uma doença complexa instalada no cérebro, não nos apercebemos de como algumas das tarefas diárias que consideramos normais são realmente complicadas. O que para outras pessoas parece ser o simples ato de usar uma faca e um garfo é, na verdade, um processo muito complexo — a ação de cortar com uma mão enquanto a outra segura a comida. Faz‑me lembrar quando as crianças pequenas aprendem a tocar piano com duas mãos e faz mais sentido para o cérebro seguir a outra mão em uníssono — somente a prática leva cada mão a aprender a tocar as suas próprias teclas. Depois do meu diagnóstico, tentei comer da maneira como sempre comi, mas, de repente, a comida escapava‑me, como se as minhas mãos já não estivessem a comunicar entre si — uma salsicha inteira era empurrada para trás e para a frente no prato antes de ser espetada por um garfo e depois segurada para que eu pudesse mordiscar pedaços. O ato de cortar carne era difícil e laborioso. Isso fez‑me sentir tola por já não conseguir comer sem sentir vergonha — contudo, tinha de me lembrar a mim própria: qual era a vergonha de ter uma doença no cérebro que estava a corroer muitas das minhas capacidades? Era melhor encontrar uma maneira de a combater. A resposta veio até mim de forma simples: trocar a faca por uma colher. O garfo podia cortar e a colher podia depois recolher a comida.

Mesmo depois de ter ultrapassado este problema, a carne continuou a ser difícil de engolir. E isto não era apenas devido à necessidade de cortar, mas também à de mastigar. Tornou‑se impossível lembrar‑me de quanto tempo tinha passado a mastigar, ou quanto tempo mais precisava de continuar a mastigar. O resultado foi, demasiadas vezes, engasgar‑me com comida que eu não tinha mastigado o suficiente antes de tentar engolir. Já é difícil concentrar‑me em comer sem o esforço adicional necessário para cortar e mastigar. Tinha de deixar de comer carne, portanto substituí‑a por peixe.

As refeições quentes também são complicadas. O meu dentista comentou recentemente as marcas de queimaduras que existem dentro da minha boca — simplesmente, à segunda colherada, esqueço‑me de que uma batata quente me queimou a boca e acabo por voltar a fazer o mesmo.

Era difícil saber se se tratava de algo neurológico ou se era simplesmente o novo esforço para comer que me fazia sentir neutra em relação à comida. Talvez sem nada que substituísse o prazer de uma refeição, ou mesmo de a preparar, o meu cérebro simplesmente se tenha desligado de todo o processo. Ou talvez, como sucede com muitas coisas, se tenha perdido o circuito no interior do meu cérebro que significava que já não sentia fome. Fome ou saciedade, na verdade. Agora como porque tenho de o fazer. Agora como porque preciso de combustível. Quando mencionei no meu blogue o pouco que como, fiquei submersa em ofertas de alimentos. Algumas pessoas menos solícitas até sugeriram que eu tinha dificuldades de memória porque estava a privar o meu cérebro de nutrientes vitais. O que essas pessoas não sabem sobre a demência é que ela não muda apenas a forma como comemos, mas também aquilo que comemos.

O que eu como

Costumava adorar cogumelos com tudo. Ainda penso com carinho no simples prazer que os cortar me proporcionava, pequenas fatias com a forma perfeita de um cogumelo, ainda com pedaços de terra aqui e ali, como se tivessem vindo diretamente de uma floresta. Cozinhava‑os com manteiga, e nunca consegui resistir a provar um antes de os colocar no meu prato. Mesmo um simples jantar de tostas com cogumelos satisfazia o meu desejo, e eu repetia‑o várias vezes por semana. Agora como‑os e não há prazer na textura nem no sabor. Não sabem a nada. É como mastigar cartão.

As malaguetas eram outra coisa que eu comia com tudo, sendo a tortilha o meu prato de eleição para as envolver, embora, na verdade, para mim, as malaguetas combinassem com tudo. Quer fossem verdes ou vermelhas, a minha língua era apurada e conseguia distinguir sabores e cores. Durante a minha primeira gravidez tive desejos de tostas com malagueta, e a minha filha Sarah nasceu com uma aversão por tudo o que fosse picante até à idade adulta.

Despedi‑me de cada um destes desejos depois do meu diagnóstico, mas havia uma coisa que não era negociável: o chá. É‑me agora impossível invocar o sabor dos cogumelos e das malaguetas e é difícil perder aquilo de que não nos conseguimos lembrar. Mas o chá era diferente. O chá é mais do que uma bebida; sempre me pareceu como um abraço caloroso. Tornou‑se difícil lidar com as chávenas de chá, as suas pequenas asas são traiçoeiras, e não há como contornar a atenção que exigem uma chávena e um pires, e por isso eu tinha uma caneca preferida, uma que conduzia o calor sem me queimar, mantendo o chá quente, assim como as minhas mãos. Adorava sentar‑me com as palmas das mãos envoltas nela, apreciando tanto o ritual como o sabor.

Os serões são solitários desde o meu diagnóstico, especialmente no inverno, quando o sol se põe ainda de tarde e a escuridão é difícil de navegar, mas nunca me senti sozinha na companhia de uma chávena de chá. Parece estranho, mas talvez tenha sido a ligação emocional que tinha com o chá que levou a que a sua memória ficasse mais tempo comigo — todas aquelas chávenas partilhadas com amigos ou entes queridos, fosse em celebração ou na perda. Mas depois algo começou a mudar. O chá tinha um sabor estranho, diferente, e com isto quero dizer diferente todos os dias — um dia até me soube a nabo. No início pensei que o problema era o leite. Experimentei colocar apenas um pingo, e depois nenhum. Experimentei diferentes variedades em vez de apenas o meu amado Yorkshire, mas foi em vão. Pareceu‑me a mais cruel das armadilhas: uma doença que tanto me tinha roubado tinha agora levado um prazer tão simples. Sentava‑me sozinha com uma chávena de água quente e limão, tentando recriar a sensação de amizade que o chá me havia proporcionado, mas não era a mesma coisa.

Tenho superado a demência em muitas outras coisas. Aceitei que os meus armários de cozinha são fantasmas do que outrora foram. Já não há latas e frascos e garrafas a disputar espaço no seu interior, ingredientes desesperados para serem escolhidos, panelas empilhadas umas em cima das outras. Há muito que me despedi das engenhocas que tinha para tudo. Mas nada substituiu o chá e, apesar de não ter prazer nisso, agora só bebo um chá de Yorkshire muito fraco, simplesmente para manter essa ligação.

É claro que faz sentido que uma doença cerebral complexa afete não só as funções cognitivas de comer e beber, mas também a experiência sensorial e as funções motoras. Perguntei a alguns dos meus amigos como é que a alimentação tinha mudado para eles desde que lhes fora diagnosticada a doença. Aqui estão algumas das respostas.

  • «Eu costumava cozinhar porque o meu marido não sabe cozinhar, mas agora comemos sobretudo refeições pré‑confecionadas. Como muito menos do que alguma vez comi. Nunca consigo encontrar as facas e os garfos. O meu marido diz‑me que eles estão na mesma gaveta há quarenta anos, mas nunca sei onde eles estão.»
  • «Eu adorava ovos, mas não os como agora, pois não suporto um ovo estrelado ou um ovo cozido — agora não suporto ovos, e já não consigo comer carne.»
  • «Costumava ser só eu a cozinhar. Agora deixo essa tarefa ao meu marido, mas sinto‑me culpada e sinto que devia ser eu a fazê‑lo.»
  • «Eu não cozinho. A minha mulher é que cozinha tudo, mas eu como tudo o que me é posto à frente.»

A escolha dos alimentos

O processo de tomada de decisão pode ser muito complicado quando se tem demência. No meu caso, isso significa que eu escolho frequentemente a mesma coisa para comer. Sempre que estou fora de casa, compro uma sanduíche de atum. Isso poupa‑me à confusão que reina no meu cérebro se me derem uma ementa ou se me confrontarem com balcões cheios de sanduíches de todo o tipo.

A demência também me tornou intuitiva na forma como me alimento. Tal como agora confio mais frequentemente no meu instinto para perceber se recebo boas vibrações de uma pessoa nova, escuto também com mais atenção os alimentos que o meu corpo pede. Mais recentemente, passei por esta experiência com um desejo de frutos secos e tomate, e reparei que o meu corpo voltou a acalmar‑se, satisfeito com o nutriente que desejava. Tenho o hábito de preparar sempre as mesmas refeições porque é mais fácil. Muitas vezes pode ser uma refeição pronta. No verão pode ser uma salada, que me é fácil de fazer, dado que não envolve o uso do fogão — não há hipótese de eu divagar e esquecer uma frigideira ao lume. Eu já comia essa mesma salada e peixe há meses e meses, mas um dia, já no outono, fiquei com muito frio e simplesmente não conseguia aquecer. O frio estava dentro de mim, instalou‑se nos meus ossos e, nessa noite, dei por mim incapaz de comer a minha salada. A tigela com alface, tomate e pepino crus ficou a olhar para mim e eu coloquei o meu garfo ao seu lado. Era como se o meu corpo se recusasse a continuar a comê‑la. No dia seguinte dei uma vista de olhos no supermercado para ver se conseguia encontrar uma refeição pronta que me atraísse. Cheguei a casa com uma lasanha e, nessa noite, o meu corpo voltou a sentir‑se feliz e os meus ossos estavam quentes. Na semana seguinte, todas as prateleiras do meu frigorífico tinham uma lasanha.

O Que Eu Quero Que Todos Saibam Sobre Demência
créditos: Editorial Presença

Livro: "O Que Eu Quero Que Todos Saibam Sobre Demência"

Autora: Wendy Mitchell (com Anna Wharton)

Editora: Editorial Presença

Tradução: Pedro Relógio Fernandes

Data de Publicação: 5 de abril

Preço: € 14,31

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Eu não me farto das refeições como as outras pessoas, simplesmente porque não me lembro de que estou a comer o mesmo da noite anterior. A comida para mim é combustível, nada mais complicado do que isso. Como não tenho fome, programo alarmes no meu iPad para me lembrar de comer. A única maneira de saber se comi na véspera é ver a loiça lavada no escorredor.

Viver sozinha facilita a minha autonomia para escolher o que como. Não há ninguém para comentar o facto de eu comer muito pouco, ou de comer a mesma coisa todos os dias. Para aqueles que recebem cuidados em casa, ou em casas de repouso, pode não ser assim tão simples. A minha experiência é comum; de facto, estima‑se que 50% das pessoas que vivem com demência irão experienciar dificuldades com a alimentação, a bebida ou a deglutição (disfagia). Tal é mais comum à medida que a doença progride, mas pode ocorrer a qualquer momento após o diagnóstico e, no entanto, não é um assunto frequentemente abordado.

A alimentação nos lares

A investigadora Lindsey Collins reconhece a forma como a alimentação e a ingestão de bebidas mudam após um diagnóstico de demência. Ela centrou o seu doutoramento na compreensão de como isto se desenrola nos lares de idosos. Durante a sua pesquisa, publicada em 2020, observou diversos aspetos diferentes da alimentação e da ingestão de bebidas nos lares — fosse a qualidade e a escolha dos alimentos, a perda de identidade em termos de ter a capacidade de controlar aquilo que se come ou a que horas se come, bem como o modo como comer e beber pode continuar a ser uma parte importante da socialização. As suas conclusões foram uma leitura triste para mim, particularmente quando se tratava da escolha dos alimentos disponíveis. Parecia que os residentes nos lares eram frequentemente vistos como «alguém para alimentar» em vez de um indivíduo com os seus próprios gostos e aversões. A verdade é que estas preferências não desaparecem depois de um diagnóstico de demência.

«As experiências de ingestão de alimentos e bebidas das pessoas que vivem em lares eram muito diferentes das suas experiências anteriores, quando viviam nas suas próprias casas», explicava o relatório.

A qualidade e quantidade dos alimentos tinha mudado, assim como o ambiente físico e social em que as refeições e lanches tinham lugar. Isto resultou em experiências mais negativas do que no passado, e menos centradas nas necessidades e preferências do indivíduo. Para as pessoas que vivem com demência e disfagia, a perda de identidade e falta de reconhecimento das preferências individualizadas foi ainda mais evidente... Cada um destes indivíduos tornou‑se apenas alguém destinado a ser alimentado, alguém a quem não foi dada escolha, alguém a quem foram dados alimentos e bebidas frequentemente considerados pouco saborosos e com falta de variedade.

Quando se trata de comida, os nossos gostos e aversões estão tão intimamente ligados à nossa personalidade que eu consigo entender a razão pela qual retirar essas preferências a alguém é também retirar a essa pessoa um pouco do seu caráter.

Reconheço que seria impossível para a equipa de cuidadores receber pedidos individuais de cada pessoa. Também sei que uma pessoa como eu, que como o mesmo todos os dias, por vezes meses a fio, seria considerada inadequada por não ter uma dieta variada. Mas qual é a alternativa? Se eu estivesse num lar e me servissem algo de que não gostasse, ou algo que não me soubesse bem, recusava‑me a comê‑lo. Então, talvez fosse rotulada de paciente difícil, em vez de alguém tentar chegar ao cerne do porquê de eu não conseguir comê‑lo. Seria o sabor? O prato no qual era servido? Ou o facto de as capacidades motoras necessárias para o cortar o tornarem simplesmente demasiado difícil de encarar?

Além disso, as diferentes variações da demência afetam as pessoas de formas diversas. Para quem desenvolve problemas de deglutição, comer pode tornar‑se tão stressante que é preferível evitá‑lo por completo. Estas pessoas podem ser vistas como difíceis por recusarem comida, quando, de facto, um terapeuta da fala poderia ajudá‑las, ou um nutricionista poderia saber que alimentos seriam mais fáceis de engolir.

Algo que sobressaiu na investigação de Lindsey Collins foi o facto de a hora das refeições ainda ser um momento de vital importância para os residentes estabelecerem ligações, e isto tinha um grande impacto no bem‑estar mental. O relatório concluía: «Estas experiências e conexões positivas foram alcançadas através da alimentação da pessoa com os alimentos e bebidas de que gosta, envolvendo a pessoa de uma forma significativa, vendo a pessoa como o indivíduo que é, e reconhecendo os benefícios que podem ser alcançados através do simples ato diário de comer e beber.»

Faz todo o sentido para mim. Seria impossível para qualquer pessoa desfrutar de uma visita a um restaurante se não gostasse da comida; então, porque seria diferente para aqueles que vivem com demência?

Há coisas que os lares poderiam fazer para ajudar: ter presente que a cor e o contraste são importantes para as pessoas com demência; trocar copos e pires por canecas; trocar pratos por taças com rebordo que não deixem escapar comida; oferecer uma escolha de não mais do que duas ou três coisas; cortar a comida para permitir que arrefeça mais rapidamente, ou lembrarem‑se de não a servir enquanto está quente; e manter o barulho e a algazarra perturbadores reduzidos ao mínimo.

Tenho implementado certas coisas para contribuir para que a alimentação se torne novamente mais agradável. Por vezes, um prato inteiro de comida pode parecer uma tarefa gigante. Quando as minhas filhas eram pequenas, eu costumava cortar pedaços de fruta ou vegetais e colocá‑los em pequenas tigelas ou ramequins. Isso agora funciona bem para mim. Depois do jantar costumo colocar alguns frutos secos num ramequim, que tem o tamanho perfeito para mim: não é possível comer demasiados sem me aperceber e permite‑me pegar neles um após outro, sem necessidade de me apressar.

Se uma pessoa gostava de cozinhar na sua vida pré‑demência, nada a impede de continuar agora, com uma pequena ajuda. Nos últimos tempos em que cozinhei em casa achava difícil seguir uma receita ou lembrar‑me se já tinha adicionado um ingrediente, mas uma das minhas amigas consegue cozinhar e a sua cuidadora mantém um registo dos ingredientes que ela adicionou, ou do tempo que estiveram a cozinhar.

Ainda há tarefas que as pessoas que vivem com demência podem desempenhar na cozinha. Por exemplo, podemos mexer o conteúdo de uma frigideira para que nos sintamos parte da experiência. As pessoas que conheço falam frequentemente de como se sentem culpadas por não ajudarem, mas ainda podemos ser úteis — basta pensar um pouco mais além para descobrir como.

A HammondCare, na Austrália, publicou três livros de cozinha que abordam os apetites diversos que surgem com a demência, e os terapeutas da fala e da linguagem podem ser capazes de ajudar aqueles que têm dificuldade em engolir. É também importante lembrar que alguns medicamentos podem ter impacto no apetite, aumentando‑o ou diminuindo‑o. Podem até tornar a boca mais seca, o que torna a alimentação menos agradável. Portanto, consulte o seu médico para obter mais informações sobre os efeitos secundários de certos medicamentos.

O mais importante, para quem cuida de pessoas com demência, é tentar não levar a peito se nos recusarmos a comer a refeição que preparou para nós, ou julgar‑nos por preferirmos comer a mesma coisa dia sim, dia sim. Se alguém estiver sentado com comida à sua frente sem lhe tocar, pode ser por uma de muitas coisas, por isso, por favor, não suponha que estão a ser difíceis e tente antes encontrar soluções para os problemas.