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– O guia disse que as grutas ficam a cerca de dez minutos daqui.

A voz de Jo ecoa na água, amplificada, quando ela se vira no banco da frente do caiaque duplo.

– Parece que é possível atravessá-las e sair uns cem metros mais à frente.

Quando enfia o remo na água, cada músculo dos seus braços e da parte superior das costas fica perfeitamente definido sob uma espessa camada de protetor solar.

Maya, num caiaque individual a cerca de um metro delas, faz uma expressão de horror fingido.

– Estás a gostar? – pergunta muito baixinho para Jo não ouvir.

É Desta Que Leio Isto: Em fevereiro recebemos João Luís Barreto Guimarães

Acabado de receber o Prémio Pessoa de 2022, o poeta, médico-cirurgião e tradutor João Luís Barreto Guimarães vem ao É Desta Que Leio Isto, o clube de leitura da MadreMedia. "Aberto Todos os Dias", recentemente lançado, e outras obras suas vão ser tema da nossa sessão de 23 de fevereiro.

Nascido no Porto, em 3 de junho de 1967, João Luís Barreto Guimarães é dono de uma carreira assinalável, tendo-se estreado com "Há Violinos na Tribo", em 1989, numa edição de autor.

Desde então, Barreto Guimarães conta com 12 livros de poesia já publicados, sendo que os primeiros sete foram reunidos em 2011, numa "Poesia Reunida", pela Quetzal. A sua obra mais recente, "Aberto Todos os Dias", foi lançada em janeiro deste ano pela mesma editora.

Escrito pela Quetzal como o seu "grande e auspicioso regresso", os poemas do livro "Aberto Todos os Dias" foram "escritos entre 2020 e 2022 no Porto, Leça da Palmeira, Venade, Torre da Medronheira e em algumas cidades dispersas pelo mapa da Europa". "Neste livro evocam-se os dias «do fechamento», mas também, finalmente, aquilo que está «aberto todos os dias» – aberto o livro, aberto o mundo –, aquilo que permanece vivo apesar das pandemias, do esquecimento ou da banalidade, das «coisas à espera de vez»", refere a nota editorial.

João Luís Barreto Guimarães é também médico-cirurgião e professor de Introdução à Poesia para estudantes de Medicina, no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, da Universidade do Porto, razão pela qual foi entrevistado pelo SAPO24 em 2021.

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Hana sorri, mas é forçado. Embora o esforço não seja muito – o caiaque desliza com facilidade pela água calma –, sente-se um pouco agoniada e ainda tem na boca o gosto ácido do sumo de fruta que bebeu à chegada. Não devia ter aceitado a bebida antes de fazer exercício. O calor também não ajuda, pensa, e sente o suor a escorrer por baixo da camisola de licra protetora.

Na verdade, Hana preferia estar na villa, com os pés dentro do quadrado azul-turquesa da piscina, com um copo de água gelada ao lado. A casa era tão bonita como nas fotografias – paredes brancas; chão de calcário cor de mel; plantas tropicais aos cantos. Uma atmosfera de férias, de hacienda – mobílias de verga, grandes jarrões de barro, tapeçarias coloridas. Peças de arte em tons de cor de ferrugem, rosas e azuis.

Porque é que foi preciso sair logo a correr? Porque é que a Jo não consegue apreciar o momento?

A Bea não faria isso, pensa, irritada. Bea, tal como Hana, ter-se-ia demorado, apreciado os pequenos pormenores – as peças de arte abstrata nas paredes, feitas com pedaços de madeira descorada pelo mar, os conjuntos surreais de catos.

Hana tentara ficar, arranjar uma desculpa, mas as suas súplicas foram ignoradas. Era aí que Bea teria sido útil. É uma das poucas pessoas que consegue pôr Jo no seu lugar.

– Eh, vocês as três. Menos conversa. Temos de acelerar se querem regressar a tempo do almoço – diz Seth.

Ele e Caleb estão mais à frente, também num caiaque duplo. Os dois homens são um par improvável – as costas largas e bronzeadas de Seth em contraste com a estrutura esguia de Caleb, protegido por uma camisola de licra solar de um azul brilhante. Parece que é Seth que está a fazer a maior parte do trabalho – as remadas de Caleb são desastradas, o remo roça apenas a superfície da água em vez de mergulhar.

A ilha faz uma curva em direção à encosta das villas e a água adquire um tonalidade de um azul mais escuro e profundo, com algas esguias a erguerem-se do leito do mar como cordas esticadas. Hana estremece ao sentir a resistência quando as algas se enrolam nos remos.

Depois de passarem pelas últimas casas, a paisagem suave dá lugar a algo mais selvagem: as enormes muralhas de árvores que vislumbrara à chegada. Pinheiros misturam-se com coníferas, carvalhos, arbustos espinhosos. Alguns metros mais à frente, as falésias formam uma reentrância brusca, uma pequena enseada. Está deserta, não se veem pessoas nem barcos.

Jo conduz o pequeno grupo para mais perto da costa. Levanta o remo e aponta.

– Tenho quase a certeza de que é aqui. Reconheço a entrada das fotografias. Depois de estarmos no interior, dá a volta.

Hana olha, inquieta, para a pequena boca nas rochas de calcário, que mal parece ter largura para deixar passar o caiaque.

– É muito apertado. – Caleb pousa o remo na horizontal em cima dos joelhos. – Tens a certeza de que é o sítio certo?

– Lá dentro alarga. Já mais pessoas o fizeram. Nós vamos à frente, não vamos, Han? Para mostrar o caminho aos rapazes.

Hana consegue ouvir o tom de desafio na voz de Jo. Ainda com o gosto ácido na garganta, engole em seco e faz que sim com a cabeça.

– Claro.

Remam devagar na direção da entrada na rocha. Caleb tem razão: quando lá chegam, a abertura é tão estreita que nem conseguem remar, têm de parar e deixar que o ímpeto do caiaque as conduza para o interior da gruta. Hana fica tensa quando a lateral da embarcação roça na parede com um som áspero, mas momentos depois estão no interior.

Instantaneamente, a gruta mergulha-os numa penumbra carregada. O teto de calcário é baixo e está manchado pela humidade. Perceves e lapas cobrem as rochas. É um pouco mais largo, com espaço para remar de ambos os lados.

– Tudo bem? – Jo vira-se para trás.

– Sim. – A voz de Hana ecoa no teto baixo e nas paredes. À medida que avançam, fica ainda mais escuro, a água quase preta. O ar enche-se de um cheiro a bafio, um odor marinho e parado.

Mais à frente, a passagem volta a estreitar.

– Tens a certeza de que dá a volta?

– Tenho. – Hana apercebe-se do vestígio de impaciência na voz da irmã. – Espera aí. – Jo pega na lanterna cilíndrica e fina que tem ao pescoço, presa por uma corda elástica, e acende-a. O raio incide na curva da parede, cerca de vinte metros mais à frente. – Estás a ver?

O medo de Hana dá lugar a uma súbita euforia, algo que não sente há muito tempo. Este tipo de aventuras desapareceu da sua vida depois da morte de Liam. Ele é que era o mais ativo dos dois. Sem ele, por norma Hana prefere o sofá.

Por fim, o canal de água torna-se amplo o suficiente para conseguirem remar lado a lado. Jo aponta a lanterna para a frente, um fino feixe de luz sobre a água. Faz com que a superfície pareça esfumada – de um azul-esverdeado fantasmagórico – e projeta grandes sombras nas paredes da gruta. Formas insondáveis surgem sobre a pedra, num frenesim de cor e textura.

Hana rema em frente, e absorve tudo.

– Isto é espantoso – diz.

Jo sorri. Hana percebe que isto é o que lhes tem faltado nos últimos anos – uma experiência partilhada como esta. Cafés, refeições, aventuras reais. Criar novas memórias.

Está prestes a dizê-lo quando ouve o murmúrio da voz de Jo. Desiludida, Hana vê Jo rodar a câmara e apercebe-se de que o sorriso que julgava ser para si era, na verdade, dirigido ao telemóvel. Tempo em família não era o que estava a acontecer aqui. As publicações no TikTok e no Instagram seriam o único objetivo desta viagem? Um mero exercício de autopromoção?

– Não podemos ter uns minutos sem o raio do telemóvel? Tens mesmo de documentar tudo? Não preferes viver o momento em vez de o gravar?

Jo vira-se com ar aborrecido.

O Retiro
créditos: Porto Editora

Livro: "O Retiro"

Autor: Sarah Pearse

Editora: Porto Editora

Publicação: 26 de janeiro

Preço: €15,08

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– Han, por amor de Deus, relaxa! É em parte por causa disto que aqui estamos. Tenho de produzir conteúdo sobre o retiro para justificar a oferta da estadia. – Abana a cabeça. – És sempre a mesma. Só sabes criticar.

Hana regista a mágoa na expressão da irmã e hesita, arrependida de ter falado. Talvez seja demasiado crítica. Porém, antes que consiga explicar-se, a expressão de Jo suaviza-se.

– Mas tens razão, eu paro. – A sua voz já não é cortante. – Às vezes esqueço-me de como pode parecer excessivo às outras pessoas; o Seth diz o mesmo. Eu percebo, mas às vezes isto tudo... – indica o telemóvel com um gesto do queixo – é mais fácil do que o mundo real.

Hana fita-a com curiosidade.

– Como assim?

– Esta versão editada da vida que estou a publicar. Por vezes, prefiro-a. Sem as complicações da vida real, as dinâmicas esquisitas entre as pessoas.

Hana sorri.

– Estás a dizer que nós somos esquisitas e complicadas...

– Um bocadinho. – Jo sorri. – Ainda é tudo um pouco constrangedor entre nós, não é? Estou sempre a questionar se será boa ideia, tentar forçar algo que já não existe. Tu, eu, a Maya. – Hesita. – Como é que a Maya tem estado contigo?

– Bem. Quer dizer, ainda estamos a pôr a escrita em dia, mas tirando isso...

– De certeza? Ela não te disse nada?

– Sobre o quê?

Uma centelha de algo nos olhos de Jo antes de ela sorrir.

– Nada em particular.

Mas enquanto continuam a remar, o sorriso permanece fixo no rosto dela, um instante a mais para ser genuíno.

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