Começou por correr as redes sociais, e depois caiu que nem uma bomba. No final de maio, Shelby Lynn, uma fã norte-irlandesa dos Rammstein, fez uma publicação no Twitter onde acusava a equipa de produção do vocalista Till Lindemann de a ter drogado, numa festa, antes de um concerto da banda na Lituânia. O objetivo, disse, era o de a levar a ter relações sexuais com o músico num momento de intervalo durante o espetáculo. Lynn diz não se lembrar bem de todos os momentos que passou com Lindemann, mas garantiu que o vocalista não lhe tocou – terá, até, ficado “irritado” perante a sua recusa em ter sexo.

Podia ser mais uma situação escabrosa envolvendo uma estrela rock, não fosse o facto de, na sequência dessa publicação, várias mulheres terem decidido contar as suas próprias histórias envolvendo Lindemann, o que a transformou numa espécie de ramo da árvore #MeToo. O modus operandi era o mesmo: as mulheres eram “escolhidas” a dedo por uma mulher próxima do músico, era-lhes entregue um passe para uma festa pré-concerto, e nessa festa eram-lhes oferecidas bebidas alegadamente adulteradas. Perante o escândalo, a banda começou por negar as acusações, anunciando depois uma investigação interna.

Mas já era tarde. A Universal, responsável pelo catálogo dos Rammstein, suspendeu todas as ações de promoção da banda. A editora literária Kiepenheuer & Witsch, pela qual Lindemann tinha lançado o livro “In Still Night”, anunciou ter terminado o seu contrato com o músico. O baterista Christoph Schneider, também nas redes sociais, afirmou não ter tido conhecimento de “nada ilegal”, salientando: “É importante não confundir as festas do Till com as nossas próprias festas pós-concerto”. Na mesma publicação, afirmou que o seu colega de banda “criou a sua própria bolha”, lamentando o que sucedeu com Lynn e reiterando que os fãs dos Rammstein “merecem ser tratados com respeito”.

Esses mesmos fãs viram-se, ao longo do último mês, envolvidos no mesmo dilema moral que os fãs dos Arcade Fire tiveram e vão tendo: é possível distanciar completamente a arte do artista? Olhando para um Estádio da Luz quase cheio neste regresso dos Rammstein a Portugal, a resposta poderá parecer “sim”. Mas, de todos esses, quantos não sentiram – mesmo que tenham desfrutado do concerto – uma ponta de mágoa por terem a consciência de que o vocalista da sua banda preferida está envolvido em algo absolutamente condenável? Alguns remeterão para a justiça: Lindemann ainda não foi condenado em tribunal (já está, no entanto, a ser investigado pelo Ministério Público alemão) e, como tal, é inocente até prova em contrário. O que até poderia parecer razoável se estivéssemos a falar de uma pessoa apenas. O caso muda de figura quando são várias as vozes acusatórias que se erguem.

Rammstein em Berna
epa10697329 A picture taken with a drone of a concert of German band Rammstein at the Wankdorf Stadion in Bern, Switzerland, 17 June 2023. Despite sexual abuse accusations against the band's lead singer Till Lindemann, the concerts in Bern do take place on 17 and 18 June. EPA/ANTHONY ANEX

As outras bandas tocam, os Rammstein ardem

É como o próprio canta numa das maiores canções dos Rammstein: o meu coração arde. No caso, de tristeza. Para quem cresceu a ouvir sonoridades mais pesadas, os Rammstein sempre estiveram no topo do panteão da geração que era adolescente na viragem do milénio. Não só porque os riffs eram brutos ou porque a língua cantada, estranha à maioria dos ouvidos, parecia dotada de uma agressividade inata, mas também porque os Rammstein não eram “apenas” metal; eram também belíssimas baladas ao piano, eram também a música eletrónica, eram as chamas e o fogo de artifício (as outras bandas tocam, os Rammstein ardem, brincavam à altura, num trocadilho com um famoso mantra dos Manowar). Eram, numa idade de formação ideológica, a banda que cantava coisas certas; a banda que, acusada de ter simpatia pelo neonazismo, lançou uma canção intitulada 'Links 2-3-4' (onde o coração bate à esquerda), a banda que, cantando em alemão, conquistou o mundo com uma crítica feroz ao consumismo e ao imperialismo cultural americano ('Amerika').

Pelo que, conhecendo a fundo a carreira e a mentalidade do grupo, seria sempre extraordinariamente difícil não abordar o elefante na sala – ou, neste caso, no Estádio da Luz. Pode ter sido mais fácil, para a maioria do público (com muitas mulheres na plateia), ignorá-lo durante um par de horas, tantas quantas durou um concerto absolutamente avassalador. Nos últimos dias, noticiou-se que o som do espetáculo poderia ser escutado num raio de 15km a partir do recinto; bastaram vinte, trinta segundos de 'Rammlied' para que os tímpanos ali presentes se perdessem por entre as bancadas. É como se os Rammstein quisessem não agradar, mas subjugar cada uma daquelas pessoas. A música como um chicote e os fãs como o Severin de “A Vénus das Peles”: Se me amas, sê cruel para mim.

Houve uma ponta de crueldade em tudo isto, em todo o profissionalismo e qualidade demonstradas. 'Links 2-3-4' já não poderia, por tudo o que se passa, soar da mesma forma, mas ei-los, aos fãs, de punho erguido e com a palavra teutónica na boca. Caem várias faixas com o logótipo do grupo, as luzes ofuscam, o cenário parece saído diretamente de um filme de Leni Riefenstahl – e é essa a ideia, parodiar o totalitarismo recorrendo aos seus símbolos (tal como os Laibach, que antecederam os Rammstein, o fazem).

Sente-se um cheiro a pólvora no ar, dos fogos lançados na canção anterior. Toda a Luz é pintada de um vermelho que não o do costume. Um concerto dos Rammstein é uma obra de arte total ao mesmo tempo que é espetáculo. Serve para nos fazer pensar no paralelo enorme entre um concerto rock e um comício fascista, ao mesmo tempo que nos diverte, nos faz suar, gritar palavras de ordem e, por fim, compreender que aquilo não é para ser levado muito a sério.

Conseguirão ainda os fãs dos Rammstein dar-lhe amor?

As outras bandas tocam, os Rammstein ardem. A bateria inicial de 'Sehnsucht' é o pavio que faz acender nova remessa de fogos de artifício, e não podemos senão sorrir perante o acontecimento. 'Mein Herz Brennt' contou com as gargantas afinadas do público, e com uma tocha acesa no final. 'Puppe' traz consigo um carrinho de bebé (que, claro, também acabará a arder) e uma chuva de confettis. 'Angst' ensina: basta gritar huh! e está feito, antes de Lindemann, que para além das suas letras até agora só proferiu um ou outro “Lisboa!”, ser atingido por jatos de vapor enquanto o ruído das guitarras se desfaz nas torres de amplificadores. 'Zeit' arrefeceu um pouco os ânimos, que se mantiveram nesse estado durante uma remistura eletrónica de 'Deutschland', até que a coreografia é ensinada por quatro dançarinos vestidos com LEDs, a fazer lembrar os conterrâneos Kraftwerk. Canta Lindemann que já não consegue dar o seu amor à Alemanha; conseguirão ainda os fãs dos Rammstein dar-lhe amor a ele?

Se não ao vocalista, pelo menos ao resto do grupo, cujo futuro é agora um mistério. Depois desta digressão, e mesmo que as acusações sejam retiradas, conseguirão os Rammstein reeerguer-se? A pergunta fica no ar, até pelas supracitadas declarações de Schneider. Para quê continuar com um grupo se uns remam para um lado e outro habita uma “bolha”? Melhor, dá para o fazer? São questões que desaparecem num ápice durante aquele que é sempre o melhor momento de um concerto dos Rammstein, logo depois do teatro de 'Mein Teil': 'Du Hast', o clássico maior dos alemães, onde o fogo de artifício viaja de uma ponta a outra do recinto antes de desaguar numa torrente de faíscas, os teclados e a batida a transformarem um recinto metaleiro num salão de festas techno. Logo de seguida, 'Sonne' trouxe consigo as chamas, aumentando a temperatura local em um número considerável de graus; quase que se sentiam os pêlos dos braços a chamuscar.

Antes do primeiro encore, os ecrãs foram passando imagens de rostos presentes, satisfeitos com o que presenciavam, desde as mulheres que mostraram os seios (e foram muito aplaudidas), aos homens que mostraram cachecóis a dizer França (e foram muito assobiados), aos que ergueram uma camisola do clube da casa (e ficaram-se pelo intermédio, porque houve muita gente que teve coragem de assobiar o Benfica em pleno Estádio da Luz). No segundo palco, localizado sensivelmente a meio do relvado, hoje coberto por placas, os Rammstein juntaram-se às Abélard para uma versão tocante de 'Engel', em que a letra foi disposta nos ecrãs, para que mesmo quem não soubesse alemão pudesse acompanhar. No final desse tema, o grupo regressou ao palco em barcos insufláveis, navegando sobre o público, aproveitando para atirar autógrafos e pescar uma bandeira portuguesa.

'Ausländer', canção lançada em 2019 e que depressa se assumiu como uma das melhores da carreira do grupo (pelo menos entre as canções mais recentes), trouxe consigo discussões sobre turismo sexual – e não deu para não sentir um ligeiro amargo de boca; 'Du Riechst So Gut', com Lindemann a puxar pela audiência (“vamos!”, gritou), antecedeu a bela 'Ohne Dich' e a destruição via 'Rammstein'; e 'Ich Will', cujo videoclip é uma alegoria sobre o papel dos media na criação de espetáculos e sobre a imortalidade que aguarda algumas pessoas que fizeram coisas condenáveis, pareceu estranhamente presciente, à Luz – do Estádio cheio, da história recente dos Rammstein. 'Adieu' deu por terminado um dos maiores (em termos quantitativos e qualitativos) concertos que passaram por Portugal em tempos recentes, ainda que depois da bebedeira venha a ressaca: teríamos saído daqui muito mais felizes noutro contexto. Neste, e mesmo sendo fãs da banda, existirá sempre uma ferida que não cicatriza.

Nota: As fotos que ilustram o artigo são do concerto de Rammstein em Berna, realizado a 17 de junho de 2023 e parte integrante da digressão que os trouxe ao Estádio da Luz. À hora de publicação do artigo, não foram disponibilizadas ainda fotos do concerto no estádio da Luz e a empresa promotora do concerto não concedeu acreditação para a equipa do SAPO24 poder fotografar.