“Não sabia o que pensar daquela foto. Fiquei a olhar uns minutos e, depois, entreguei-a à Rita, que ficou tão baralhada quanto eu. Já o velho sentou-se, lívido. Sabia muito bem que fotografia era aquela.” (página 23) - é assim, num mistério, que arrancamos para dentro da história. Uma história que é um novelo, um fio de Ariadne onde nos enredamos em voltas loucas. Porque também o é o livro: louco.
A baleia que engoliu um espanhol é a história duma ilha. Para sermos mais corretos, nem a história é história, nem a ilha é ilha. A baleia que engoliu um espanhol é um compêndio de lendas, de mitos, de narrações em camadas que sucedem em milénios numa quase-ilha, ao largo da costa portuguesa, desde quando Portugal nem Portugal era.
O espanhol, que espanhol não era, mas castelhano, chamava-se Javier. Com um coice conseguiu livrar-se do forno da padeira de Aljubarrota somente chamuscado, levemente fumado. Livrou-se de Brites de Almeida e pôs-se a fugir. Pôs-se a correr, a andar a andar a caminho da fuga. Foi dar com ele em Atouguia da Baleia, à beira de Peniche e depois de ficar sem língua na boca, acabou na boca de uma baleia - essa mesma cujo osso há de estar na igreja de São Leonardo, da freguesia penichense.
Mas esta é apenas uma das peças; peça de uma história maior. E é aqui que tudo começa. Ou é daqui que tudo parte. No bojo da baleia, Duarte Contreiras, neto de um caçador de nazis nas searas da zona Oeste, leva o leitor por uma aventura frenética, ou por uma série de aventuras frenéticas, que vão dos idos tempos da Grécia a um beijo algarvio por entre passas no primeiro dia deste mesmo ano de 2017.
A baleia que engoliu um espanhol é o primeiro romance de Marco Neves, tradutor e professor universitário (e cronista do SAPO 24). Numa manhã a ferver deste julho, antes mesmo da apresentação do livro (esta quarta-feira, 05/07, na Fnac do Centro Comercial Vasco da Gama, em Lisboa), estivemos à conversa com Marco, também ele nascido na quase-ilha de cujo arquipélago vem o universo deste livro.
Histórias de uma quase-ilha
Se formos olhar para a geologia, podemos falar de istmos e de tômbolos. São ligações. Pontes que fizeram da ilha península. E é daí que vem Peniche; é daí que vem o nome, que parece derivar do latim paeninsula (paene - quase - e insula - ilha). Se nos virarmos para as letras, o romance de Marco Neves é talvez uma declaração de amor à ilha que hoje já o não é, fundeada que está na margem de uma outra península, estoutra Ibérica.
Com os pedaços, as peças, surge diante de nós um puzzle - ou, para seguir na gesta náutica, um mapa. E dos mapas sempre fazem parte destinos, forçosamente ligados por viagens. As viagens, que são peças, que são retalhos. E desses retalhos, explica-nos o autor, surge o resto:
“Este livro junta algumas histórias que eu ouvi e outras que inventei a partir das histórias que já lá havia. Por exemplo, a história que se passa durante o império romano, em que temos uma personagem que se chama Lucius Arvenius Rusticus, para dizer em latim. A única coisa que eu tinha desta personagem era o nome, não tinha mais nada.
Sabia que ele de facto tinha sido comerciante de garum, que é um produto que se produzia em toda a costa portuguesa e ali também. Descobriu-se, no final do século XX, ali nos anos 1990, umas ânforas romanas com o nome desse comerciante. A partir daí criei, aliás, quem me deu esta primeira ideia até foi o atual presidente da câmara de Peniche [António José Correia], que me falou desta personagem, destas ânforas e eu a partir daí criei esta história, essa história é muito inventada.
Quando chegamos mais à atualidade, as histórias começam a ter um pouco mais de - não digo realidade, mas são mais baseadas naquilo que tinha ouvido e que li sobre algumas histórias.
Isto é um livro que se passa em Peniche, mas talvez o tema principal seja as relações - tratadas de forma um pouco leve e que eu espero que seja divertida - entre os portugueses e os espanhóis e os portugueses e os ingleses, que ali tinham uma espécie de centro.
A última história, a história de um nazi - que eu não vou dizer muito sobre o que se passou com ele - é também praticamente toda inventada a partir de uma pequenina história que de facto o meu avô me contou, em que ele viu um acidente, um piloto inglês a aterrar numa praia em Peniche.
A partir dessa história, que é real - ainda há poucos dias o meu avô estava a ler o livro e estava-se a rir porque reconhecia essa parte - criei outra, romanceada. E portanto, o meu avô nunca teve nenhum contacto, que eu saiba, com nazis nem com ingleses, mas viu essa aterragem forçada de um avião inglês.
Portanto, o Duarte [personagem principal] tem alguma coisa minha, não sou eu, aliás, digo-o logo no início do livro, mas tem algumas histórias e algumas recordações que são as minhas histórias e as minhas recordações.
Vivi mais ou menos metade da vida em Peniche e outra metade aqui em Lisboa. Lembro-me principalmente de viver ao pé do mar. Recordo uma terra muito ligada ao mar, com pescadores, fábricas de conservas - é uma terra que não só está ligada ao mar como está quase no meio do mar.
Estou casado com a Zélia, que nasceu em Ponte de Sor, no Interior do país e é engraçado ver as diferenças nas nossas recordações. Para ela a praia era o sítio onde ia passar férias; para mim a praia era o sítio onde eu estava todos os dias, saía de casa para ir para a escola e passava pelas praias, por uma que havia mesmo ao pé da minha casa.
Nota-se muito que é uma quase-ilha, porque para sair de Peniche tinha-se de ir sempre pelo mesmo sítio, ali por uma estrada que era praticamente a única. Mentalmente, para nós aquilo era uma ilha.
Hoje é uma cidade que está a mudar muito. Está sempre ligada ao mar, mas a pesca talvez tenha perdido um pouco da importância que tinha na altura em que vivi lá e hoje está muito virada também para o turismo - como aliás o país todo.
Acho que a grande diferença é esse acréscimo de turismo, que já havia na minha altura. Mas também há que dizer uma coisa: como tenho lá ainda a minha família e tendo em conta que hoje em dia o país é todo mais pequeno, porque temos estradas para todo o lado, eu na verdade nunca saí de lá, tal como até já estava em Lisboa antes de vir para cá.”
Da história vivida para a história imaginada
A magia neste livro está nas franjas do que se passou e o que se podia ter passado. Duarte Contreiras, que por acaso não tem nada a ver com frei Miguel Contreiras, uma hipotética personagem lisbonense, uma hipotética fraude lisboeta, percorre um labirinto. Entre o que é e o que não é, Duarte leva-nos pelas camadas, pelos caminhos que lhe surgem. E se alguns são tão verdadeiros como ele, outros há que há muito povoam o imaginário penichense. Nesta dicotomia entre o real e o imaginado, explica Marco Neves, nasce a substância deste livro:
“Há aqui nesta história um labirinto. Fala-se, em Peniche, há muitos anos, que havia uns túneis. Obviamente, este labirinto é inventado, mas tirando esse labirinto completo, haverá talvez uns restos de uns túneis, mas, tirando isso, tudo o resto é real, estes lugares existem todos; a gruta onde no início do romance é encontrado um tesouro um pouco macabro, existe; estas grutas existem, a ilha das Berlengas obviamente existe.
Até há uma referência à Fonte do Rosário, onde há uma pequena entrada para um túnel - essa fonte existe e está lá essa pequena entrada para um túnel que depois não continua.
Numa das revisões do livro tive de estar a alterar uma coisa, porque a certa altura digo que as personagens estão numa casa encarnada - que existe - e que estão a ver uma parte da terra, neste caso a fortaleza, e depois fiquei com muitas dúvidas e cheguei à conclusão de que não se conseguia ver e alterei essa parte do livro. Tentei ser cuidadoso nesse ponto, nas questões geográficas.
Depois, tudo o resto, o que se passa neste cenário, aí já inventei muito.
Este livro junta as histórias das viagens que nós fazemos e as histórias da terra de onde nós saímos e às vezes para onde voltamos.
Tentei que fosse um livro que não ficasse pelo sítio onde eu nasci e de que gosto muito. E por isso, as personagens do livro saem também para a Europa toda, dão voltas pela Europa, dão voltas pelo país. No fundo, é um livro que tenta mostrar que nós, apesar de gostarmos da nossa terra, também temos de sair e ver mais, juntar as viagens às histórias locais.
Este livro é ainda uma homenagem a quem conta histórias. Muitas das nossas histórias ou são histórias de viagem ou são histórias locais, aquilo que ouvimos em criança. Tento que este livro seja uma junção desses dois tipos de histórias - as histórias das viagens que nós fazemos e as histórias da terra de onde nós saímos e às vezes para onde voltamos.
É também uma homenagem a Peniche, mas é uma homenagem a todos os contadores de histórias e a todas as pessoas que gostam de ler.”
Até porque recupera muitos dos cânones da cultura ocidental, “tentando dar-lhes uma volta mais local e às vezes brincando com essas histórias. Basta pensar na baleia, que obviamente existe na literatura universal, como nós sabemos, mas vai tentar recuperar algumas destas histórias que todos conhecemos, como histórias de amor entre duas famílias que não se dão."
Três homens mataram um nazi à entrada de uma gruta
Não se devem julgar os livros pelas capas, todavia, a que este adorna é esclarecedora: há anos em Peniche, num mar de sangue rubro, um fardado nazi manchou de escarlate as pedras de uma gruta no bosque das Cersedas, tudo por causa de um tesouro. A chave de tudo isto está na cabeça. Não do soldado nazi, que veio ao enclave salazarista em busca de riquezas para levar para Hitler, mas de Mário Contreiras, que deixa ao neto um labirinto de pistas e evidências ao longo de toda a vida - e ao longo de toda a vila.
“Os meus avós contavam-me histórias. Algumas dessas histórias têm pequenos traços destas que estão aqui, mas também são histórias que eu ouvi de outras pessoas e também que inventei. O livro no final tenta mostrar que ouvimos as histórias, mas - não sei se é uma necessidade nossa, se é algo que podemos ou não fazer -, o certo é que acrescentamos sempre um ponto às histórias que ouvimos, ou acrescentamos vários pontos. Este livro é no fundo o ponto que eu acrescento às histórias que fui ouvindo - e há certas partes do livro em que acrescento mesmo muitos pontos.
Muitas vezes as pessoas estão mais preocupadas em encontrar os erros mas não tanto em usar a língua
Comecei a imaginar isto num blogue, que até é um meio muito imediato. Mas o certo é que escrevi uma primeira versão, mas depois senti essa necessidade de demorar um pouco mais e de pensar um pouco mais nestas histórias, porque elas encadeavam-se umas nas outras.
Há esta necessidade de ir para lá do imediato, mas o imediato também é bom, não tem de ser uma coisa contra a outra. E o certo é que este livro começou numa ideia de um pequeno conto para um blogue, que depois acabou por se estender para um livro.
Escrevi dois livros anteriores sobre a língua portuguesa e uma das coisas que dizia nesses livros era que temos de estar preocupados com a língua, mas devemos estar preocupados até em usá-la e isso quer dizer contar histórias, ouvir histórias, conversar, escrever, ler. Muitas vezes as pessoas estão mais preocupadas em encontrar os erros - que são importantes, é verdade - mas não tanto em usar a língua.
Por outro lado, não tanto na questão linguística, mas mais na minha formação académica - estudei na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas [FCSH-UNL], que na altura era uma faculdade onde havia um departamento de estudos anglo-portugueses em que estudávamos de forma mais profunda as relações entre Portugal e Inglaterra. E essas relações estão aqui expostas - este episódio da invasão da ilha de Peniche pelas tropas inglesas é real, este episódio existe e esse imaginário vem também da altura em que eu estudava isso na faculdade.
Depois, também sou tradutor e estudo a tradução a nível académico e dou aulas de tradução [na FCSH-UNL] e este estudo também está aqui, porque a certa altura aparecem línguas e aparece uma personagem que tem de comunicar com outra e não têm uma língua comum.
Todos nós quando escrevemos histórias vamos buscar os imaginários que fomos criando ao longo da vida - tenho aqui o imaginário da minha terra, o imaginário daquilo que estudei na licenciatura, naquilo que fui lendo ao longo da vida em muitos livros, as histórias que fui ouvindo, portanto há aqui uma junção; mas não foi propositado, ou seja, não me sentei para escrever um livro sobre as relações entre Portugal e Inglaterra. Acabou por ser natural ao tentar escrever sobre histórias da minha terra - obviamente fui-me lembrar daquilo que tinha lido e estudado ao longo da vida.”
Dois velhos, dois novos, dois GNR e um faroleiro vão à procura de um tesouro
Navegar pela história da baleia que engoliu um espanhol - ou um castelhano, precisa o autor - é percorrer milénios de cultura ocidental. Cânone após cânone, mito após mito, Marco Neves, traz-nos uma história recheada de outras. Das tragédias românticas ao bom gosto Shakespeariano, até às picardias bélicas de um país camoniano que anda à procura de si - seja nos mares longínquos da Índia, seja nas águas calmas das Berlengas.
Todavia, ao leitor podem ser evidentes outras referências. Das Mil e uma noites e respetiva Scheherazade, personificada por um frei vindo de um mito local, até à narrativa bíblica de Jonas, que acabou dentro de um grande peixe - e sobreviveu.
São ao todo cinco as histórias. São ao todo cinco as narrativas por onde passamos para chegar (ou não) a esse tesouro antigo que há de estar escondido debaixo dos pés dos penichenses e das ondas de Supertubos, presumimos.
Porém, tantas histórias podem deixar os mais distraídos algo desorientados. Perdidos, até. Marco concorda, mas é um risco calculado:
“O livro a certa altura torna-se um pouco confuso de propósito, ou seja, mistura muitas das histórias e a certa altura o leitor é capaz de se ver um pouco perdido, mas é a minha intenção, para quase imitar um labirinto dentro dessas histórias.
O que vemos são uma série de viagens, pessoas que chegam, pessoas que partem e histórias que no fundo se vão mantendo e se vão transmitindo ao longo destas viagens
Visto de longe, o que temos aqui, neste livro, são as camadas geológicas todas, todos os povos, todos os contributos para as histórias das nossas terras aqui nesta zona que é hoje Portugal, porque temos aqui romanos, mouros, espanhóis, ingleses, portugueses, galegos, temos toda uma série de povos que vêm aqui parar e no fundo, visto de longe, o que nós temos - acho - é uma viagem. No livro há personagens que fazem uma viagem e vão pela Europa fora, voltando ao mesmo sítio, mas mesmo se olharmos só para aquela quase-ilha de Peniche, o que vemos são uma série de viagens, pessoas que chegam, pessoas que partem e histórias que no fundo se vão mantendo e se vão transmitindo ao longo destas viagens. Em resumo, visto de longe, o livro mostra uma série de viagens, mesmo quando as histórias não saem do mesmo sítio.
Aqui, temos o império Romano, temos o início da nacionalidade, na baleia que engoliu um espanhol estamos a falar da altura batalha de Aljubarrota, temos também a nossa própria história, a nossa tentativa - bem-sucedida - de ficarmos independentes.
No fundo, estas histórias, transmitidas ao longo dos séculos, são uma espécie de elo de ligação dos vários povos e das várias pessoas, reais, que viveram ao longo da história, representadas aqui por pessoas inventadas, por personagens, mas que não deixam de representar os portugueses, que viveram desde há muitos séculos aqui. E nós vamos ouvindo estas histórias e vamos transmitindo, e é esta partilha cultural ao longo dos séculos que eu também tentei homenagear neste livro.
No entanto, quando as contamos de novo vamos já contar de outra maneira e com certos retoques que são nossos. No fundo cada um de nós está a acrescentar alguma coisa às histórias do nosso país e às histórias das nossas terras e das nossas famílias. Por isso, essa junção de personagens reais com personagens inventadas é propositada e tem a ver com esta necessidade também de recontar as histórias que ouvimos.
Mesmo as personagens reais, por exemplo a padeira de Aljubarrota que aparece aqui não é exatamente a padeira de Aljubarrota contada por outra pessoa. Vamos ouvindo estes nomes e vamos inventando à medida que recontamos as histórias.”
Há que ter atenção: este não é um manual de história, “nem sequer é um romance histórico puro, no sentido em que o romance histórico tenta ser muito realista e o livro não o é, o livro é um pouco louco e tem alguns exageros - é um folhetim, com exageros, guerras, mortos, com mistérios, tesouros, mapas do tesouro", diz o autor.
"É um livro com histórias muito exageradas, mas tentei não enganar o leitor; tentei não pôr aqui nenhum facto que pareça real e que não seja. Obviamente, quando o leitor lê a história de uma baleia que engole um espanhol, sabe que aquela história não é real. Mas, por exemplo, quando falo da invasão da zona de Peniche pelas tropas inglesas, pelo Francis Drake e pelo Dom António, aí sim, essas personagens são reais e tento não errar, embora seja sempre difícil, quando estamos a misturar a história com as nossas próprias histórias, mais pessoais.
Penso que o leitor quando acaba o livro fica a conhecer um pouco mais a história do país, conhece a origem da expressão "amigos de Peniche", que hoje já usamos pouco - felizmente, para quem é de Peniche -, sabe que houve esta invasão, fica a conhecer também o garum, essa especialidade romana que se vendia na altura, fica a saber que havia conventos nas Berlengas, fica a conhecer alguns pontos do imaginário real desta zona do país, que talvez não conhecessem.”
Uma baleia a caminho de uma estante
A bordo desta aventura - destas aventuras - o romance de Marco Neves chega hoje (05/07) às livrarias.
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