Quando as tropas de Putin invadiram a Ucrânia, há pouco mais de um ano, Angelica vivia em Zaporijia e passou três dias num abrigo antibomba, em casa de uns amigos. A ucraniana manteve-se a si e à sua família a salvo, não sabendo que ao longo da sua fuga da Ucrânia, e já longe da guerra, a preocupação com a segurança da família ia intensificar-se. Agora é uma das 1500 ucranianas que decidiu deixar Portugal e voltar a um cenário de guerra.

Mas voltando ao início da fuga de Angélica e da sua família, passados três dias num abrigo antibomba foi de comboio até Lviv, a planear a vida a cada momento, sem conseguir pensar no futuro. E forçando-se a não pensar que a vida até ali tinha sido coisa do passado.

Em Lviv, Angelica, a mãe, uma amiga e o filho de seis anos caminharam até Lublin, na Polónia. Já em Lublin, passaram dois dias em casa de um amigo, até que foram encaminhadas para um centro de refugiados numa igreja fora da cidade. Angelica não se alonga nos detalhes, mas explica que a situação era estranha, que não as deixavam sair para o pátio e que a determinada altura começaram a temer pela sua segurança. É esse o momento em que decidem fugir.

É a segunda vez que Angelica foge para proteger a sua família, e nesta história não há de ser a última. Regressou a Lublin onde um grupo de voluntários os leva, a si, à sua mãe e ao seu filho, até Portugal.

Começa assim a terceira e última etapa desta viagem ao desconhecido. Na altura não conhecia Portugal, nem tinha nenhum contacto aqui. Mas já havia ouvido falar do país várias vezes. O  seu marido tinha o sonho de viver em Portugal, inclusive chegaram a ver destinos, "mas entretanto começou a guerra", explica.

Assim, Angelica cumpriria o sonho do casal e prepararia a chegada do marido. Não tinha ficado, como a maioria dos homens ucranianos, a lutar na guerra, mas ficou de certa forma a lutar pelo país, levando comida e refeições aos sítios onde não há.

A primeira paragem de Angelica em Portugal é na Azambuja. Ficou surpreendida porque olhando em volta não fazia parte do imaginário que tinha. Nos primeiros quatro dias, como tantos refugiados, viveu num gimnodesportivo e, como tantos outros, sente-se grata por lhe terem aberto as portas. Fez uma amiga nesta jornada - que ainda vive em Portugal, em Viseu - e as duas procuraram juntas casas para arrendar em Portugal. Mas não tinham nenhuma garantia legal que lhes permitisse arrendar um imóvel e, por isso, a curto prazo a aparente solidariedade de uma família pareceu a melhor opção que Angelica tinha.

A segunda paragem da viagem de Angelica em Portugal é assim Loures, para viver com uma família que, como tantas outras, abriu as portas de sua casa para receber refugiados.

Quando se pergunta a Angelica como foi viver com a família fica desconfortável. Endireita-se na cadeira, coça a orelha, pigarreia e ensaia um começo. O inglês, língua com que conversa com o SAPO24, não é o melhor. Mas nota-se que tenta escolher com cuidado as palavras do seu léxico, ainda que seja reduzido nessa língua. Explica que no princípio correu tudo bem, mas que depois começaram os problemas. Diz que o patriarca da família não se entendeu com o seu filho, na altura uma criança de seis anos.

Perante a insistência do SAPO24 explica com algum receio, mas de forma simples "ele  (o homem) bateu-lhe". Acontece que a família que os recebeu já tinha uma criança, mais ao menos da mesma idade, e com a chegada de uma outra criança a filha do casal sentiu ciúmes. Os dois implicavam muito e irritavam-se nas brincadeiras. Um dia o pai decidiu acabar a tropelia com uma medida mais drástica. Foi o dia em que Angelica decidiu que não podia ficar mais ali. Passados quatro meses naquela casa percebeu que aquele evento era o limite. Se tinha fugido da guerra para salvar o filho, não o podia expor àquele ambiente.

Confessa, sem esconder a vergonha, que durante o tempo em Portugal sentia muitas saudades do marido, di-lo ainda entre sorrisos nervosos. Depois do episódio com filho diz ter ficado muito nervosa. Saiu de casa para tentar arrendar um espaço, outra vez, "mas só tinha dinheiro ucraniano e pouco". Não encontrava nenhuma casa por €700, que era quanto podia pagar por mês. Os nervos foram adensando e depois de uma chamada ao marido decidiu que estava na altura de voltar. Naquele momento foi como se uma calma se apoderasse dela, conta. A mãe de Angelica também já não estava feliz em Loures, era lava pratos num café, mas sentia-se muito longe da sua realidade, da sua língua e dos seus.

Angelica diz ainda assim sentir gratidão em relação à família que a acolheu durante quatro meses. Por isso, quando a mãe da família a chamou, "muito tensa", para perceber o que se passava, decidiu que não lhe contaria a verdade. Não queria criar problemas entre o casal, até porque aquela mulher tinha sido muito importante para ela durante aqueles quatro meses e não a queria magoar.

Em Portugal, entre procura de casas e antes de falar com o marido, ainda falou com uma advogada portuguesa que entretanto se tinha tornado sua amiga. Foi aconselhada a denunciar o caso e pedir ajuda, mas recusou-se a fazê-lo. Além de não fazer parte do seu feitio, sentia-se numa situação de vulnerabilidade. "Estas pessoas ajudaram-me, não tenho o direito de lhes trazer mal."

O dinheiro poupado para as rendas do apartamento em Loures serviu, em vez disso, para três bilhetes de avião. Ao aterrar sentiu-se em casa, "noutro planeta, mas em casa". Na altura da viagem para Portugal pensou que esta seria a sua nova casa, era ali que iria viver permanentemente até que o marido conseguisse juntar-se a ela. Por isso, a viagem de regresso tornou-se ainda mais mágica, ainda que agridoce.

Na Ucrânia sente que é ali que pertence. Mas sabe que não há futuro, e quanto mais tempo a guerra durar menos futuro antevê. Sabe que nos próximos 10 anos, pelo menos, o país não estará numa boa situação económica. Preocupa-a acima de tudo o filho, agora com sete anos, que está sem escola. Ainda o levou para Odessa durante quatro meses para que pudesse ter aulas numa escola privada, mas financeiramente tornou-se incomportável. Em Zaporijia pode ter os pais juntos, a mãe calma e estar num ambiente em que os pais sentem que, pelo menos dentro de casa, controlam quem lhe pode fazer mal. Mas Angelica sabe que esta não é a situação ideal.

Assegura que agora já se habituou ao barulho das explosões, a sentir a casa a tremer e a ver estilhaços por todo o lado. Ainda que no início tenha ficado muito deprimida, agora diz ser "o normal". Justifica-se, sabe que não é "normal" viver no meio de sirenes e explosões, mas que se acostumou. "É a minha casa". Contudo ainda não consegue ser como os seus compatriotas que andam na rua e se esquivam de estilhaços ou de tiros como se nada fosse. O seu filho não sentiu dificuldade na adaptação, mas Angelica sabe que "o lugar de uma criança não é passar o dia em casa". Já a sua mãe foi como se tivesse recebido um bálsamo de felicidade no regresso à Ucrânia, ainda que tenha sido a um país diferente daquele que conhecia.

Angélica está a trabalhar como gestora de território em Odessa. E, online, continua como conselheira de saúde feminina. Aqui confessa ao SAPO24 que no início da guerra manteve as suas clientes russas, mas agora é impossível. Tornou-se muito desconfortável. No início muitas clientes escreveram-lhe a dizer não concordavam com a guerra, mas algumas, com o passar do tempo, foram-se tornando mais vulneráveis à propaganda russa e Angelica não tem energia para lidar com essa luta também.

Apesar do sucedido, o sonho de viver em Portugal não passou, mas agora só quando conseguir viajar com o marido. Curioso que Angelica tenha sido obrigada a sair do país onde o seu marido sempre sonhou viver, e ironicamente onde criou um canal de youtube onde fazia vídeos para mostrar Portugal ao marido e aos seus conterrâneos.

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*Imagem de capa ilustrativa. Clientes tomam café num restaurante em Odessa, apenas possível graças ao gerador que se encontra na rua. É o "normal" possível num país em guerra. 16 de dezembro de 2022. Créditos: Oleksandr GIMANOV / AFP