E é aos ombros dos três que Newton chega à sua lei da gravitação universal segundo a qual todos os corpos se atraem uns aos outros no universo. Como diz Carlos Fiolhais, vai ser preciso esperar mais 200 anos para chegue outro gigante, Albert Einstein, que revê ou aperfeiçoa alguns conceitos de Newton e que pela primeira vez declara que o espaço e o tempo não são conceitos absolutos mas sim determinados - encurvados como irá descrever - pela massa e pela energia. Nascia assim uma nova teoria da gravitação que conhecemos como a teoria da relatividade geral.
É a história e os textos científicos destes homens que Stephen Hawking reuniu num livro único pela primeira vez. “Aos ombros de gigantes” condensa o que fomos sabendo do mundo físico ao longo de 500 anos tendo por base a Física, descrita na edição portuguesa por um dos nossos grandes da ciência, Carlos Fiolhais, como “o empreendimento humano de descoberta do mundo”.
Um empreendimento que nunca foi fácil e que, apesar de hoje vivermos o primado da ciência e da tecnologia, nunca se tornou mais simples. É por isso tão certeira a expressão “aos ombros de”, mesmo que escritores como Goethe falem de um “salto” diferente de alguns. Já lá chegamos.
Ao longo dos séculos, a ciência viveu paredes meias com a filosofia, com a religião e, como não dizê-lo, com a poesia. Leiam-se os títulos de obras fundamentais que Hawking compilou neste grande livro da Física e temos: “As Revoluções dos Orbes Celestes”, de Copérnico, "Diálogo sobre os dois máximos sistemas do mundo: ptolomaico e copérnico”, de Galileu, “Harmonia dos Mundos”, de Kepler, “Principia”, de Newton e, claro, a “Teoria da Relatividade” de Einstein. Todas poderiam versar sobre meramente a beleza do mundo, das estrelas, do movimento. Todas poderiam ser apenas arte.
No entanto, todas e cada uma, mudaram a forma como entendemos o mundo e ao fazê-lo mudaram a forma como o homem vê o seu papel nesse universo cheio de mistérios.
“Muita gente (inclusive eu) acha que o surgimento desse universo tão complexo, estruturado com base em leis simples, exige o apelo a algo chamado ‘princípio antrópico’ que nos remeta de volta à posição central, a qual, por excesso de modéstia, não reivindicamos desde que fomos destronados por Copérnico”. São palavras de Stephen Hawking na introdução do “Aos ombros de gigantes” e que conclui assim: “Porém, como este livro mostra bem, os nossos conhecimentos não se desenvolvem apenas por meio de um processo de construção gradual e constante sobre os pilares dos trabalhos anteriores. Às vezes, como no caso de Copérnico e Einstein, temos de dar o salto intelectual para um novo cenário. Talvez Newton devesse ter dito: ‘usei os ombros de gigantes como trampolim’”.
Seguem-se mais de mil páginas dedicadas a cinco grandes nomes da física. A cinco grandes nomes: Copérnico, Galileu, Kepler, Newton e Einstein. Para cada um, Hawking traça uma biografia - factual mas interpretada por ele - seguida dos textos científicos com que mudaram a forma como entendemos o mundo. Um movimento que reporta ao século XVI com o padre e matemático polaco Nicolau Copérnico considerado o fundador da astronomia moderna e que questionou os postulados de Aristóteles que determinavam que era o sol a rodar em torno da Terra, assumindo as estrelas como “motores” que a teologia interpretou, por sua vez, como anjos. E assim, a ciência de Aristóteles casou na perfeição com a religião católica, explicando aos homens o que viam no mundo físico em harmonia com o que não viam mas acreditavam: num céu e num inferno que existiam por trás destas estrelas, ou motores, ou anjos, conforme a nomenclatura.
Talvez nunca se tenha pedido tanto da Humanidade
Copérnico, o matemático, e que estudou Medicina e Direito como era comum na época, só publicou a sua obra de referência - aquela em que explica e justifica que o homem e a Terra não estão no centro do universo, pelo contrário, rodam em torno de outro centro do cosmos - no ano em que morreu e ainda assim a mesma foi alterada por Osiander, um padre luterano que assim procurou torná-la mais conforme com o que se acreditava na época. E numa evidência de como a ciência é extraordinariamente poética, seria um escritor, o alemão Goethe, a descrever a forma como Copérnico expulsou os homens do centro do mundo. “De todas as descobertas e opiniões, nenhuma pode ter tido um efeito maior do que a doutrina de Copérnico. O mundo tornava-se mal conhecido como redondo e completo em si mesmo quando se pediu que ele abrisse mão do enorme privilégio de ser o centro do universo. Talvez nunca se tenha pedido tanto da Humanidade (…)”.
Talvez não. Mas não pararia por aí. 90 anos depois da morte de Copérnico, em 1633, seria Galileu Galilei a ser julgado em público pela “heresia” de ter escrito o livro “Diálogo sobre os dois máximos sistemas do mundo: ptolomaico e copérnico”. Ptolomeu, que dá o nome ao mundo ptolemaico, foi um egípcio que viveu entre 87 e 150 e que definiu os epiciclos ou trajetórias descritas pelas estrelas e planetas em redor da Terra, uma teoria que casou e consolidou a visão aristotélica do mundo. Passariam quase 1500 anos e Galileu, ajoelhado e de Bíblia nas mãos, teria de abrir mão do que escrevera para que pudesse escapar a sentenças de prisão perpétua, senão pior como a de Giordano Bruno que acabou queimado na fogueira pela Inquisição.
“E, no entanto, move-se”
Diz a lenda que, após penitenciar-se de tudo o escrevera, ao erguer-se do chão, Galileu terá resmungado “Eppur si muove” - “e, no entanto, move-se”. No livro, Hawking conta que esta é uma versão - apesar da sua inegável piada e conveniência - descartada pela maioria dos historiadores que a considera um mito. A ironia estava inerente aos próprios “Diálogos” em que o defensor de Aristóteles e Ptolomeu se chamava Simplício, nome e personagem que chegou a ofender o próprio Papa da época que se terá julgado visado.
Caberá ainda a Galileu o feito de inventar o primeiro telescópio - lá está, não sem um pequeno trampolim antes, o do holandês Hans Lipperhey que registou a patente de uma luneta que tornava os objetos mais próximos. O suficiente para espicaçar a curiosidade e até enervamento de Galileu que tratou de aperfeiçoar o instrumento chegando ao telescópio com capacidade de aumentar 30 vezes aquilo que o olho desarmado via. E abrindo assim, em mais um exercício de pura poesia, o cosmos à humanidade na descrição de Hawking.
Só em 1979, o Papa João Paulo II disse que talvez a Igreja se tivesse enganado em relação a Galileu. Só em 1992 foi assinado o decreto que atestava isso mesmo.
“Se alguma vez já tivesse sido atribuído um prémio para a pessoa que na História mais se tivesse dedicado à busca da precisão absoluta, o astrónomo alemão Joannes Kepler provavelmente teria sido o vencedor”. Começa assim o capítulo do “Aos ombros gigantes” sobre este gigante em particular. “Kepler era tão obcecado pelas medidas que até calculou o seu próprio período de gestação com precisão de minutos - 224 dias, 9 horas e 53 minutos (nasceu prematuro)”.
Uma obsessão que fez dele a pessoa ideal para produzir as tabelas astronómicas que fariam reconhecer a teoria heliocêntrica por que Copérnico e Galileu tinham batalhado antes dele. É igualmente curioso que tanto Kepler como Copérnico - que era padre - fossem homens profundamente religiosos que viam o estudo como “um cumprimento do seu dever cristão de entender o universo que Deus criou”, como descreve Stephen Hawking. Isto apesar da mãe de Kepler quase ter sido morta na fogueira por bruxaria - não eram tempos fáceis estes, nunca foram -, sendo que foi também ela a mostrar-lhe, em 1577 um “grande cometa no céu”, momento que terá marcado para sempre o cientista.
Ao serviço do dinamarquês Tycho Brahe, um grande observador astronómico a olho nu e também um homem rico, Kepler mapeou os dados relativos aos movimentos de Marte, traçando uma elipse e mais do que isso garantindo credibilidade matemática à teoria proposta por Copérnico. É a ele que pertencem os créditos das órbitas elípticas e é por causa desse trabalho que os movimentos dos planetas começam a ser passíveis de prever. As três leis dos movimentos planetários que enumerou ainda hoje são ensinadas aos estudantes de Física e, diz Hawking, “foi a terceira lei de Kepler, e não uma maçã, que levou Isaac Newton a descobrir a lei da gravitação”.
“Se os astrólogos acertarem alguma vez, tal deverá ser considerado sorte”
Numa época em que astrologia e astronomia viviam paredes meias, foi a primeira que lhe garantiu sustento em vários momentos da vida. Mesmo que a designasse como “filhinha maluca da astronomia” e que afirmasse peremtoriamente que “se os astrólogos acertarem alguma vez, tal deverá ser considerado sorte”. Ele próprio acertou no ano em que previu um inverno muito frio e uma invasão turca - ambas aconteceram e foi aclamado por isso.
A sua obra de referência, “Harmonias do Mundo”, ficou concluída em 1618. Trata-se não de um livro mas de uma série de cinco obras em que alargou a sua teoria da harmonia à música, à astrologia, à geometria e à astronomia. “Kepler acreditava que havia descoberto a lógica de Deus na planificação do Universo”, escreve Hawking. “Atrevo-me francamente a confessar que roubei as naus douradas dos Egípcios para construir um tabernáculo para o meu Deus muito para além dos grilhões do Egipto. Se me perdoares, alegrar-me-ei; se me reprovares, eu aguentarei. O dado foi lançado, e eu estou a escrever o livro; se para ser lido agora ou na posteridade, não importa. Ele pode esperar um século por um leitor, tal como o próprio Deus esperou 6000 anos por uma testemunha”, lia-se no livro V da “Harmonias do Mundo”.
Que na realidade teve de esperar mais ou menos 100 anos até que outro físico visse nas enumerações de Kepler um ombro para ver mais longe. Um físico chamado Isaac Newton e é neste ponto que se pode também esclarecer que títulos magníficos, como o do livro que serve de tema a este artigo, podem por vezes ter na essência realidades bem mais prosaicas. Escreve Hawking: “Geralmente mencionada como reconhecimento de Newton das descobertas dos seus percursores, Copérnico, Galileu e Kepler, a passagem transformou-se numa das mais famosas citações da história da ciência. de facto, Newton reconheceu as contribuições desses homens, algumas vezes em público, outras vezes nos seus escritos privados. Porém, na sua carta a Hooke, Newton referia-se a teorias ópticas, especificamente ao estudo das placas finas, para o qual Hooke e René Descartes haviam dado contribuições significativas”. Alguns académicos, acrescenta Hawking, interpretaram ainda a frase como um “insulto velado e subtil” a Hooke cuja baixa estatura fazia dele tudo menos um gigante.
A obra fundamental de Newton é comummente conhecida como “Principia”, de seu nome completo “Princípios Matemáticos de Filosofia Natural” e é com este trabalho que conquistou o seu lugar na História ao definir os princípios da gravitação universal e a leis do movimento e da atração. Como já se viu nesta breve síntese de 500 anos de Física, um trabalho que viria a ser reinterpretado por Einstein, o cientista a quem coube o tal salto intelectual para um novo cenário, mas à época, entre o século XVII e XVIII, Newton foi um nome revolucionário.
Inglês, nasceu no dia de Natal no ano em que morreu Galileu - 1642. Teve uma vida marcada por vários colapsos emocionais na descrição de Hawking, com obsessões de vingança que tanto o poderão ter levado onde chegou como o podem ter impedido de chegar mais longe. Nestas querelas, uma das mais notórias terá sido com o matemático alemão Leibniz com quem disputou a primazia sobre cálculo diferencial e integral.
Os tecnólogos, cientistas e descobridores de novos mundos do século XXI, sobretudo aqueles que conhecem bem a História, não se espantarão com a intensidade das discussões científicas em pleno século XVIII. Será de uma dessas discussões que nascerá o Principia de Newton.
"A Natureza e as leis da Natureza jaziam ocultas nas trevas; Deus disse: Faça-se Newton e em todo o lado se fez luz"
"Numa reunião de triste memória, realizada em 1684, três membros do Royal Society, Robert Hooke, Edmond Halley e Christopher Wren, o famoso arquitecto da catedral de São Paulo, envolveram-se uma animada disputa sobre a relação do inverso do quadrado que rege o movimento dos planetas. Em princípios da década de 1670, a conversa dominante nos cafés e noutros pontos de encontro dos intelectuais de Londres era se a gravidade emanava do Sol em todas as direções e se precipitava com intensidade inversa ao quadrado da distância, tornando-se, assim, cada vez mais difusa sobre a superfície da esfera, à medida que se expandia na sua área" descreve Hawking. É assim que nasce o "Principia" de Newton. "Hooke declarou que deduzira a partir da lei das elipses, da autoria de Kepler, a prova que a gravidade era uma força emanante, mas que não a revelaria a Halley e a Wren, até que estivesse pronto a torná-la pública. Furioso, Halley foi a Cambridge, descreveu a Newton as alegações de Hooke e propôs o seguinte problema: 'Qual seria a forma da órbita de um planeta ao redor do Sol se ele fosse atraído em direção ao Sol por uma força que variasse inversamente com o quadrado da distância?'". "A resposta de Newton foi surpreendente. 'Seria uma elipse, respondeu imediatamente, e disse a Halley que tinha resolvido o problema quatro anos antes, mas que não sabia onde guardara a demonstração no seu escritório'".
Seguiram-se 18 meses de trabalho intenso - em que muitas vezes Newton se esqueceu até de comer - e que se traduziram nos três volume do "Principia", a obra-prima do cientista inglês. Galileu provara que os objetos eram "puxados" para o centro da Terra; Newton conseguiu provar que essa força, a gravidade, afectava a órbita dos planetas. Aos ombros de gigantes, aqui sem qualquer azedume ou segunda intenção.
Foram apenas impressas 500 cópias da primeira edição, não sem argumentos de Hooke em conforme tinha sido fonte das comprovações científicas que Newton apresentava. Alegações que consumiram o cientista e que o fizeram adiar o terceiro volume do "Principia". Newton seria já depois da morte do seu arqui-inimigo Hooke sucessivamente presidente da Real Casa da Moeda e presidente da Royal Society e viveu suficientes anos - até 1727 - para assistir às segundas e terceiras edições da sua obra de referência. Escreve Hawking: "O poeta Alexander Pope, contemporâneo de Newton, escreveu com o máximo de elegância o dote que o grande pensador deixou à Humanidade: 'A Natureza e as leis da Natureza jaziam ocultas nas trevas; Deus disse: Faça-se Newton e em todo o lado se fez luz".
A verdade de uma teoria está na mente e não nos olhos
E serão precisos mais quase 200 anos até o mundo se deparar com outro gigante da Física. Albert Einstein, nascido em 1879 e que morreu já no século XX, em 1955. Um génio que dá sentido à vida de tantos outros, reconhecidos ou não, cujo trajeto foi tudo menos óbvio. Quando estava na escola primária, o diretor disse ao seu pai: "Ele nunca terá sucesso em nada". E seria assim por largos anos da sua vida adulta, em empregos temporários e sub-pagos, aquém da inteligência que a História viria a reconhecer. Aos 42 anos, em 1921, ganhou o Prémio Nobel da Física, um reconhecimento que lhe mudaria a vida, mas não a essência. Manter-se-ia o mesmo cientista que um dia disse: "Eu raramente penso por palavras. Um pensamento urge, e só depois posso tentar expressá-lo por palavras".
Escreve Hawking sobre este gigante: "é um tributo à visão de Einstein que ainda hoje os físicos continuem a procurar uma grande unificação das teorias físicas. Einstein revolucionou o pensamento científico do século XX e para além dele". E explica: o que Newton fez em relação ao nosso entendimento da gravidade, Einstein fê-lo no que respeita à nossa visão do espaço e do tempo, conseguindo nesse espaço ultrapassar a visão newtoniana de tempo. O que fez na equação que se tornou conhecida em todo o mundo, mesmo para quem não sabe o que significa - E=mc2 (a energia é equivalente à massa multiplicada pelo quadrado da velocidade da luz) foi o ponto de partida para inúmeras descobertas futuras, nomeadamente sobre a cisão nuclear e inevitavelmente a bomba atómica. Isto vindo do cientista que sempre se considerou um pacifista.
"Durante toda a sua vida, procurou entender os mistérios do cosmo por meio de investigações com o pensamento em vez de confiar nos seus sentidos. ' A verdade de uma teoria está na mente, e não nos olhos".
Estes foram os gigantes da Física contados pela lente de Stephen Hawking. Ele próprio um gigante - mesmo que ainda hoje não saibamos se aos ombros ou se usando um trampolim. Para aquilo que importa, na realidade, não importa.
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