1. A diversidade linguística da Ucrânia

Durante séculos, a divisão linguística da Ucrânia foi tanto regional como social. A maioria da população, até aos tempos da Guerra Fria, sempre falou ucraniano e viveu no campo.

Também para o Este e o Sul, durante a colonização tardia, imigraram russos, alemães, gregos, búlgaros, romenos, albaneses, judeus, suecos, etc., mas eram uma minoria, mesmo todos juntos. Sou descendente dos camponeses russos que imigraram para o Sul, mas não nasci ali. Antes da segunda metade do século XVII, o Este e, antes do século XIX, o Sul foram um país diferente: de nómadas turcomanos com, até o século XIII, restos de população que falava alano (uma língua que também foi falada na Península Ibérica). É na fronteira com este Wild East, sempre em guerra, que se formou a cultura única dos cossacos.

A maioria camponesa falava ucraniano, mas não era o caso da aristocracia, dos funcionários, da burguesia. A Polónia na primeira metade do século XVII controlava quase todas as terras onde viviam ucranianos. Já a aristocracia, mesmo se não era polaca, aceitou gradualmente a língua, a religião e a cultura polacas. Ao mesmo tempo a exploração dos camponeses pelos donos de terras intensificou-se. Muitos judeus imigraram para as cidades e vilas e monopolizaram vários negócios. A Ucrânia estava em vias de se tornar uma Polónia Oriental, mas a situação foi muito exacerbada pelo conflito religioso e social. Os camponeses e os cossacos que falavam ucraniano e pertenciam à Igreja Ortodoxa sentiram-se oprimidos pelos católicos polonófonos e judeus.

No ano 1648 tudo mudou. Através da rebelião de cossacos estabeleceu-se no Wild East um estado ucraniano separado, purificado, por assim dizer, dos polacos e judeus. Mas as regiões velhas, no Oeste, ficaram sob o domínio da Polónia. Na mesma época, uma região quase deserta a este da fronteira com a Rússia (onde nasci e vivo) foi colonizada por uma multidão de ucranianos refugiados e um punhado de russos.

Legenda: Riscas vermelhas: representam os territórios dependentes do Canato da Crimeia; Riscas roxas: representam os territórios dependentes do império Otomano; Riscas azuis: representam os territórios dependentes da comunidade Polaco-Lituana; Riscas verdes: representam os territórios dependentes do Czarato da Rússia /Império Russo; Pontos amarelos representam a fronteira oriental do Sacro Império Romano-Germânico; Riscas azuis claras seguidas de azul mais escuro representam o Condomínio do Reino da Polónia e do Grão Ducado da Lituânia.

2. Entre o polaco e o russo

Naquela época coexistiam na Ucrânia várias línguas, incluindo polaco, eslavo eclesiástico, latim, grego. As línguas antigas, como na Europa Ocidental, eram conhecidas apenas por uma pequena minoria. Mas o polaco durante algum tempo competiu com o ucraniano mesmo no estado cossaco, onde já não moraram polacos. Como em Portugal, a língua do inimigo era usada contra o mesmo inimigo: imprimiram-se textos contra o catolicismo em polaco.

O estado cossaco optou pela Rússia com que compartilhava a religião e a língua de alta cultura (a eslava eclesiástica). O clero ucraniano integrou-se na sociedade russa com facilidade, já que tinha mais educação do que o russo, e o czar sentia que a Rússia era uma nação atrasada. O papel do clero ucraniano na formação da ideia da nação russa comum (de russos, ucranianos e bielorussos) foi muito importante. A língua desta nação afastou-se gradualmente do eslavo eclesiástico e, embebida de elementos da língua russa popular, chegou ao ponto em que se tornou a língua literária russa moderna. A contribuição de um ucraniano, Gogol, foi uma das mais importantes.

Quanto à nova aristocracia cossaca, procurava preservar a autonomia do seu estado dentro da Rússia — mas falhou. Integrou-se na aristocracia russa e, ao mesmo tempo, uma parte dela criou o projeto nacional ucraniano moderno e a língua ucraniana literária moderna, baseada diretamente na língua do povo. É um ponto importante: o nacionalismo ucraniano surgiu aqui, no Leste, nas cidades de Kharkiv, Poltava, Chernihiv, e foi inspirado em grande parte pelo nacionalismo europeu, especialmente o de Herder.

Foi uma situação típica e paradoxal: as massas camponesas, que falavam ucraniano, não tinham um sentimento nacional formado, e uma minoria das classes altas que o tinha, precisava de competir pelas almas com o império que se nacionalizava ao mesmo tempo (o processo em que participava a maioria destas mesmas classes altas).

Foi naquela época (na primeira parte do século XIX) que o processo atravessou o rio Dnipro. No Oeste nada mudara: mesmo sob o domínio do império russo a aristocracia católica polonófona e a burguesia judia dominavam totalmente a vida social. Mas em 1772 aconteceu um evento importante: o império austríaco anexou uma parte daquele território, isto é a Galícia (e duas outras terras pequenas também).

3. O nacionalismo ucraniano e a repressão da língua

A Galícia ficava sob a dominação cultural polaca (com a competição alemã) e estava protegida do império russo administrativamente. Porém, quando a nova elite ucraniana da Galícia (filhos de padres greco-católicos) descobriu o nacionalismo, viu três opções: não apenas a polaca, mas também duas importadas do Leste: a russa e a ucraniana. A parte que escolheu a opção ucraniana chegou para criar um porto de abrigo para o nacionalismo ucraniano que já se tinha formado no Leste.

Durante um longo tempo o combate espiritual entre os dois impérios — o russo, com estado, e o polaco, sem estado, mas com uma elite vigorosa — era a única coisa que preocupava São Petersburgo, no Oeste. Já no Leste e no Sul tudo parecia calmo: aristocracia era quase totalmente russófona, nas cidades formaram-se comunidades russas, os judeus gradualmente secularizavam-se e também optavam pela língua russa.

Porém, no ano 1863 o império viu no movimento ucraniano um problema. Cometeu o mesmo erro que Putin está a cometer agora: tentou submeter o nacionalismo à força e provocou uma resistência cada vez mais forte. O governo não quis gastar muito dinheiro e assimilar as massas camponesas do modo francês — através da educação obrigatória. A proibição de editar livros e jornais em ucraniano parecia uma opção barata e eficaz, mas provou-se inspiradora para nacionalistas. (Note-se que não foram proibidos todos os livros, mas apenas os destinados às massas.) A opressão mais metódica durou de 1876 até à revolução de 1905. Foi nesta época que foi muito útil o porto de abrigo na Galícia.

Na verdade, os impérios ficaram demasiado robustos. O movimento nacionalista tinha pouca hipótese de vencer no combate espiritual contra a Rússia e mesmo contra o império semiclandestino polaco na Galícia e outras regiões ocidentais. A força deles punha o sentimento nacionalista de lado. A força não apenas policial, mas também dos processos sociais: urbanização, educação de massas, etc.

Por que razão o combate foi espiritual? Porque as fronteiras linguísticas e culturais eram muito porosas. Era fácil imaginar-se ucraniano, polaco ou russo. Durante séculos foi uma escolha, não a predestinação. Isto é a razão de a escolha linguística ter uma relação bastante rígida com a identificação nacional aqui na Ucrânia. É o ponto mais importante.

4. A russificação como política

Nos últimos cinquenta anos antes da Grande Guerra a situação linguística nas cidades aproximou-se gradualmente da moderna: a população crescia rapidamente, o russo tornava-se a língua franca mesmo no Oeste (não na Galícia, claro, onde predominava o polaco). O valor da minoria polaca diminuiu, as massas ucranianas e judias já falavam russo como segunda e até primeira língua. O campo ficou o mesmo, porque o nível da literacia era muito baixo (ao contrário dos séculos XVII e XVIII, quando a guerra religiosa estimulou o desenvolvimento da educação primária mesmo na aldeia).

Naquela época a ideia de nação ucraniana juntou-se naturalmente à ideia do socialismo: as mesmas pessoas procuravam libertação de massas social, espiritual e linguística. Alguns camponeses descobriram as ideias progressistas. Mas as almas da maioria do povo foram dominadas pela propaganda do estado e da igreja, que criaram no início do século XX um movimento protofascista, parecido com o franquismo. Não foi difícil persuadir os camponeses do Oeste (excluindo as terras de Habsburgos, fora do Império Russo) que a única força capaz de os libertar da opressão do latifundiário polaco (e católico) e capitalista judeu era o czar, ortodoxo como eles. Isto, combinado com a judeofobia tradicional, foi a causa principal da penúltima vaga de genocídio nas terras ucranianas, durante a Guerra Civil.

Como disse, os nacionalistas e social-democratas tinham pouca hipótese de vencer. Mas tudo mudou após dois tiros — os de Princip, que mataram o arquiduque Francisco Ferdinando da Áustria-Hungria. Foi aquele sérvio que criou a União Soviética e o estado ucraniano moderno. O império russo não estava suficientemente preparado para os rigores da Guerra Mundial. Irrompeu a Revolução e os vários movimentos socialistas tomaram as rédeas. Entre eles: o ucraniano e o bolchevique que produziu sistemas parecidos, mas diversos como leninismo, estalinismo, “socialismo desenvolvido” e putinismo.

Graças à Revolução de 1917 nunca mais se repetiu a russificação intensa, como nas últimas décadas do czarismo. A ideia da nação russa comum e da língua russa comum foi arquivada, já a ideia minoritária (mesmo entre os social-democratas do império) que ucranianos e bielorrussos eram povos distintos estabeleceu-se para sempre. Mas as ideias têm vidas complicadas. A derrota decisiva do império pelo leninismo foi abrandada pelos sistemas seguintes e agora o putinismo combina “o socialismo desenvolvido” com o imperialismo pré-revolucionário. Com o retorno gradual da velha ideia imperial também foi lentamente retomada a russificação.

Porém, com o prestígio do ucraniano muito mais alto e a institucionalização muito mais forte do que antes da Revolução, o papel decisivo passou aos fatores sociais: urbanização, industrialização, educação compulsória, cultura de massa. Estas foram as forças que pela primeira vez fizeram as massas mudarem de língua na grande parte.

5. O portunhol da Ucrânia: o súrjic

Não foi uma mudança rápida e definida, tão pouco foi definitiva. A proximidade das duas línguas foi a razão de um bilinguismo quase universal (com a maioria de ucranianos a falar o russo cada vez melhor e uma grande parte de russos e outras etnias, se não a falar, pelo menos a entender o ucraniano) e também foi a razão da predominância na boca das massas da língua de confluência — o súrjic. É homólogo do portunhol: uma língua totalmente funcional, mas sem forma literária e sem qualquer padrão. O súrjic aparecera já na época do czarismo, mas a educação obrigatória e o desenvolvimento da cultura de massa fizeram-no a verdadeira língua maioritária (sem qualquer prestígio e desprezado por muitos, claro). Infelizmente, não há qualquer movimento para elevá-lo a língua literária e os livros escritos em súrjic (às vezes artificial) são raríssimos.

Mas a própria língua ucraniana anda a balançar entre o russo e o polaco. Na Galícia existia também uma língua de confluência polaco-ucraniana, e os restos dela abundam nos textos de escritores naturais de Galícia. Tais escritores são muitos, porque na região as posições do ucraniano ficavam seguras mesmo na péssima época de russificação dissimulada dos anos setenta e oitenta. Pode-se dizer que a União Soviética e a Alemanha nazista fizeram da Galícia uma fortaleza da cultura ucraniana, porque aquela expulsou polacos (o grupo dominante até a Segunda Guerra Mundial) e esta matou muitos judeus, abrindo o caminho para os camponeses povoarem Lviv e outras cidades já depois da guerra.

6. A ucranização durante o leninismo

Mas retornemos ao começo. Porquê uma indigenização tão radical (a ucranização foi uma parte dela), algo impensável na Europa de há cem anos? Porquê aventurar nos anos vinte o que a Espanha iniciou apenas em 1978 e a França tem nenhuma intenção de pôr em prática até hoje?

Para compreender a radicalidade do leninismo deve-se levar em conta o seguinte: durante a Guerra Civil a maioria, mesmo entre os social-democratas russos, não queria reconhecer a independência da Polónia e da Finlândia. A independência — e até a autonomia — da Ucrânia parecia algo como a independência do Algarve.

Primeiro, o leninismo foi uma ideologia mundial. Para alcançar o comunismo planetário, o sistema do poder devia ser purificado do imperialismo russo, criando condições para integrar a Alemanha (o país mais importante para os primeiros bolcheviques) e, necessariamente, a Polónia, a barreira natural em frente dela.

Segundo, mesmo a Ucrânia, tendo ganhado independência provisória durante a Guerra Civil, mostrou a Lenin a importância do fator nacional com a resistência feroz dos rebeldes camponeses, se não do seu exército. Por estas duas razões, a Ucrânia e outras repúblicas foram reconhecidas como estados-nações, com os seus próprios partidos comunistas, fronteiras definidas, etc. A Ucrânia e a Bielorrússia, tendo os seus próprios ministérios das relações exteriores, tomaram parte na fundação da Organização das Nações Unidas. Foi apenas uma formalidade, um truque? Sim, foi. Mas levou à revolução de veludo de 1991. Quando o partido comunista perdeu o poder, não havia nenhum impedimento formal de proclamar a independência. Um ponto muito importante: a Ucrânia moderna surgiu como estado-nação há mais de cem anos e não em 1991.

Na área de política linguística já não se pode falar em truques. A indigenização foi uma das causas maiores de preservação das línguas minoritárias mesmo com a russificação a ser retomada pouco a pouco. Porquê? Pela primeira vez as massas passaram a ser educadas obrigatoriamente — e não foi na língua do império, mas na sua própria língua. Nos anos vinte e trinta, a indigenização tinha dois níveis: no nível nacional desenvolvia-se a ucranização, mas no nível local foram tratadas com o mesmo respeito tais línguas como iídiche, polaca, russa, alemã, grega, búlgara, etc.

Aquela época também era a primeira em que a cultura de massa começou a ganhar importância. Toda a gente lia jornais e ouvia rádio. Depois da Segunda Guerra Mundial toda a gente começou a ver televisão, com a programação da emissora nacional e das emissoras regionais ficar na grande parte em ucraniano. As emissoras de Moscovo tiveram muito mais prestígio, claro.

7. O prestígio do russo durante a União Soviética

O prestígio é uma das palavras-chaves. Com cada década passada, especialmente na época do “socialismo desenvolvido”, teria sido mais difícil viver na Ucrânia sem perfeito domínio do russo. Mas era possível. Muito dependia da região, claro. Nas regiões ocidentais (na Galícia e em algumas em redor dela) mesmo nos anos setenta e oitenta era totalmente possível andar na escola, aprendendo russo como uma língua semi-estrangeira, ler apenas livros ucranianos, ouvir rádio e ver TV só em ucraniano, depois procurar trabalho mesmo na cidade de Lviv, etc. Mas o prestígio do russo influenciava as mentes cada vez mais fortemente — e a gente que agora está a reclamar a proibição total da língua e da cultura russas há quarenta anos, na grande parte, falava russo (na rua se não em casa) e tinha cartões de membro do Partido Comunista.

Esqueci dois acontecimentos com o impacto mais profundo: o grande terror e a grande fome artificial dos anos trinta. Há uma opinião difundida de que aquelas tragédias quase acabaram com a ucranização. Não foi o caso. O terror atingiu gente letrada em toda a União Soviética. O problema foi a nova nação ucraniana não ter uma classe educada firmemente estabelecida. A morte prematura de muitos dos seus representantes teve consequências drásticas para a cultura, sim — mas não para a língua. A qualidade da produção artística sofreu, mas o terror não reduziu o volume da produção em ucraniano. Não foi um problema sociolinguístico.

A grande fome foi uma parte da grande guerra contra a aldeia. O seu alvo foi usar as massas camponesas para industrialização e urbanização (e explorar o resto nos colcozes como escravos). Foram estes fatores sociais que causaram a mudança linguística profunda, como já disse acima. Há um mito de que as aldeias mais ou menos vazias foram repovoadas por camponeses russos — mas isto é uma simples mentira.

8. O retrocesso das línguas minoritárias

Na política linguística dos anos trinta houve apenas um retrocesso significativo: o cancelamento da indigenização no nível local. Ao mesmo tempo o grande terror incluiu as chamadas “operações nacionais” que dizimaram comunidades como a polaca, a alemã, a grega. Uns anos depois, os nazis mataram um milhão de judeus ucranianos. Aquilo e a onda de antissemitismo dos últimos anos de estalinismo quase acabaram com a riquíssima cultura na língua iídiche (mas mesmo neste caso os fatores internos foram tão importantes como a violência externa, com muitos judeus simplesmente a mudar de iídiche para russo).

Já no caso da língua ucraniana não se vê nenhuma ligação direta entre as tragédias acima mencionadas e a russificação. O ponto alto da ucranização foi o estabelecimento de liceus onde se ensinava tudo em ucraniano (apenas liceus agriculturais e pedagógicos). Isto aconteceu na metade dos anos trinta, isto é, depois da primeira onda do terror e depois da grande fome.

Como já disse, antes da dissolução da União Soviética não houve nenhuma volta definitiva à russificação. Apenas um enfraquecimento gradual da ucranização — com os fatores sociais a terem um papel mais importante do que a política do estado.

9. A independência e o prestígio russo na Ucrânia

Poderíamos pensar que tudo mudou com a independência de 1991. Não foi exatamente o caso. A lei que tornou o ucraniano a língua nacional foi votada em 1989, dois anos antes da dissolução da União Soviética, e permaneceu em vigor até 2012.

Um ponto importante: na Europa, não há nenhum país em que 30% da população tenha uma língua reconhecida como a sua língua materna, mas que fique na posição de uma língua minoritária e indesejável. Porém, o único censo na Ucrânia independente (o de 2001) mostrou que 30% chamavam o russo a sua “língua nativa”. O termo “língua nativa”, em uso corrente na Ucrânia, é tão ambíguo que, na verdade, é inadequado. Umas pessoas pensam na sua primeira língua como “nativa”, outras — na língua dos seus antepassados, mesmo sem dominá-la totalmente ou usando-a apenas como língua segunda.

A verdadeira percentagem de pessoas que falavam única ou predominantemente o russo no dia a dia em 2001 devia ser muito mais elevada do que 30%. Mas não nos podemos esquecer do súrjic. Estando ele na boca de milhões, pouca gente iria responder que falava súrjic, mesmo se a pergunta tivesse sido feita. O súrjic e o bilinguismo tornam a fronteira linguística muito porosa e até imaginária. Na verdade, trata-se não de realidade linguística mas de identificação com uma ou outra língua.

Na recusa em reconhecer o russo como a segunda língua oficial, Ucrânia juntou-se a países como o Paquistão e a Indonésia que têm tais línguas indesejáveis (e a percentagem dos falantes é ainda maior: de 40%). Porém — outro paradoxo — o estatuto oficial do ucraniano não pôs fim à russificação gradual e a importância deste estatuto oficial até aos últimos anos foi grande, mas menor do que parece de fora.

Nos anos noventa o papel dos processos sociais, mencionados acima, tornou-se o mais evidente. Continuava a urbanização. A cultura de massa ganhou uma relevância inimaginável nos tempos soviéticos. Com o prestígio do ucraniano a crescer, o prestígio do russo permanecia quase o mesmo.

10. A guerra de Putin e os direitos dos russófonos

A verdadeira mudança linguística que vemos agora, com o ucraniano a ganhar terreno rapidamente e o russo proclamado “a língua de inimigo” não oficialmente, mas na opinião de muitos, tem pouco que ver com a independência de 1991. A sua razão principal é outra: as repetidas tentativas de Putin de subjugar a Ucrânia de alguma maneira. Espero que todos saibam que a invasão russa na Ucrânia começou não em Fevereiro último, mas há oito anos — no início de 2014. Mas a primeira tentativa de pôr o nosso país sob o controlo do Kremlin ocorreu nos primeiros anos do século XXI. Usando pressão ardilosa, já no ano 2002 Putin fez com que fosse nomeado como primeiro-ministro ucraniano o seu fantoche — Víctor Ianukóvitch.

A Revolução Laranja foi exatamente a reação contra este ato de guerra híbrida. Anos depois, quando Ianukóvitch, já como o presidente ucraniano, perdeu a sua legitimidade, primeiro, com a reforma constitucional ilícita e, segundo, com a tentativa de fazer a Ucrânia um satélite da Rússia, ocorreu a segunda revolução deste tipo. Não foi nada um golpe de estado.

Infelizmente, desta vez Putin não queria reconhecer o seu insucesso e começou a guerra com a invasão da Crimeia. A sua agressão foi a única razão da mudança drástica do clima social. Na Ucrânia de há vinte anos havia muito pouco chauvinismo, mas não foi o caso há três anos. Antes de setembro de 2017 todas as acusações de discriminação de russófonos na Ucrânia da parte do Kremlin eram uma simples mentira. Mesmo sem o estatuto da segunda língua oficial o russo tinha tanto prestígio e era usado tão frequentemente que era de facto a segunda língua nacional. Porém, o presidente Porochenko, que quis usar a onda de chauvinismo para ganhar as eleições, apoiou a lei sobre educação de 2017. Esta lei, pela primeira vez, reduziu os direitos de uma grande parte da população ucraniana em função da sua origem étnica e da sua língua. Já tenho menos direitos do que os húngaros ucranianos e estes têm menos direitos do que as pessoas de etnia ucraniana.

A lei está a desacordo com a constituição ucraniana e mesmo com o código penal. Segundo este, tal discriminação é um crime. Mas a lei entrou em vigor e no ano 2019 foi votada mais uma lei anticonstitucional, a da língua ucraniana. Esta outra lei introduz a discriminação em muitas áreas fora da educação. Não espero nada de bom após a vitória ucraniana nesta guerra já não híbrida e muito mais terrível. Com tanta gente a sofrer, a nova onda de chauvinismo pode tornar-se bastante danosa para nós — a comunidade russófona da Ucrânia. A comunidade que na sua maioria está a defender o país tão fortemente como os falantes do ucraniano.

Repito que o único responsável pela situação é Putin. Com a sua pretensa proteção da língua russa não apenas matou milhares de russófonos ucranianos mas também fez as posições da língua na Ucrânia muito mais fracas. Com a sua pretensa desnazificação, Vladimir Putin tornou o sentimento chauvinista, quase inexistente na Ucrânia de há vinte anos, muito mais vigoroso. Se a Ucrânia de 2023 aceitar como o seu lema “nada contra a nação, tudo pela nação”, quem deve ser culpado é aquele que não quer acreditar sequer na existência da nação ucraniana.

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Serguéi Lúnin é russófono da Ucrânia Oriental. Nasceu e vive na cidade de Khárkiv. Frequentemente usa o ucraniano para escrever textos, dar entrevistas, conduzir apresentações.

Formou-se na universidade de Kharkiv, a mais antiga universidade do país que existe sem interrupções drásticas. É historiador e tradutor que trabalha com inglês e português.

Como historiador, tem duas principais áreas de trabalho: 1) os rebeldes camponeses ucranianos durante a Guerra Civil de 1917–1921; 2) o conflito linguístico em vários países, incluindo o Portugal de quinhentos, seiscentos e oitocentos, e a sua relação com o processo de criação de nações.

Já durante a guerra, saiu na Rússia um livro ucraniano sobre a luta de rebeldes nacionalistas de 1920 contra os bolcheviques, traduzido e amplamente comentado pelo Serguéi. Também escreveu o primeiro artigo académico em ucraniano sobre o conflito linguístico norueguês.

Foi tradutor das conhecidas obras Chernobyl: History of a Tragedy e The Gates of Europe: A History of Ukraine, de Serhii Plokhy (traduziu ainda várias outras obras do autor).

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