A chegada da Covid-19 às nossas vidas significou forçosamente uma mudança — radical em alguns casos, mais ligeira noutros — dos nossos hábitos de vida.

Desde saídas à noite à mera fruição do espaço público, tem-nos sido pedido — e, em larga escala, respeitado — que prescindamos de certas liberdades que tomávamos por garantidas em nome da saúde pública. Mas isso, como sabemos, não atingiu apenas a nossa vida profissional ou as atividades recreativas que fazemos fora dela, afetou também tradições profundamente enraizadas na generalidade da sociedade portuguesa.

Depois do pico da pandemia ter obrigado os portugueses (ou quem partilha o país connosco, não esqueçamos) a celebrar uma Páscoa mais comedida, sem a presença da família alargada à mesa, agora é bem possível que o mesmo aconteça no Natal.

Faltam ainda mais de dois meses para a data, mas o apontamento foi hoje feito por Marcelo Rebelo de Sousa. Em visita ao Hospital de Braga, o Presidente da República disse que, se for preciso “repensar o Natal em família”, tal acontecerá. “Não pode ser um Natal com 100, 60, 50 ou 30 pessoas. Divide-se o Natal pelas várias componentes da família. É preciso repensar programas que se tem com os amigos", salientou aos jornalistas.

Há uma razão para o chefe de Estado já se encontrar a fazer projeções para dezembro, já que os números da pandemia continuam subir. Aliás, Marcelo proferiu estas palavras durante a manhã, ainda antes de saber que o boletim de hoje da Direção-Geral da Saúde destronaria o de ontem na segunda posição de pior dia de sempre em Portugal desde o início da pandemia.

Se ontem registaram-se 1.278 novos casos, hoje foram 1.394, ficando apenas atrás dos 1.516 identificados a 10 de abril. Hoje foi também o dia em que se registaram mais internamentos do que nunca, 811, face ao pico de 805 obtido a 11 de maio.

Com a tónica dada pelo pessimismo dos valores registados, a Diretora-Geral da Saúde deu razão aos apelos de Marcelo. Durante a conferência de imprensa para fazer o ponto de situação quanto à pandemia, Graça Freitas revelou que os convívios familiares foram responsáveis por 67% dos novos casos registados nos últimos dias.

“Quando as autoridades de saúde fazem uma investigação epidemiológica encontram esse tipo de convívio, por isso [faço] um grande apelo para que as famílias se coíbam nesta fase de ter estes encontros festivos, que, obviamente, levam à descontração e esta leva a múltiplos contactos”, disse a responsável.

Sublinhe-se o “nesta fase”. Com o regresso às aulas presenciais e de muita gente aos locais de trabalho, assim como com o aproximar da gripe sazonal, tinha já sido previsto pelas autoridades de saúde que se ultrapassassem os 1000 casos por dia, como, aliás, o Presidente da República fez questão de frisar no último fim de semana.

Parece certo que a tal barreira dos 1000 casos por dia veio para ficar e tão cedo irá baixar. Se a hipótese de um novo confinamento tem sido repetidamente rejeitada pelo Governo, parece bem mais provável que para a semana o próximo Conselho de Ministros traga medidas acrescidas de combate à pandemia, como anteviu ontem Mariana Vieira da Silva. Nesse caso, é também lógico prever que mais restrições sejam implementadas.

Recordemo-nos que, por alturas da Páscoa, o controlo significou o impedimento de sair do concelho de residência, para evitar que as famílias se deslocassem para se reunirem todas num ponto comum. Será que o mesmo poderá acontecer no Natal? Lá está, ainda é cedo para prever, mas o tema já foi lançado no espaço público.

Sendo uma celebração de origem cristã — pelo menos na sua acepção moderna —, o Natal é, para muita gente (arrisco mesmo dizer, a maioria) mais do que uma data de pendor religioso, uma oportunidade para rever a família e fazer da mesa um espaço de partilha. Do polvo ou do cabrito, mas também de experiências, risadas e — sim, não há como evitá-lo — presentes.

No entanto, habituemo-nos à ideia: este ano, o bacalhau pode não ser com todos à mesa.