I can't believe the news today... A canção troa, inquietamente, na aparelhagem de uma papelaria da Avenida de Berna, em Lisboa, por entre homens de idade a comprar o seu jornal desportivo e estudantes à cata do seu maço de tabaco diário. Age, sobretudo, como camada anti-silêncio, dissipando quaisquer “bom dia” ou “boa tarde” que possam surgir no contexto das transações comerciais. Mas, hoje, esse verso – que é de Bono, e dos U2 – ganha todo um novo significado para além da Irlanda manchada de violência em que se inseriu: hoje, I can't believe the news today - “Não acredito no que li hoje nas notícias”, em tradução mais ou menos fiel – bate com muito mais força, desaba sobre os ombros todo o peso de uma morte que nos atingiu como as gotas da chuva e o céu cinzento.

Morreu José Mário Branco. Sem vidência. Certo: a morte não é um lugar previsível e bate-nos à porta quando menos se espera. Os relatos de quem o conhecia, de quem era seu amigo, trabalhou com ele ou, simplesmente (e quiçá bem mais importante) o respeitava indicavam que o músico, produtor, compositor, letrista não nos deixaria de forma tão abrupta. Na tarde de segunda-feira, contava-se, José Mário Branco ainda sorria. Hoje de manhã somos confrontados com a realidade do choro.

Porque é todo um país que chora. José Mário Branco era um nome indelével na história da música portuguesa, pelo seu trabalho como intérprete de intervenção ou como produtor de tantos outros, como Camané (mais recentemente), Sérgio Godinho, Fausto Bordalo Dias ou mesmo Zeca Afonso, o “mestre”, como era definido pelo autor de 'Qual é a Tua, Ó Meu': «A minha geração tinha a tendência para ir à procura do estilo dele. Demos cabo das gargantas para seguir o Zeca Afonso», contou, em entrevista à BLITZ.

Nascido José Mário Monteiro Guedes Branco, no Porto, a 25 de maio de 1942, descrevia-se a si próprio como «pequeno-burguês, filho de professores primários e artista de variedades». A palavra, no seu sentido militante, começou por descobri-la através da Igreja Católica. Fez o crisma, foi dirigente local da Juventude Católica. Até que percebeu – palavras suas – que «a Igreja estava feita com o regime», o que ditou o seu afastamento e a inscrição no clandestino Partido Comunista Português, com 17 anos, valendo-lhe a perseguição da PIDE («por atividades clandestinas e subversivas», conforme se pode ler no seu processo) e um exílio em França, a partir de 1963.

Foi em França que a música começou a tomar conta da sua vida, primeiro com o EP “Seis Cantigas de Amigo”, em 1967 (lançado, dois anos depois, pelos Arquivos Sonoros Portugueses), e mais tarde com o seu primeiro LP, “Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades”, de 1971, onde musica textos de Natália Correia e Sérgio Godinho, entre outros autores. Regressado a Portugal após o 25 de Abril de 1974, foi acolhido no aeroporto da Portela por nomes como Zeca Afonso ou José Jorge Letria, afirmando então que «era preciso vir aqui o mais depressa possível, para viver no meio do povo este género de coisas» —  a revolução — antes de irromper, juntamente com os presentes, na comunhão de 'Grândola, Vila Morena'. Que gravou com Zeca, em Paris; foi sua a ideia de lhe juntar a série de passos, na gravilha à saída dos estúdios, que se escuta no início da canção.

Escreveu-se “intérprete”, dois parágrafos acima, porque havia na voz de José Mário Branco uma qualidade que ia para além do simples canto: um cuidado irrepreensível com as palavras, com a pontuação, com a forma de fazer chegar a mensagem que contava aos que a quisessem escutar, aliada a arranjos extremosos (inspiração, até, que veio dos trabalhos e das inovações que os Beatles levaram para o estúdio). Digamos que não era um “cantor”, ou sequer “declamador”, mas sim alguém com um amor sôfrego pela língua, musicada. Algo que terá trazido do mundo do teatro, onde também se embrenhou: integrou, por exemplo, a companhia de teatro A Comuna, com esta musicando uma versão da peça “A Mãe”, de Bertolt Brecht.

A sua experiência e o seu papel no teatro alimentaram da mesma forma a música que fazia. Como não ver, em 'FMI', uma peça em três atos da impotência de um homem dentro do capitalismo, desde uma posição irónica e sarcástica em relação a este e às formas como é combatido (saímos à rua de cravo na mão sem dar conta de que saímos à rua de cravo na mão a horas certas), passando pelo peso da agonia suprema do não-presente (mãe, eu quero morrer mãe / eu quero desnascer, ir-me embora, sem ter que me ir embora), até chegar à esperança imortal na utopia (o meu sonho é a luz que vem do fim do mundo, dos vossos antepassados que ainda não nasceram)?

De todas as canções que José Mário Branco gravou, 'FMI' (gravada ao vivo no Teatro Aberto, em 1982) é aquela que muitos apontam, ainda hoje, como a sua obra maior, dotada de uma enorme violência lírica e de uma interpretação catártica – uma sessão de pancadaria em todos os que a ouvem pela primeira vez, e um soco no estômago em cada uma das vezes subsequentes. E há uma geração inteira de rappers que vê aqui o ponto de partida desse género em Portugal, como que provando que José Mário Branco foi, musicalmente, muito mais que uma série de discos politicamente engajados, não só a solo como no Grupo de Acção Cultural, onde de 1974 a 1978 procurou mostrar que a cantiga é, de facto, uma arma; se lhe tocam ela dispara.

Ao longo das últimas duas décadas, os disparos (públicos) foram-se tornando cada vez menos. Até porque José Mário Branco não era homem de disparar ao acaso: de esquerda, mas sem um dogma partidário. «A esquerda é um arco tenso já com a seta posta, mas antes de atirar, antes de largar o cordão de tripa, é este momento — apontar, puxar a seta atrás, agora! —, é este instantâneo que é a esquerda», explicou à SIC, sobre 'Inquietação' e sua aura de desassossego pessoano. Largou os palcos para fugir à nostalgia e às memórias de lutas idas. Queria o agora, o poder lutar agora. Mas foram-se-lhe fugindo os versos em nome próprio, substituídos pelas canções para outrém.

Ou seja, não parou; escondeu-se apenas um bocadinho. Em 2006, iniciou um curso de Linguística na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, o qual terminou como melhor aluno: média de 19,1 valores. Em 2009, juntou-se a Godinho e a Fausto para os concertos “Três Cantos”, e em 2018 lançou um álbum duplo, com inéditos e raridades gravados entre 1967 e 1999, parte pequena de um vasto acervo ainda por se conhecer. Pelo meio, inspirou uma nova geração de músicos portugueses, como Primeira Dama ou os Ermo – que o cantaram em “Um Disco para José Mário Branco”, álbum de celebração (e não de “homenagem”) lançado este ano pela Valentim de Carvalho. Em 2014, Nelson Guerreiro e Pedro Fidalgo “deram-lhe” um documentário, “Mudar de Vida”, onde contam a sua sua história de vida e de carreira.

“Carreira”, substantivo que estava bastante longe do topo das suas preferências: «A minha relação com a música foi sempre uma relação de amantes. Não é uma relação de matrimónio, carimbada (…) Foi sempre uma relação muito próxima e muito apaixonada, mas também muito livre e muito solta», afirmou ao SAPO24. Escrevamos então aquele que seria o seu substantivo preferido: liberdade. A de criar, a de compor, a de viver e a de querer que tudo isso seja possível, também, aos menos afortunados. Era essa a sua mensagem principal e aquilo pelo qual mais compunha e lutava, tendo o ato criativo como «o ato supremo da liberdade». É por essa liberdade que teremos de o lembrar – talvez não tanto pelas canções (que se saúdam), pelos discos (que se saúdam), pelos concertos (que se saúdam), pelas ideologias (cuja saudação ficará ao critério de cada um). É por essa liberdade que, doravante, passaremos a lacrimejar cada vez que chegarmos ao final de 'FMI': Zé Mário Branco, 37 anos, do Porto, muito mais vivo que morto, contai com isto de mim para cantar e para o resto... Sem o cantar, que venha o resto – esse complexo tudo.