Escolheu uma boa altura para publicar o livro, porque anda toda a gente à nora sobre as razões que levam o Putin a agir assim [em relação à Ucrânia], e sem dúvida que a História dá indicações. Mas, primeiro, queria fazer uma pergunta pessoal: foi para a União Soviética em 1977. Foi uma decisão sua, ou foram os seus pais?
Não, não, os meus pais eram anticomunistas. O meu pai era pescador e, como sabe, os pescadores são extremamente religiosos.
É o que lhes vale!
Exatamente. A minha mãe ajoelhou-se perante mim, para me pedir que eu não fosse para a União Soviética! Você lembra-se desse tempo, havia paixões.
Então, e você era comunista?
Era, era. Eu saí do seminário em 1974 e entrei para o PCP no final desse ano. Quando fui para a União Soviética era membro da direção da Organização Regional do Norte da União dos Estudantes Comunistas.
Fazendo uma constatação óbvia: não há nada como ter ido para lá para ver como aquilo era?
Verdade. É como eu digo: se não experimentas o caviar, não podes saber se é bom ou mau. Isto diz respeito tanto a ir para a União Soviética, como serve de resposta a outras perguntas que me fazem: será que os russos são adversos à democracia? E eu respondo sempre, olhe, você alguma vez comeu caviar preto, do verdadeiro? E as pessoas normalmente respondem que não. Então, não pode saber se o caviar é bom ou não. Os russos também não podem dizer se a democracia é boa ou não, que a tiveram tão pouco tempo.
O que é interessante no seu livro é constatar que a Rússia sempre foi uma ditadura, uma autocracia, para dizer o mínimo. Teve o poder absoluto dos czares, depois a ditadura do Partido Comunista. Seguiram-se dois ou três anos, no máximo cinco, de confusão, na época do Iéltsin, e depois, rapidamente, voltou ao que sempre foi, um regime totalitarista. Não é?
Estou perfeitamente de acordo. Houve dois curtos espaços de tempo em que se poderia dizer que era uma democracia, embora em situações sempre de turbulência. Foi entre Março e Outubro de 1917...
Na época do Kerensky.
Exatamente. E depois o período que vai mais ou menos da parte final do Gorbachev, em 1989, até, digamos, 2004. Embora fosse uma democracia muito viciada, uma confusão, como você disse.
Pergunto-me sempre, e isto nem é politicamente correto dizer-se, mas, em certos países, a população está tão habituada a ser dominada pelo poder que não interessa se é comunista ou outra coisa, o facto é que não há maneira de se habituar a uma prática democrática...
Nem lhe deram tempo para isso. Porque para criar uma sociedade civil é preciso muitos anos. E não estou a falar de um país de dimensões pequenas ou médias. Num gigante como a Rússia, isso é muito mais complicado e demora muito mais tempo.
As dimensões do país ajudam, porque é difícil exercer o poder num espaço tão grande sem que seja autoritário.
Quer dizer, a não ser que se encontre um sistema de descentralização razoável do poder. Há países grandes governáveis, mas são normalmente federações, como é o caso dos Estados Unidos, o Canadá...
Mas também com maus resultados, diga-se de passagem.
Bem, no Canadá podemos dizer que as coisas funcionam. Há a questão do Quebec, mas nos Estados Unidos é mais complexo, o Brasil também tem grandes problemas. Contudo, pelo menos houve uma certa tentativa de descentralização do poder.
No tempo do Iéltsin essa tentativa foi feita, mas de uma forma caótica. Deu origem, por exemplo, ao separatismo da Tchetchénia. Foi isso que levou muitos pensadores, como Montesquieu, a dizer que a Rússia só podia ter um governo autoritário. E a Catarina II utilizou muito o Montesquieu para mostrar aos seus amigos europeus que era muito iluminista nessa parte – nas restantes, chega-te para lá! Ela achava o Voltaire idiota e burro, e escrevia-lhe lindas cartas, como ao Diderot e a outros.
Mas o Montesquieu tinha essa ideia, e não era só ele, há muitos pensadores que dizem que um Estado tão grande como a Rússia só pode ser governado por um poder central fortíssimo e até autocrático, ou ditatorial.
Há uma questão que eu realmente nunca conseguirei compreender, que é o caso do Gorbachev. Até li a biografia do William Taubman. Gorbachev era um homem do Partido, subiu na Komsomol (Liga da Juventude Comunista) e, portanto, em princípio seria completamente ortodoxo. O que é que lhe passou pela cabeça? Foi o estado da economia? O que aconteceu?
A situação de degradação a que chegou o país obrigava a fazer reformas. Como tinha acontecido da década de 1960 com as reformas do [Alexei] Kosygin. Ele tentou fazer algumas reformas, no sentido da criação de determinados elementos de mercado numa economia completamente planificada. Mas depois foi afastado.
O que acontece é que Gorbachev herda um país que está de tanga, extremamente enfraquecido, virado completamente para um confronto militar [da Guerra Fria] e não pôde deixar de reformar alguma coisa. Eu penso que inicialmente ele e muitos dos seus camaradas julgaram que aquilo era “socialisticamente” reformável, mas não era. Quer dizer, quando ele começou a mexer na estrutura do regime, viu que estava podre. Teoricamente, ele podia ter feito o que fez o Deng Xiaoping na China, mas, primeiro, os russos não são chineses e, segundo, o país estava numa situação que eu acho que, se ele tivesse enveredado pela via do Deng Xiaoping, aquilo acabava tudo em guerras extremamente sangrentas entre as várias regiões e repúblicas da União Soviética.
Mas repare numa coisa: cronologicamente, as reformas do Deng Xiaoping são posteriores às do Gorbachev. O que eu li é que os chineses viram o que estava a acontecer na Rússia e seguiram a via contrária. Ou seja, mantiveram a autoridade do Partido sobre a liberalização da economia, enquanto os comunistas russos deixaram o partido único cair.
Não tenho dúvida nenhuma que as reformas do Gorbachev ensinaram muito aos chineses. Eles estudaram o assunto e tiraram as devidas conclusões. Agora, na situação em que Gorbachev foi colocado... Ele é eleito Secretário-Geral quando a economia soviética está num estado lamentável. Além disso, uma coisa que é muito importante ainda hoje, é o preço dos combustíveis. Quando o Gorbachev chega ao poder, um barril de petróleo custava nove dólares. Foi isso que o Reagan conseguiu fazer, levou os preços dos combustíveis cá para baixo. Na segunda metade dos anos 70, o alto preço dos combustíveis coincide com uma política externa soviética muito agressiva, e depois, quando chega o tempo das vacas magras, a União Soviética nem sequer tinha reservas para poder fazer as reformas económicas.
Gorbachev poderia ter salvo parte da economia? Poderia. Hipoteticamente, poderia, se tivesse dinheiro para isso. Mas, quando ele pediu ajuda ao Ocidente, depois de ter feito todas as cedências possíveis e imagináveis, quando pediu um empréstimo de cem mil milhões de dólares, o Bush sénior, não deu. Porquê? Porque não lhe interessava manter a União Soviética. Claro que eu posso dizer que o George W. H. Bush poderia ter ajudado a União Soviética a transformar-se num país social-democrata, aproveitar alguma parte daquilo que se fez de positivo, mas ao Ocidente isso não interessava. O que eles queriam é que quanto mais aquilo se dividisse, melhor seria. Foi o que veio a acontecer, infelizmente.
Infelizmente, porquê? Porque teve custos muito altos para o povo?
Exato. E poderiam ter sido muito maiores. Em termos de guerras, esperava-se muito pior. Mas em termos sociais foi dramático, aquelas pessoas passaram pelas passas do Algarve. Eu vivi lá com a minha família todo esse período, com a minha mulher e os meus filhos, e víamos e sentíamos o que era aquilo. Principalmente no final dos anos 80 e nos anos 90, foi uma tragédia: confusão, corrupção, privatização completamente batoteira...
A propósito, a minha perceção é que os vários níveis da nomenclatura soviética perceberam a certa altura que numa sociedade não comunista poderiam ganhar muito mais dinheiro.
Estou completamente de acordo.
As pessoas que tinham poder no aparelho podiam habilitar-se às privatizações em condições muito favoráveis. E verdade isso?
Verdade, verdadinha!
Porque o facto é que as privatizações criaram imediatamente um tipo de capitalista – os oligarcas, como lhes chamamos.
Essa tal oligarquia é saída da Juventude Comunista, do Komsomol. Eu até costumo dizer em português “Como-o-Sol”! Eles estavam no aparelho do Estado e começaram a aproveitar-se dessa situação para dar o salto para o outro lado. E conseguiram. Compraram as Estatais ao preço da uva mijona, como se diz na nossa terra.
E essa oligarquia é que hoje em dia manda na Rússia?
A oligarquia teve de começar a dividir os lucros, porque eram demais. O pessoal que saiu dos serviços de repressão, como é o caso do Putin, andava com os bolsos vazios. Quando finalmente chegam ao poder, dizem aos oligarcas: “Pessoal, isto não pode ser tudo para vocês, nós também queremos alguma coisa”. Os que aceitaram, muito bem. Os que não aceitaram, olhe, foram para a prisão, ou fugiram para o estrangeiro e lá morreram de formas estranhas. Quando tomam o poder, os Serviços de Inteligência tornam-se na força decisiva. Os oligarcas são, digamos, gerentes, trabalham para esse aparelho e recebem uma comissão por aquilo que fazem. Parte dessa comissão é paga com a liberdade deles.
E a outra parte com montantes que obtêm.
E no estrangeiro... Há quem diga que o senhor Abramovitch é um dos tesoureiros do Putin.
Aliás, em Londres os russos têm casas absolutamente fantásticas.
E não é só lá. Em Itália e em França, compraram palácios que são obras de arte históricas que pertenceram à alta nobreza. Quando mais titular é a casa, mais eles querem, porque pretendem ser a nova aristocracia. Para entrar na Europa com esse estatuto recorrem a esse tipo de aquisições. Criam um determinado estilo de vida.
E o povo russo? Comparativamente, vive melhor do que vivia nos últimos tempos do comunismo?
Hoje o povo russo vive melhor do que nos anos 90, sem dúvida. Antes da chegada do Putin ao poder. Mal seria se não vivesse, porque a riqueza da Rússia teve um aumento gigantesco, devido ao preço dos combustíveis no mercado internacional. Agora, aqui a questão é a distribuição da riqueza, que continua a ser escandalosa. Temos os 3% que havia na era czarista, que eram os senhores da Rússia, depois uma classe média muito pequena e muito débil.
A classe dos burocratas.
Exato. E depois vem o resto, que muitos deles vivem abaixo do nível de pobreza. E é esta desigualdade que eu acho que, se Putin quisesse, poderia ter resolvido. Agora, a verdade é que uma grande parte desta riqueza desaparece na areia da corrupção e vai enriquecer outros países.
Eu considero que o Putin, acima de tudo, é putinista, ou seja, quer é manter-se no poder. Mas também é verdade, como se diz, que acha que o fim da União Soviética foi a maior catástrofe do Séc. XX e que pretende, de facto, reconstituir os territórios do antigamente?
Eu acho que não. Ele não é tão burro que queira isso, pois sabe que é uma tarefa impossível. Seria o fim da Rússia e o fim do poder dele.
Então estas atitudes que ele tem tomado são simplesmente para consumo interno?
Não, o que ele quer é reforçar zonas de influência. Mas daí até querer reconstituir a União Soviética vai uma distância muito grande. Uma das coisas que me leva a acreditar que na Ucrânia pode não haver guerra, embora a possibilidade também seja muito grande, é exatamente o facto de Putin não ter capacidade de dominar a Ucrânia. A Ucrânia é um país tão grande como a França ou a Alemanha.
Mas o poder militar da Rússia não se compara com o da Ucrânia. Se os russos invadirem, em dois dias estão em Kiev.
Pronto, muito bem. E depois, para manterem o poder? É muito provável que uma parte da população da Ucrânia passe para a guerra de guerrilha, tanto no campo como nas cidades. Comecem a recorrer às bombas. Putin vai ficar sentado num vulcão. Repare numa coisa: a ocupação da Crimeia foi uma guerra fácil, e a guerra fácil traz sempre frutos ao seu autor. A Ucrânia arrisca-se a ser uma guerra difícil e Putin vai ter problemas. Porque isso vai-se refletir nas condições de vida do povo russo. Eles podem aguentar, mas chega a determinado ponto que vão ter muitas baixas. E ainda há outro problema: os laços familiares entre ucranianos e russos são muito fortes, muito grandes. Isto tem algumas facetas de guerra civil. Você sabe perfeitamente, e muito melhor do que eu, que uma guerra civil é muito mais cruel.
Porque é que eu sei melhor do que você? Nunca participei em nenhuma.
Sabe que a Convenção de Genebra não funciona nas guerras civis. Quando se fazem prisioneiros, dá-se-lhes um tiro e acabou-se.
Aliás, a Convenção de Genebra não funciona em guerra nenhuma.
Às vezes funciona, pelo menos parcialmente. Agora, uma guerra civil é uma guerra de extermínio. Isto é uma das coisas que pode levar Putin a não se lançar num conflito de grandes dimensões. Talvez uma tentativa local, mas isso também é um grande risco, porque passar de incidentes locais para uma guerra generalizada é muito rápido.
É interessante porque, durante muitos anos eu julguei que a Ucrânia era uma parte integrante da Rússia. E depois é que vim a saber que a Ucrânia já foi uma grande potência, que inclusive teve partes da Polónia. E a capital russa já foi Kiev – isso eu li no seu livro.
Quanto a Kiev, Putin diz que o povo russo e o povo ucraniano são o mesmo povo e Kiev foi a primeira capital da Rússia. E os ucranianos respondem, não, Kiev foi a primeira capital da Ucrânia.
Eles falam o mesmo idioma?
Não. Semelhante, mas não é o mesmo.
É como o português e o espanhol?
Não, o português e o espanhol são mais próximos. Consigo ler ucraniano, mas com alguma dificuldade. Agora, falar ucraniano, posso dizer algumas palavras, e entender até certas conversas, mas, se eu quisesse falar bem teria que estudar.
Mas há uma minoria russa que vive no sul da Ucrânia, não é?
É, e é bastante grande. Não é só no Donbass. Em Odessa também. Essa minoria não é russa, é russófona. Por exemplo, você vai a Odessa e tem lá milhares de judeus que são russófonos, porque era a língua que se falava na União Soviética, e Odessa era uma cidade multinacional. Quando vai ver muitos dos grandes nomes da literatura, da música, da cultura russa, são judeus de Odessa.
Bem, isso do judaísmo é uma outra questão muito complexa. Por exemplo, o Trotsky era judeu.
Se você retirar os judeus da cultura soviética, arrisca-se a ficar um tanto ou quanto desiludido. Por exemplo, o famoso Pasternak, era não só judeu, mas judeu sefardita.
Diz-se que ele ganhou o Prémio Nobel [da Literatura] porque a CIA influenciou os suecos, para chatear os russos.
A seguir o Prémio Nobel foi para o Mikhail Sholokhov, um escritor claramente pró-regime, e sob pressão da União Soviética.
Hoje em dia, parece-me, os prémios Nobel da Literatura estão completamente desacreditados.
Há muito tempo. Aliás, o Boris Pasternak é muito mais conhecido como poeta. O “Doutor Jivago” foi o único romance que ele escreveu. É um grande poeta e um grande tradutor de poesia. Inclusivamente traduziu alguns sonetos de Camões.
O “Doutor Pasternak” deu origem a um filme extraordinário.
Filme que estava proibido na União Soviética. O livro também.
Eu não a vejo como uma história anti-soviética. Vejo-a mais como uma narrativa dos vários períodos que a Rússia passou. Porque ele nasceu antes da Revolução de 1917 e depois, como era médico, conseguiu sempre não se envolver na política — até porque os médicos eram muito necessários em qualquer regime. Até sobreviveu no estalinismo. Aliás, eu já tinha lido muito sobre o estalinismo e voltei agora a ler no seu livro, e há uma coisa que me deixa realmente incomodado: Hitler, por exemplo, inventou inimigos e massacrou-os, mas o Estaline massacrou os seus próprios correligionários. Ou seja, como não havia inimigos, porque já tinham sido todos mortos – até antes dele, quando o Lenine mandou matar os padres e outros desafetos – atirou-se contra os amigos.
Isso aí é a máquina das revoluções. Quando começam a cortar cabeças, depois não conseguem parar. Primeiro vão os outros, depois os próprios.
O Estaline foi particularmente eficiente nas purgas.
Ele deu um grande contributo para a destruição do Partido Comunista. Mas se Trotsky tivesse chegado ao poder seria a mesma coisa.
Coitadinho do Trotsky, que levou com uma picareta na cabeça!
Pois, mas antes disso mandou fuzilar milhares de pessoas.
O Estaline mandou matá-lo no México. Mesmo a milhares de quilómetros, incomodava-o.
O Estaline cometeu o erro de o deixar sair da União Soviética. E só deu conta disso porque o Trotsky não se calou. Se se tivesse calado, talvez tivesse escapado. Como não se calou, apanhou!
Outro igualmente sanguinário era o Lavrenti Beria.
Eu escrevi uma biografia dele!
Isso foi um ato de masoquismo, não?
Digamos que é pior do que isso. Mas sabe que no estrangeiro não há praticamente nada escrito sobre ele. Encontrei só uma obra, nos Estados Unidos. Dedicada a ele, com uma análise da sua vida e atividades.
Com certeza você viu aquele filme “A morte de Estaline”.
Vi. O humor negro é genial. Sabe que esse filme foi proibido na Rússia de Putin?
Claro, tinha de ser. Agora, não sei se você concorda, mas o Putin é extremamente reacionário no que toca a valores. Ele fala na decadência dos costumes na Europa, como se fosse de extrema-direita.
Mas ele é de extrema-direita. É amigo da extrema-direita europeia e não esconde.
Mas essa amizade pode ser uma estratégia, não é? Ele promove a extrema-direita europeia, ajuda-a, porque quer desagregar a Europa.
Mas ele também apoia, e acho que em alguns lugares financia, a extrema-esquerda. Você lê o “Avante” e vê que não há maior defensor do Putin em Portugal do que os comunistas portugueses.
Os comunistas portugueses são um caso muito interessante. Tenho a teoria de que Portugal está sempre cerca de 50 anos atrasado em relação à Europa, começando na Revolução de 1820, que ocorreu 31 anos depois da de 1789, em França. Atualmente, Portugal é o único país da Europa que tem um Partido Comunista. Além de manter o nome, que já não faz muito sentido, é o único partido estalinista?
É verdade, é. O vocabulário que eles usam, a maneira como falam no proletariado e na luta e tudo o mais, é um vocabulário da década de 1930.
Da Internacional Comunista. Até defendem boas causas, no sentido de melhorar as condições dos trabalhadores, mas têm dificuldade em vender essas boas causas porque os trabalhadores já não se identificam com aqueles termos.
Claro! Continuam com esquemas completamente arcaicos que já não funcionam. E essa linguagem de que você fala... “Classe operária”, quer dizer, onde é que está essa classe operária?
Nenhum operário gosta de se chamar operário. Aburguesaram-se. Conhece uma música dos “Homens da Luta” cujo refrão é “E o povo? O povo quer é comprar um carro novo!” Conhece isso?
Claro! O resultado das últimas eleições mostrou isso. O povo não quer mudanças, tem medo de mudar. Tem sempre medo de que vá para pior. Isso em Portugal é muito visível e na Rússia também há esse medo. Eles passaram por tantas mudanças, e tão bruscas, que é como eles dizem: “Eh pá, vamos aguentar o que já temos, porque não sabemos o que vamos ter". Claro que a popularidade do Putin deu-se em grande parte a ele ter criado uma estabilidade na sociedade.
À custa de uma repressão, também.
Mas também à custa de subsídios, de reformas, de pequenas esmolas que vai distribuindo. Isso permite-lhe manter-se no poder.
Não acha que a Alemanha tem tido um papel dúbio nesta crise atual? Por causa do gás, talvez.
Tem, e os alemães têm fortes culpas. Mas a União Europeia também tem, em geral. A questão é o seguinte: a Sra. Merkel, que eu admiro muito, cometeu dois erros muito grandes. O primeiro foi mandar fechar as centrais nucleares. Mesmo que as centrais nucleares sejam perigosas, não é possível dar o salto para a energia verde sem elas... O precipício não pode ser saltado em dois passos, tem de ser um passo só.
Eu escrevi sobre isso há pouco tempo: só houve dois acidentes nucleares, o de Fukushima, que foi por causas naturais, quer dizer, quando muito foi inconsciente construir a central naquele sítio, e o de Chernobyl, devido a má gestão e incompetência. Ora bem, há quase quinhentas centrais nucleares no mundo e dois acidentes. Portanto, o perigo do nuclear é quase nulo. É mais perigoso andar de automóvel.
Exatamente. A França está a seguir uma política contrária. Considera que a energia nuclear é a solução para a dependência energética da União Europeia.
Você disse que a Merkel cometeu dois erros. Qual foi o segundo?
O segundo foi confiar nos fornecimentos de gás russo, sem ter alternativas. Mas aí a União Europeia também tem culpas no cartório. Há muitos anos, mas há muitos, que se sabe que a UE devia ter fontes alternativas de fornecimento. Uma das soluções de que agora se fala, mas eu já ouvia falar em 2004 e não passou de paleio, era a construção de um gasoduto que ligue todos os países da Europa. Até hoje não há. Vai haver quando terminar a construção do gasoduto entre Espanha e França. Porque se ele estivesse a funcionar, Portugal e Espanha passariam o gás para o norte da Europa.
Nós importamos gás através da Argélia, mas não é só de lá, também vem da Nigéria.
Ora bem, isso não substitui o gás russo em quantidade, mas pelo menos não deixa que a União Europeia fique de calças na mão.
A União Europeia, estrategicamente, está numa situação sem saída: depende energeticamente de fontes exteriores e não tem exército. É como o Império Romano: tem uma vida de luxo com bens importados de países não amigos, e não tem nem sequer soldados, como no tempo do Império Britânico, para ir lá impor os seus interesses. Desde o desastre do Canal do Suez, em 1956, quando os ingleses e os franceses tentaram impor a sua vontade, os europeus ficaram sem dentes. Nem é possível criar um exército europeu. Você não convence nenhum cidadão europeu a fazer o serviço militar. Estamos numa situação terrível.
É muito complicado. Aí estou de acordo consigo.
Agora, a pergunta de um milhão de rublos: o Putin vai atacar, ou não vai?
Olhe, não é um milhão, porque um milhão de rublos é pouca fruta.
É porque se usa a expressão “a pergunta de um milhão de dólares”. Também não é grande valor, hoje em dia.
Eu vou sempre repetir a máxima filosófica do João Pinto: “Prognósticos, só no fim do jogo”!
Repare numa coisa: Putin pode. Agora, Putin vai fazer? Pode fazer. Cá estamos outra vez: pode. Mas se pode, como, onde e quando? A mim leva-me a crer que uma guerra por parte da Rússia vai criar muitas complicações à Rússia. À Europa também, claro está. E à Ucrânia, imagine!
Mas a Rússia vai ter muitos problemas e correr grandes riscos. Porque uma coisa é uma guerra como foi a ocupação da Crimeia, que não foi guerra nenhuma, nem houve tiros. Outra coisa é ocupar um país onde as pessoas já estão com um ódio aos russos que nunca se viu na História.
Nem quando o Estaline matou milhões de ucranianos à fome?
Para ele era indiferente a nacionalidade dos milhões que matava. Há uma frase que lhe atribuem: “Uma pessoa é uma pessoa, mais do que uma pessoa é uma estatística.” Para ele era indiferente – e eram outros tempos, que espero que não voltem.
Na época, os ucranianos consideravam-se russos?
Não, não. Repare numa coisa; a Ucrânia aí já tinha tido algum tempo muito curto de independência, entre 1918 e 1922. Mas a minha posição, que os nacionalistas ucranianos criticam, é que o Holodomor não foi um genocídio. Foi um crime contra a Humanidade, porque Estaline não queria matar concretamente o povo ucraniano. A famosa fome, a que chamam Holodomor, matou milhões na Ucrânia, na Rússia e no Cazaquistão. Não havia intenção de dizimar uma nação, havia sim, o objectivo de liquidar o campesinato médio e empurrar o país para a coletivização e a industrialização. Eu acho que há uma diferença porque aquilo foi uma tragédia para a Ucrânia, é verdade, mas também foi uma tragédia para a Rússia e para o Cazaquistão.
Portanto foi indiscriminado, não foi por eles serem ucranianos.
Era. Ele deu cabo de tantos povos.
Aliás, ele era da Geórgia. Mas não foi mais simpático com a Geórgia por causa disso.
Não foi, não. Ele também limpou o Partido Comunista da Geórgia de cima a baixo.
Uma figura interessante é o Kruschev, porque tentou mudar as coisas, não tão radicalmente, mas tentou, apesar de tudo.
Tentou, mas parou a meio. Parou a desestalinização a meio, e meteu-se em aventuras que falharam. Foi a questão da plantação do milho em tudo que era lugar, nomeadamente no norte da Rússia. Ele foi aos Estados Unidos e ficou tão impressionado com o milho, que lhe ia resolver o problema da alimentação dos animais, que pronto, era só plantar milho. Só que o resto não crescia, e criou grandes problemas. Ele não era um dirigente muito inteligente, era muito pragmático. Foi por isso que se salvou dentro do estalinismo e acabou com os estalinistas dentro do partido. A forma como ele os destruiu foi muito eficaz.
Com a ajuda do General Zhukov, não foi?
Exato. Mas depois também o Zhukov apanhou nas orelhas. Logo a seguir, acusou-o de bonapartismo e afastou-o do comando das forças armadas. Ele também tinha medo dos militares, que eram muito populares na União Soviética.
O sistema era realmente surreal. Como se manteve durante tanto tempo? Mas pior terá sido na Alemanha de Leste, na RDA, porque, com aquela eficiência germânica, as pessoas espiavam a própria família.
Isso também aconteceu na União Soviética e noutros países. Nós estávamos sentados, um grupo de pessoas, a falar da União Soviética e lembrávamo-nos daquela famosa frase de Cristo na Última Ceia, “Entre nós está um traidor”.
José Milhazes, o seu percurso é interessante, porque você avaliou a ideologia. Quando as pessoas têm ideologias, normalmente não mudam. A ideia de que o capitalismo pode acabar é surreal. Ou é privado, ou é público, e quando é público não está nas mãos do povo, mas do aparelho de Estado.
Claro, sem capital nada se faz. Só queria terminar, sobre o capitalismo e o socialismo e essas ideias todas, vou contar uma piada, que até meti no livro “As minhas aventuras no país dos sovietes”: qual é a diferença entre capitalismo e socialismo? O capitalismo é a exploração do homem pelo homem; o socialismo é exatamente o contrário!
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