Ao longo dos anos, Luís Reis Torgal escreveu muito sobre liberalismo e autoritarismo, tanto como conceitos políticos como nas suas consequências. Entre os vários trabalhos, destaca-se o livro "Essa Palavra Liberdade..." sobre o qual tivemos oportunidade de conversar por Zoom. Como seria de esperar, os acontecimentos de 1820 trouxeram-nos até ao século XXI. Foi uma conversa animada que para efeitos de publicação teve ajustes de edição de forma a poder ser partilhada.

A primeira parte do livro "Essa Palavra Liberdade..." trata de um aspecto pouco apreciado, que é a importância que a educação tem na existência de um estado democrático ou liberal. Até à Revolução Liberal, era a Igreja que tinha o exclusivo da educação e continuou a ter uma enorme influência. E os liberais, apesar de liberais, defensores dos princípios da Revolução Francesa, apesar de acharem que o Poder não vinha de Deus, continuavam a acreditar que Deus existia.

Exactamente.

Aliás, as resoluções sobre educação tomadas na Constituição de 1822 ficaram todas no papel.

Essa Palavra Liberdade - Luis Reis Torgal
Essa Palavra Liberdade - Luis Reis Torgal

Grande parte delas ficaram no papel, só foram renovadas um pouco mais tarde por Passos Manuel. Ao longo do período liberal – que só começa de facto depois da vitória de D. Pedro, em 1834, há uma centralização da educação em Lisboa, Coimbra deixa de ser uma espécie de Ministério da Educação. Há alterações e tentativas constantes de criar a tal escola laica, obrigatória e gratuita. Mas sempre sem o conseguir completamente. E na República, em 1910, também se vai tentar, naturalmente.

O Vasco Pulido Valente dizia que nós continuamos a viver as questões que se levantaram em 1820 – ele, que era um conservador, mas tinha uma visão muito certeira. E realmente nós vemos hoje em dia a mesma questão, se a educação deve ser do Estado ou particular, ou se a educação deve ser laica. 

Nem sempre será tão laica quanto isso. A educação pública é laica, normalmente, mas por vezes encontram-se situações em certas escolas que estabelecem uma ligação com a Igreja Católica. Uma delas, como sabe, é que continua a existir uma cadeira de Religião e Moral, cujo professor é nomeado pela igreja, paga pelo Estado. Por conseguinte, não podemos falar de uma separação completa. É claro que a Religião e Moral é uma disciplina voluntária, facultativa, mas na verdade sempre foi, até no Estado Novo, embora, naturalmente, toda a gente acaba por aceitar frequentá-la. Eu também, mas naquela altura era católico e a minha família também. Agora, lembro-me muito bem de colegas meus que não eram, mas acabavam por aceitar.

Mas as salas de aula tinham todas um crucifixo.

Só no ensino primário. Além do crucifixo tinham fotografias do Salazar e do Presidente da República, o Carmona, ou o Craveiro Lopes, depois o Tomás.

"É Desta Que Leio Isto"

"É Desta Que Leio Isto" é um grupo de leitura promovido pela MadreMedia. Lançado em maio de 2020, foi criado com o propósito de incentivar a leitura e a discussão à volta dos livros.

Já folheámos as páginas de livros de autores como Luís Sepúlveda, George Orwell, José Saramago, Dulce Maria Cardoso, Harper Lee, Valter Hugo Mãe, Gabriel García Marquez, Vladimir Nabokov, Afonso Reis Cabral, Philip Roth, Chimamanda Ngozi Adichie, Jonathan Franzen, Isabel Lucas, Milan Kundera, Joan Didion, Eça de Queiroz e Patricia Highsmith, sempre com a presença de convidados especiais que nos ajudam à discussão, interpretação, troca de ideias e, sobretudo, proporcionam boas conversas.

Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

Subscreva a Newsletter do É Desta que Leio Isto aqui e receba diretamente no seu e-mail, todas as semanas, sugestões de leitura, notícias e acesso a pré-publicações.

Mas o Estado Novo não é, por assim dizer, uma quebra da evolução que começou em 1820, com avanços e recuos? Durante o Estado Novo havia uma sintonia muito grande entre o Estado e a Igreja, que hoje em dia já não se nota.

No meu livro "Colaboração entre o Estado e a Igreja no tempo do Salazar", editado pela imprensa da Universidade de Coimbra, tentei mostrar, como aliás uma outra colega, a Paula Santos, que apesar de haver uma colaboração, sobretudo a partir de 1940, com a Concordata, apesar de tudo Salazar pretendeu sempre que houvesse uma separação. Aliás, isso estava estabelecido na Constituição de 1933. Não podemos falar tanto dessa ligação tão estreita como às vezes se fala. Salazar quis separar as águas, dentro do seu espírito autoritário, não há concordância tão evidente como se afirma. No livro refiro-me concretamente à questão dos feriados, em que o salazarismo pretende estabelecer uma relação evidente, mas com uma certa separação e até uma subordinação. Nenhum bispo era eleito – não diria nomeado, porque eleito é mais correcto – sem o agreement do Estado Novo.

Mas há uma diferença entre o que está na lei e o que se pratica. Para lá do que estava na constituição, o Salazar – um “servo de Deus”, como lhe chamou o Pulido Valente - não me parece que fosse fascista, ele era pré-Revolução Francesa.

Eu sou dos que defende que o Estado Novo é um tipo de fascismo. 

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É um tipo de autocracia. Seria fascismo se, por exemplo, a União Nacional fosse um partido obrigatório.

Eu tenho um livro chamado "Estados novos, Estado Novo", no qual defendo e explico porque é que em certa perspectiva se pode considerar o Estado Novo como uma espécie de fascismo e, em determinados aspectos, entendê-lo como uma forma de totalitarismo. Aliás, os próprios salazaristas utilizavam a palavra, mesmo muitos deles consideravam que era um regime totalitário. O Águedo de Oliveira, que foi ministro das Finanças (1950) e foi o seu único orientando em termos de doutoramento, acaba por aceitar a palavra totalitarismo com todo o à-vontade.

Mas não acha que o Salazar era sobretudo pré-Revolução Francesa, ancien regime?

Não considero, não. Realmente ele pensa no fenómeno político segundo uma concepção católica, ao mesmo tempo integrista e social. O próprio processo educativo do Salazar, não tanto no seminário, mas depois no Colégio da Via Sacra, em Viseu, onde foi prefeito – naquele período entre ser seminarista e depois entrar para vida laica – teve uma educação muito curiosa, uma espécie de cristianismo social. O colégio ainda mantém esse espírito. Por conseguinte, temos que entender que o Salazar não estava tão à margem dos problemas, pelo contrário. O [Tom] Gallagher diz que ele era monárquico; não há prova nenhuma de que ele o era. Gostava de que ele dissesse onde é que encontrou isto.

Por acaso entrevistei o Gallagher e ele disse-me que acha que a exportação do “liberalismo francês” para a Europa foi um mal.

Isso é próprio da concepção inglesa, vem do Edmund Burke (1729-97). Aliás, qualquer autor inglês, desde que seja um liberal – à maneira inglesa, conservador – nunca vê com bons olhos a Revolução Francesa. A visão dele é típica dos ingleses. Eu estive em Inglaterra como convidado da Academia Inglesa, em Birmingham, e tive ocasião de analisar todas as obras que se escreveram sobre o Estado Novo. A visão inglesa da História de Portugal é a História de quem não reconhece a Revolução Francesa.

Não acha que as invasões francesas foram uma catástrofe e, entre outras consequências, permitiram que os ingleses passassem a ser os títeres da nossa política desde o fim da Guerra Peninsular até ao Salazar? Grande parte dos acontecimentos da nossa História têm o envolvimento inglês. 

Eu concordo em grande parte com isso, mas não nos podemos esquecer que a própria revolução de 1820 é contra o domínio inglês, contra o Beresford, e que a posição assumida pelo D. Pedro contra o D. Miguel não é apoiada só pela Inglaterra, mas também pela França – que entretanto, em 1820, tinha virado para o liberalismo e fez a chamada Quadrúpla Aliança, com a Espanha. Não esquecendo também que a própria revolução republicana nasce de uma oposição a Inglaterra, pois até é chamada a “geração contra Ultimato”. [O Ultimato inglês para que abandonássemos o “Mapa Cor-de-Rosa”].

Bem, nós nunca gostamos dessa influência inglesa, prova que ela é um facto.

Não quer dizer com isto que depois não reapareça – lá está! Nós temos uma relação um bocado ambígua. Quando entramos na I Guerra Mundial, em 1916, o António José de Almeida, que tinha escrito contra o Ultimato, vai ser um dos principais a elogiar a Inglaterra contra a Alemanha. Por conseguinte, há toda uma ambiguidade.

Os ingleses não queriam que nós entrássemos na Guerra, fizemo-lo por causa das colónias.

Pelas colónias e também tendo em conta uma concepção de cultura e de civilização, que era a do António José de Almeida. Escrevi uma biografia sobre ele, tinha uma visão europeísta que passava pela concepção inglesa, francesa, italiana – nunca pela alemã.

Voltando à questão da educação. Acha que houve uma evolução, principalmente a partir de quando a situação se estabilizou com o Fontes Pereira de Melo (1871), ou continuamos com os mesmos problemas... 

Sabe que a História é passado, presente e, eventualmente, futuro. Temos que entender a realidade dentro da sua própria época. Há-de reparar que, com todo o respeito que eu tenho pela Maria de Fátima Bonifácio [MFB], que se afirma como uma mulher de direita, a verdade é que tenho uma posição diferente. [MFB escreveu que a Revolução de 1820 foi um episódio esporádico, sem seguimento.] Porque a verdade é esta: quer nós queiramos, quer não, a Constituição de 1820 era liberal. A nossa primeira Constituição escrita, não consuetudinária como os ingleses gostam, lá está, é a de 1822. Houve uma tentativa real de dar um outro sentido ao conceito de Poder. Claro que, como agora se fala, pode dizer-se que efectivamente no Estado Novo a alfabetização aumentou. Mas nessa época aumentou em todos os países. Temos que entender a diferença de épocas entre o liberalismo e o Estado Novo, a atualidade... Gostaria de marcar bem essa minha posição de historiador.

Há uma frase sua que tomei nota: “Não é fácil diferenciar a História, a Memória e a Ideologia.”

Peço desculpa de voltar a falar de livros meus, mas em 1989 escrevi “História e Ideologia” (Editora Minerva) em que abordo essa questão, e mais tarde coordenei informalmente um outro livro sobre o mesmo tema.

Não é possível separar a História da ideologia.

Evidentemente que não é. Não é possível, nem deve ser. Vamos lá ver: eu sou contra a chamada “História ideológica”, mas o que eu entendo é que a ideologia é também uma forma de cultura. Quando estamos a trabalhar sobre um tema histórico, a ideologia não fica à porta. Agora, o que eu pretendo, é nunca fazer aquilo a que chamo História ideológica – ou então, aquilo que hoje acontece agora, que é uma Ideologia Historiográfica.

Acho impossível, honestamente, separar a análise que se faz da História da ideologia do historiador.

Não é possível nem desejável. Agora, outra coisa é o historiador procurar a objetividade. Demos um exemplo concreto: está em grande discussão sobre aquela intervenção no MEL, Movimento Europa e Liberdade, dum tal Nuno Palma, que eu não conheço; ele vem falar sobre o tal aumento de alfabetização no Estado Novo. Sem dúvida que houve, é um facto, uma realidade. Agora, um historiador tem de integrar isto no período. Na República, a alfabetização não avançou muito. A mesma situação dentro do liberalismo. Mas para entendermos isto temos de contestualizar. Sou um objetivista, separo a História da ideologia, mas tenho a minha ideologia. Aquilo que o historiador deve fazer é acabar com certos mitos. E os mitos têm a ver com a Memória e a Ideologia. Eu compreendo que há historiadores, à esquerda e à direita, que se deixam levar pela sua própria ideologia. Concordo que temos de acabar com casos como a História de Portugal do João Ameal. É uma História completamente ideológica, ao serviço do Estado Novo, numa lógica do Integralismo Lusitano. Aquilo é Ideologia Historiográfica. É preciso ter uma preocupação científica, como os matemáticos ou os químicos. 

Outro assunto no seu livro é a questão do liberalismo económico e do liberalismo político. Na época de 1820, o liberalismo pelo qual se lutava era político, mas no que toca ao liberalismo económico as opiniões não eram tão distintas entre liberais e absolutistas. Atualmente há uma identificação entre o liberalismo político e o económico e o termo “liberal” é considerado uma posição de direita – em Portugal, porque nos Estados Unidos é ao contrário; “liberal” é a esquerda e “conservador é para a direita.

De alguma maneira, em Inglaterra também.

Essa confusão que se faz hoje não nos serve, porque é impossível uma pessoa ser liberal economicamente e não ser considerada de direita. 

O próprio conceito de neo-liberal, confirma essa definição.

Liberalismo, nós realmente não temos, na minha opinião. Quer dizer, temos um sistema oficialmente democrático, mas que não o é verdadeiramente porque, do ponto de vista económico, não existe a igualdade que a democracia política exige.

Ora bem, gostaria de recuar até ao ponto crucial do meu livro. O que eu quis demonstrar, acima de tudo, é que o movimento liberal, logo quando nasce – não se pode dizer que ele aparece em 1820, é bastante anterior, já há liberais a escrever em Inglaterra, na França, e mesmo a movimentação do Gomes Freire de Andrade já é considerada um primeiro movimento liberal. Se for ver, o próprio Bocage tem uma poesia lindíssima sobre a liberdade.  

Mas vamos falar concretamente no liberalismo de 1820. O que eu queria chamar à atenção é que quando se fala de liberdade não se está a falar só de liberdade. E os próprios liberais de 1820, no debate constitucional, ou no debate da segunda legislatura, de 22 a 23, chamam a atenção para isto: liberdade sim, mas até um certo ponto. Quer dizer, o Estado tem de intervir no sentido de manter uma liberdade que corresponda a direitos iguais. Aliás, a ideia de igualdade aparece ali muito clara. Por exemplo, Borges Carneiro tem um texto interessantíssimo sobre isso, e até professores da Universidade de Coimbra, como o Soares Franco. Há realmente esta ideia que acho fundamental: a liberdade sem a concepção de igualdade, e até de fraternidade, não é possível. E eles notam isto. Quando eles falam concretamente da liberdade de ensino, há vários liberais que dizem que são a favor, mas até certo ponto. Vamos criar uma escola pública que seja frequentada pelo fidalgo, o popular, as crianças todas estejam lá. Por conseguinte, há uma concepção de igualdade – que é uma espécie de utopia, mas que está lá. 

E a mesma coisa acontece com a liberdade económica, onde o que se pretende, nessa época, é o desenvolvimento. Portugal era um país pouco desenvolvido. Talvez continue a ser hoje, não sei se será ou não, em comparação com outros países. Às vezes parece que estamos num charco completo, tipo república das bananas, de acordo com alguns discursos mais liberais. 

E o que defendiam os liberais de 1820?

Os liberais de 1820, quando falavam em liberdade económica, queriam eliminar a série de barreiras alfandegárias internas, municipalistas. Era necessário eliminar essas barreiras e os fiscais, desenvolver s agricultura e a indústria. Por conseguinte, tanto os liberais como os contra-revolucionários defendem o liberalismo económico. É esta ideia que parece fundamental: liberdade sim, mas controlada. 

Hoje, quando se fala de liberalismo, a grande questão que aparece é que há uma liberdade comercial, concorrencial, melhor dizendo, a chamada "economia de mercado", a privatização dos bens públicos fundamentais. Assistimos a uma privatização da água, da electricidade e dos correios, e estamos a sofrer com isso. Há certos setores fundamentais que não devem ser privatizados. 

Politicamente, sou social-democrata. Se me disser que o Partido Socialista tem intenções sociais-democratas, eu acho que sim, tal como o Partido Social Democrata e partes do Bloco de Esquerda. Já não falo do Partido Comunista porque é um tipo de socialismo específico, respeitável, próprio.

E o que é a social-democracia? É considerar a existência de uma liberdade social. É esta a grande questão: o próprio liberalismo, a partir de 1820, pretende realmente considerar a liberdade e, ao mesmo tempo, considerar estas ideias de igualdade e fraternidade, que são valores fundamentais da concepção democrática. 

Mas é um facto que no debate político se considera que a social-democracia é uma ideia de direita.

É uma ideia de esquerda, tem de ser sempre uma ideia de esquerda. Aí é que está o problema. Agora, há pessoas que se consideram liberais e que têm um certo tipo de conceitos surpreendentes. Eu venho de uma família conservadora, o meu pai era um homem do Integralismo Lusitano, de maneira que tenho um respeito muito grande por toda a direita – desde que seja uma direita integrada numa concepção democrática. Depois do 25 de Abril mantive relações de amizade com gente da esquerda e da direita.

Agora o que eu penso é que, quando se afirma demasiadamente o liberalismo, não se distingue entre o liberalismo total que não pensa no aspecto social e no bem comum. Eu aceito que uma pessoa seja liberal, mas nesta ideia da defesa do bem comum.

Mas o liberalismo económico não é o mesmo que um capitalismo selvagem. 

Muitas vezes nós dizemos que (isto) é uma espécie de capitalismo selvagem.

Porque, de facto, o capitalismo, a componente “capital” é necessária, tanto que os comunistas dizem-se anti-capitalistas, mas o que defendem é um capitalismo do Estado. Portanto o capital está nas mãos do aparelho do Estado, mesmo dizendo que é em nome do trabalho.

Claro que é. O capital tem sempre de existir.

Devo dizer-lhe que o livro não me esclareceu dúvidas, mas esclareceu que essas dúvidas existem. 1820 foi a Revolução Francesa em Portugal.

Sim, é um reflexo da Revolução Francesa. Embora houvesse muitos liberais de formação inglesa. Até os nossos exilados pelo D. Miguel foram para Inglaterra.

Mas representa a “nossa Revolução Francesa” no sentido de passar a valer o princípio de que o Poder não vem de Deus mas sim do Povo. Essa é que é a grande revolução, que nem é justo que se chame francesa, porque a Constituição norte-americana é anterior à Revolução Francesa. E mesmo o sistema inglês, apesar de não o afirmar especificamente, considera que o Poder vem do povo, através dos seus representantes parlamentares. E, entretanto, a Revolução em França transformou-se numa ditadura (com Napoleão).

Claro, o Napoleão era outra coisa, e os liberais bem que o diziam. A ideia de uma Constituição era francesa, mas não foi isso que eles fizeram aqui.

Só queria acrescentar uma coisa: diz que o livro o deixou com dúvidas; pois eu sou um historiador que considera que é muito mais interessante fazer História com dúvidas do que com certezas. As dúvidas são muito mais interessantes e é isso que eu acho que às vezes não acontece. Há determinadas pessoas, até historiadores em que parece que tudo é certo, certinho. Tudo é rigoroso. Ora bem, a mim, traz-me sempre dúvidas. Costumo dizer aos meus alunos que espero que no fim das aulas tenham mais dúvidas do que quando começaram. É o que se chama ter consciência da realidade. A ignorância não traz dúvidas, as crenças não têm dúvidas. Por isso sou agnóstico. Não digo que sou ateu porque para ser ateu é preciso ser muito crente!

Considera-se um heterodoxo, no sentido dado pelo Eduardo Lourenço?

Sim. Eu era amigo dele, era uma pessoa que foi muito valorizada por ter estado em França. Não era um historiador, mas fazia uma reflexão sobre a História muito curiosa porque era um heterodoxo – lá está! Não tinha muitas certezas. Há um livro que eu gosto muito de citar, de 1976, “O Fascismo nunca existiu”, conhece? É interessantíssimo pelos problemas que coloca. A dúvida é o princípio fundamental de todo o saber.