“A vida aqui custa”, afirma Dino Penacho, pescador, de 32 anos.
As questões da Lusa incidem sobre o surto de covid-19 na freguesia açoriana, mas as respostas vão sempre parar às dificuldades vividas na vila onde, devido ao mau tempo, os pescadores não se fazem ao mar há várias semanas, um mês no caso de Dino.
Dino Penacho é uma das pessoas que a Lusa encontra numa das ruas coloridas de Rabo de Peixe, que desembocam no porto de pescas, um sítio cheio de vida numa manhã normal.
Hoje, o porto está vazio, e nas ruas apenas há fila para o banco e pequenos ajuntamentos junto aos cafés, longe da habitual azáfama. As pessoas que circulam apressam-se a justificar o seu propósito – vão às compras, ao banco ou só arejar.
O forte vento que se faz sentir não convida a grandes convívios e a agitação do mar explica o sossego que por ali se vive, mas Rabo de Peixe também se recolhe face ao maior surto local dos Açores.
São 61 casos detetados até hoje, numa freguesia de 10.000 habitantes, onde já não é possível traçar o rasto epidemiológico. Foi para pôr fim à transmissão comunitária que foi decretada uma cerca sanitária que vigora na vila a partir das 00:00 de quinta-feira e até 08 de dezembro.
“’Tá’ mesmo muito difícil. Veio o mau tempo, sem a pesca a gente não vive nesta terra […]. Eu tenho uma mulher e dois meninos para sustentar. ‘Tá’ muito ruim. Nestas alturas, é a minha mãe às vezes que me ajuda. E as minhas irmãs, que estão no Canadá. Elas mandam uma esmola que é para a gente comer”, conta Dino.
Se a situação não estava fácil, “cada vez está pior” com o aumento de casos de infeção pelo novo coronavírus.
A poucas horas da implementação da cerca sanitária, pescador encontra-se com dois amigos na esquina de uma rua. Todos usam máscara. Dino admite que tem tomado todas as precauções porque “isto está um perigo e cada vez está pior”.
Tanto Dino como os amigos estão “muito preocupados” e andam praticamente “sempre em casa”: “É um bocadinho, a gente vem aqui para o canto e a gente vai para casa”, confessa.
O mesmo acontece com José Salvador, de 53 anos, também pescador. Sai de sua casa para se ‘arrumar’ na pequena casa de aprestos onde, com a porta aberta, vai preparando aparelhos de pesca.
“Venho para aqui passar um bocado de tempo. Chega a minha hora, vou para casa. São pequenas coisas que uma pessoa faz para passar o tempo”, conta.
Está “contente” com o decreto da cerca sanitária, já que conhece várias pessoas que estão infetadas e, como várias das pessoas com quem a Lusa se cruza ao longo da manhã, lembra que “morreu ontem uma rapariga, aqui perto”.
“A gente conhece-se uns aos outros aqui. Custa tanto ver pessoas conhecidas a sofrer com isso. Rabo de Peixe é muito grande, mas isso é tudo como se fosse uma família, tudo ao pé uns dos outros. Isso é milhares de pessoas aqui, mas é tudo amigos, tudo juntos. É uma convivência boa que a gente tem aqui”, considera.
Há “muita preocupação” e, “mais a mais, está mau tempo”, refere o pescador, que não vai ao mar há seis semanas. “Isto nunca aconteceu aqui em Rabo de Peixe”, diz.
“A gente tem de trabalhar, isto não pode fechar. Se a gente não trabalhar, quem é que vai dar à gente? Tudo está ‘precisando’, é tudo pobres. Aqui Rabo de Peixe é uma zona muito pobre”, lembra.
José Salvador já fez um teste - “foi negativo” - e prepara-se para fazer o outro esta semana.
Entretanto, tanto ele como a sua família vão fazendo a sua parte: “Estão em casa, principalmente a minha mulher, que se queixa muita de asma. Eu obrigo-a ficar em casa, que isso não é brincadeira. O pouco que eu saio venho é para aqui, daqui vou para casa. Não ‘tou’ nos cafés, nessas coisas assim. Sempre aqui fazendo pequenas coisas”.
Humberta tem 54 anos e é proprietária de uma mercearia no centro da vila. Também ela admite que, quanto às restrições, “o que custa mais é ao pescador, porque é um homem que não está habituado a estar em casa”.
Ainda assim, a empresária não se acanha quando chega a hora de falar sobre a situação epidemiológica de Rabo de Peixe, que considera “uma porcaria".
“As pessoas aqui […] não se estão a reservar. Muita gente esteve aí, andando, e sabendo que tinham teste positivo”, atira.
Agora “está mais complicado”, refere, lembrando a morte da jovem de 27 anos, que tinha várias patologias associadas, e esperando que as pessoas ajam com “mais responsabilidade e mais bom senso”.
Humberta esperava “mais autoridade, a nível policial” – a mesma que “antes de haver esses casos” estava “sempre no caminho a dizer ‘metam-se em casa’”, mas agora não aparece.
A comerciante diz também que a cerca sanitária já deveria ter sido imposta “desde os princípios do mês de novembro”, quando começaram a aumentar os casos.
“Aqui para baixo é uma zona piscatória, é. E eu não gosto que falem mal de Rabo de Peixe, porque eu também sou de Rabo de Peixe, nasci em Rabo de Peixe, vivi em Rabo de Peixe, mas a verdade é para ser dita: Rabo de Peixe é lindo, mas a mentalidade da pessoa ainda é um pouco mais à antiga”, afirma.
José António Amaral, 62 anos, reformado, sai à rua só “para ver o jeito daquela loja”.
À porta de sua casa, de onde saiu para arejar, não resiste a denunciar aquela que acredita ser a causa do surto: “’Tá’ terrível e está assim por causa deles, porque andam sempre aos montes. Aquelas duas lojas, se não forem fechadas, isto continua na mesma, porque estão sempre a jogar às cartas e ao dominó – 10, 12 pessoas lá dentro. E quando joga o Benfica, nem se pode entrar lá dentro”.
À hora a que a Lusa lá passa, não joga o Benfica e também não se joga às cartas nem dominó. São poucas as pessoas que frequentam aqueles dois estabelecimentos que, ao fundo da rua, atormentam José António.
Com a cerca sanitária – atualmente a única do país - ficam interditadas as deslocações, por via terrestre e marítima, entre Rabo de Peixe, no concelho da Ribeira Grande, e as restantes freguesias. Fica proibida a circulação e permanência de pessoas na via pública, são encerradas todas as escolas e fixa-se a limitação da lotação máxima de um terço da respetiva capacidade na restauração e nos bares.
As autoridades de saúde vão proceder à realização de "testes rápidos à população".
Reportagem por Inês Linhares Dias (texto) e Eduardo Costa (fotos), da agência Lusa
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