Em entrevista à agência Lusa, quando se aproxima o fim do seu mandato como provedor de Justiça, José de Faria Costa defendeu que o órgão de Estado tem os poderes necessários, justificando que caso as suas recomendações tivessem força coativa, os tribunais teriam de as fiscalizar.

“Aí imediatamente eu perdia a minha independência porque tinha os tribunais a sindicar os meus atos”, justificou.

Nesse sentido, acredita que aquele que é “verdadeiramente o seu poder”, é um poder fraco que “é fundamentalmente um poder forte porque (…) não pode nem deve ser sindicado pelos tribunais”.

“Não tenho razão de queixa da capacidade porque este lugar é um lugar que é construído sobretudo pela personalidade do próprio provedor, limitado pela lei e pela Constituição”, apontou.

Relativamente à sua capacidade de intervenção, José de Faria Costa frisou que teve efeitos, umas vezes com respostas mais atempadas, outras menos, revelando ter encontrado sensibilidade por parte dos dois governos com os quais teve de trabalhar, primeiro o do PSD-CDS, mais recentemente o do PS.

“Posso fazer uma qualificação entre dois governos diferenciados do ponto de vista político. Esta legitimidade total de independência fez com que a minha persuasão, o meu magistério de persuasão tenha sido consequente”, defendeu.

José de Faria Costa revelou, por outro lado, que no que à administração local diz respeito, houve simultaneamente “pontos de grande apetência” e outros de “alguma resistência maior do que a administração central”.

Em jeito de balanço de mandato, o provedor de Justiça destacou que “os dados estão aí”, mas acabou por salientar a total desmaterialização de procedimentos, além de uma “internacionalização forte”, que culminou com a eleição do provedor português como presidente da Federação Ibero-Americana de Ombudsman.

“Temos levado a cabo aquilo que é a minha missão, a de tornar inequívoco que o provedor resolve os problemas dos seus concidadãos. É para isso que ele está aqui”, sublinhou.

Lembrou, a propósito, que só no ano passado recebeu quase 39 mil solicitações, prova de que o órgão de Estado “é conhecido de todos os portugueses”.

Frisou que o lugar de provedor é um “magistério de persuasão” e admitiu que estaria a demitir-se das suas funções se dissesse que não gostaria de ver todas as suas sugestões acatadas.

Justificou, por outro lado, que é sua profunda convicção que aquilo que diz deveria ser realizado, dando como exemplo os três casos em que requereu junto do Tribunal Constitucional a fiscalização da constitucionalidade de normas.

“Sou muito parco, mas quando peço uma inconstitucionalidade estou absolutamente convicto de aquilo que estou a fazer é mesmo inconstitucional. Mas quem decide, como é óbvio, é o Tribunal Constitucional”, apontou.

Questionado sobre uma possível recondução no cargo, José de Faria Costa afirmou que não responde em relação ao futuro e que a sua postura sempre foi a de “servir sempre e em qualquer circunstância”.

“Mas servir sempre com dignidade e dentro dos prazos normais da Constituição e do meu estatuto”, rematou.

Resposta específica para idosos presos com problemas mentais

O provedor de Justiça entende que deveria haver uma resposta específica para idosos com problemas mentais que estão detidos, sustentando que não faz sentido manter naquela situação pessoas que “já estão para além do bem e do mal”.

Como consequência, surgem também os problemas mentais próprios do envelhecimento, algo que provocou “amargura e tristeza profunda” no provedor quando ainda era presidente do Conselho Superior de Magistratura e que o levou a escrever uma carta onde dava conta de ter visto “pessoas de 80 e 90 anos, que já estão para além do bem e do mal”.

“Eu não estou a dizer que estas pessoas possam ou devam sair do sistema prisional. O que eu digo é que é incompreensível, sob o ponto de vista humano e sob o ponto de vista dogmático, alguém estar a cumprir uma pena quando já não sabe o que é uma pena, nem sabe onde está, nem sabe se é de manhã ou se é de tarde”, defendeu.

Para José de Faria Costa é muito claro que não é ao provedor de Justiça que cabe apresentar uma solução para o problema, já que não legisla, não governa e não julga, mas lembrou mais uma vez que tem o dever de alertar.

O provedor de Justiça admite, por isso, que, tal como os jovens até aos 16 anos são considerados inimputáveis, essa possibilidade poderia também ser aplicada no casos de idosos em que fosse “absolutamente claro do ponto de vista científico que aquela pessoa já estava numa situação de inimputabilidade”.

“Quando cometeu o crime era imputável, quando começou a cumprir pena era imputável, mas depois houve um momento em que se tornou inimputável. Que sentido tem essa pessoa continuar no sistema prisional. Nenhum”, afirmou.

José de Faria Costa entende que se trata de um problema nacional, para o qual a sociedade é muito lenta na busca por uma solução.

“Sobretudo o que me custa admitir como penalista e como cidadão é ter pessoas [nas prisões] que já não percebem qual é o sentido da pena, já não sabem onde estão”, acrescentou.

Dados da Direção-geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP), de finais de 2016, davam conta de mais de 350 reclusos com mais de 65 anos, metade dos quais presos pela primeira vez depois dos 60 anos, um número que representa um aumento de mais de 62% entre 2011 e 2016.

De acordo com a DGRSP, o recluso mais velho tinha 90 anos e estava numa instituição psiquiátrica não prisional, sendo que, em contexto de estabelecimento prisional, o mais velho tinha 89 anos, além de outros dois com 88 anos e de mais dois com 87 anos.

Alerta para idosos tratados de forma perversa

O provedor de Justiça considera ainda que há idosos tratados “de uma forma absolutamente perversa”, graças a uma sociedade que inverteu a pirâmide social e trouxe “consequências dramáticas” para as pessoas mais velhas, como o abandono ou a solidão.

“Os filhos a ficarem com as pensões dos pais e serem os vizinhos a dizerem ao provedor que há uma pessoa acamada, sozinha e os filhos ficam-lhe com o dinheiro das pensões”, exemplificou.

Apontou outro tipo de situação, “muito mais grave”, que acontece quando se aproxima a época de verão, em que “alguns filhos” começam a diminuir a terapêutica aos pais, fazendo com que eles entrem em perda e sejam internados de urgência.

“Como os filhos sabem que só os podem deixar se eles forem internados de urgência, obviamente começam a fazer isso e isso é uma coisa maquiavélica, péssima, que dá um retrato muito feio da sociedade portuguesa”, criticou.

Segundo o provedor de Justiça, que não quis alongar-se muito sobre o assunto, estas realidades foram mais presentes nos tempos da “crise profunda”, mas salientou que basta haver apenas um caso por ano “para mostrar a perversidade com que é tratada a velhice”.

José de Faria Costa lembrou que, durante o ano de 2016, o provedor de Justiça recebeu, através da Linha do Idoso, mais de 2.800 telefonemas, perto de oito chamadas por dia, tendo havido 105 contactos por causa de maus-tratos, além de 74 situações de isolamento ou solidão, e outras 20 por abandono.

São os próprios idosos interessados quem mais vezes recorreu no ano passado à linha telefónica, representando 48% do total de telefonemas, a maior parte mulheres (1.724), com idade entre os 71 e os 80 anos (969).

Segundo José de Faria Costa, o provedor de Justiça faz frequentemente trabalho social, revelando que são muitas vezes os serviços do provedor que conseguem uma marcação de uma consulta, encaminham a pessoa para a ajuda mais próxima quando ela não sabe ler uma fatura de gás ou luz, ou quando alguém liga ao provedor porque não sabe preencher o IRS.

Motivos pelos quais o provedor afirmou que mais do que as recomendações que possa fazer, e que podem ou não ser acatadas, importa-lhe a resolução de problemas concretos.

“O que me interessa é receber uma carta da pessoa do Portugal mais profundo a dizer-me: ‘senhor provedor obrigado, o meu muito obrigado, o meu problema foi resolvido’. E eu tenho centenas de cartas. Isso é que é importante no trabalho do provedor”, sublinhou.

Em matéria de recomendações, aliás, José de Faria Costa acredita que teve um “altíssimo índice de acatamento” durante os seus quatro anos de mandato, mas garantiu que o seu trabalho nunca esteve centrado na recomendação.

“Avaliar o meu exercício através do número de recomendações é absolutamente redutor. O que se deve avaliar é através das situações concretas que eu resolvi e essas estão aí e podem ser avaliadas”, rematou.

Plano nacional para saúde mental nas prisões

“Há uma profundíssima necessidade de fomentar um plano nacional de saúde mental no sistema penitenciário e nos sistemas de limitação de liberdade, também para os centros educativos”, defendeu, apontando que a saúde mental de um adolescente não se compara com a de um adulto ou de quem já está na fase da velhice.

José de Faria Costa frisou que o ambiente prisional é revelador de uma “grande fragilidade”, não só em relação aos reclusos, mas também aos guardas prisionais, sublinhando que um estabelecimento prisional é um microcosmos “absolutamente distinto” de tudo o que se possa imaginar.

“A isto acresce uma crise económica brutal nestes últimos tempos, que se refletiu na nossa vida comunitária do dia-a-dia e que se refletiu também dentro dos próprios estabelecimentos prisionais”, adiantou, acrescentando que isso teve consequências desde a alimentação, à educação ou à saúde.

Especificamente no que diz respeito à saúde nos sistemas prisionais, destacou o problema da saúde mental como algo “complexo” e “extremamente difícil” de resolver.

A propósito dos estabelecimentos prisionais, o provedor de Justiça adiantou que no ano passado iniciou um roteiro pelas prisões, enquadrado no seu trabalho como Instituição Nacional de Direitos Humanos, mas também como Mecanismo Nacional de Prevenção, organismo através do qual Portugal responde perante as Nações Unidas e que serve para examinar as condições a que estão sujeitas as pessoas privadas de liberdade.

Nesse sentido, visitou dez estabelecimentos prisionais em 2016 e mais três em 2017, dentro de um périplo que englobou 53 locais com espaços de detenção, desde aeroportos, hospitais psiquiátricos, centros de detenção dos tribunais ou carrinhas celulares.

Fazendo um retrato dos problemas dos estabelecimentos prisionais, José de Faria Costa escolheu a sobrelotação das prisões como um dos que o mais preocupa, apontando que os “governantes têm consciência”, mas “ainda não houve vontade política para resolver este problema”.

À parte disso destacou também a alimentação ou a reinserção social, “outra problemática muito interessante e muito complexa”, que em conjunto “faz uma amálgama de problemas de extrema complexidade, que precisa obviamente de investimento”.

Defendeu, por isso, que, se houvesse uma sociedade mais equilibrada, com uma menor diferenciação em termos sociais, o problema criminal diminuiria.

Entre os estabelecimentos prisionais que visitou, o provedor de Justiça destacou os de Ponta Delgada, de Lisboa e de Coimbra como aqueles que “mostram fragilidades brutais”.

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