Na mesma época em que os Beatles transformavam a música, o homem pisava a Lua e milhares de pessoas tombavam diante de metralhadoras no Vietname, surgia uma mulher disposta a mudar o mundo. Uma mulher-menina, armada com um vestido vermelho, um laço na cabeça, um grupo coeso – e idiossincrático – de amigos e muitas, demasiadas ideias para os escassos seis anos que ostentava. Que ostentava então e que ostentará para sempre, beneficiando, ao contrário dos seres humanos, do facto de ser fictícia.
Chama-se Mafalda, e hoje ela é orfã, à semelhança dos muitos que a leram na infância, na adolescência e, até, na idade adulta. Orfã, não naquele mundo mágico dos quadradinhos, onde os seus anónimos pais continuarão a ter de a aturar, vingando-se das suas perguntas com ferventes e nojentos pratos de sopa. Orfã neste mundo que a gerou, para que ela o pudesse mudar através da sua inocência, da sua mordacidade, de uma ideologia progressista em que a base era, sobretudo: podíamos todos fazer muito melhor que isto.
O pai real de Mafalda tinha como identidade Joaquín Lavado, mas respondia sobretudo como Quino. Ou quase exclusivamente como Quino. Nascido em Mendoza, Argentina, a 17 de julho de 1932, ganhou a alcunha em criança para que a família e os conhecidos o pudessem distinguir de um outro Joaquín, seu tio e também ilustrador. O talento para o desenho surgiu também nesse período pueril, e não passou despercebido à família: entrou para a Escola de Belas Artes de Mendoza em 1945. Os pais, lamentavelmente, morreram-lhe na adolescência sem que soubessem a forma como Quino tocou, e tocará, várias gerações de contestatários.
Ao longo da sua carreira, Quino trabalhou em várias revistas e jornais argentinos, sendo Mafalda - «a heroína enraivecida que recusa o mundo tal como é», conforme a descreveu Umberto Eco – a sua maior criação. Sem desprimor, claro, para as várias tiras que foi desenhando. Com todo o humor, toda a corrosão e toda a fina ironia que se lhe conhecem. Qualidades que o fizeram galgar décadas, com Quino sempre de olhos postos na sociedade e nas suas muitas falhas, sempre de pensamento fixo naquilo que ela, e o futuro, deveriam ser.
Mafalda foi ao mesmo tempo fruto do desejo e da casualidade. Em 1963, já Quino era considerado um dos maiores cartoonistas argentinos, uma proposta de uma agência de publicidade, que pretendia um ilustrador que os ajudasse a promover uma nova linha de eletrodomésticos Mansfield, levou-o a desenhar uma família de classe média com uma filha chamada Mafalda – isto, já depois de ter confidenciado ao seu amigo Miguel Brascó, que foi quem o propôs à agência em questão, que queria desenhar tiras com crianças.
“Mafalda” surgiu porque a agência impunha que o nome da criança começasse por “M”; “Mafalda” era o nome de uma personagem num romance de David Viñas que havia lido. A marca acabou por não aceitar as ideias de Quino, mas o diário “Primeira Plana” sim. Foi este o primeiro a publicar Mafalda, nos moldes em que hoje a conhecemos: cabeleira negra, laço, vestido, ironia e sarcasmo de mãos dadas contra a política e a guerra, contra a estupidez e a incultura.
Se estas são batalhas que soam tão atuais hoje como o foram nos anos 60 em que Mafalda nasceu, é porque, valha a verdade, desde então pouco ou nada mudou. O próprio Quino admitiu-o, em 2016, em declarações à agência EFE: «Olhando as coisas que fiz todos estes anos, percebo que digo sempre as mesmas coisas e que continuam atuais. É terrível, não? [E,] Conhecendo o género humano, não acho que exista solução».
Quino era pessimista por natureza, e essa mesma qualidade transbordou para a sua criação: «Cada vez há menos coisas para dizer», afirmaria Mafalda sobre a Guerra dos Seis Dias; «O ano que vem foi muito melhor do que este», brincaria numa outra tira; «Seria bom acordar em dia e saber que a nossa vida só depende de nós», comentaria em relação às armas nucleares. Mafalda é, como quase todas as boas personagens, um espelho do seu autor: pessimista, mas também democrata por convicção, guardando na alma uma mera chispa de esperança que o permitisse acordar por mais um dia, apesar de tudo. Em Mafalda, essa chispa é a sua profissão de sonho: tradutora na ONU, onde sabotaria os discursos mais inflamados, trocando-os por frases bonitas e cultivando a paz entre todos.
A menina conheceria, ao longo da sua existência, várias casas. Depois do “Primeira Plana” surgiu o “El Mundo”, e depois deste o “Siete Días”, onde o grupo de amigos de Mafalda se tornará completo: Filipe, o tímido e neurótico cara de sapato; Manelinho, filho de merceeiro que tem o capital como religião; Susaninha, pequeno-burguesa de cabeça nas nuvens; Miguelito, repositório para as teorias da conspiração mais assombrosas; o irmão bebé, Guilherme, com mais chupeta na boca que palavras de ordem; e Liberdade, a anã sobre a qual «todos tiram a sua conclusão estúpida». Com uma menção honrosa, claro, para a tartaruga de estimação de Mafalda, carinhosamente apelidada de Burocracia.
Não há em Mafalda aventuras no sentido lato da palavra. Não é uma BD à procura de tesouros, super-vilões, cidades escondidas. Mais que fazer-nos sonhar, Mafalda faz-nos pensar: no mundo, na sociedade, naqueles que nos lideram sem liderar, naqueles que sofrem, que caem, que não dialogam. Naqueles que confundem decência e indecência com correntes políticas. Naqueles que preferem afundar-se no ódio a respirar na compreensão. Tudo sem falinhas mansas: a humanidade é em Mafalda um bem demasiado precioso para não lutarmos a sério por ele, mesmo que por vezes a luta nos deixe esgotados.
Tão precioso que Quino não pôde dizer que não à UNICEF, em 1976, já as tiras de Mafalda tinham desaparecido dos jornais há três anos – o autor sentia que o modelo havia chegado ao fim e que Mafalda, doravante, só se iria repetir. Em honra do Ano Internacional da Criança, o Fundo pede-lhe que desenhe os dez princípios da Declaração dos Direitos da Criança, recorrendo a Mafalda e seus amigos.
Foi uma das poucas aparições de Mafalda em público, após a sua “reforma”, e as outras prender-se-iam também com campanhas diversas – como em 1984, a pedido da Liga Argentina para a Saúde Oral, em 1986, a pedido do Ministério da Educação, e em 1987, a pedido do cantor catalão Joan Manuel Serrat, que queria um desenho de Mafalda a adornar o disco “El Sur También Existe”, que só surgiu já o álbum estava nas lojas... A chegada de Mafalda à televisão, nos anos 90, foi para muitos a introdução, e para outros tantos a despedida, de um dos maiores ícones argentinos de sempre – só perderá para outro “M”, de Maradona.
A reforma de Mafalda não ditou a de Quino, que continuou a editar até 2007, ano em que “A Aventura de Comer” colocou um ponto final na sua bibliografia, já depois de uma sucessão de problemas de saúde que o deixaram quase cego. Em 2014, foi-lhe entregue o Prémio Príncipe das Astúrias de Comunicação e Humanidades, já depois de ter obtido a nacionalidade espanhola. Seis anos depois, surge a notícia que poucos gostariam de receber: a da morte de alguém que conseguiu, do alto da sua arte, tocar tantas e tantas pessoas, tão díspares entre si, dos 8 aos 80 anos de idade. Dada pelo seu editor, Daniel Divinsky, que o resumiu como mais ninguém conseguiria: «Todas as boas pessoas no país e no mundo o chorarão». Que seja essa a lição principal a retirar da obra de Quino: Sejamos boas pessoas. Apesar de tudo.
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