“Não há vida sem a realidade da morte”, conta Cátia Ferreira. “Encarar a finitude e normalizar isso é importante, não só enquanto profissional de saúde, mas também enquanto pessoas; é importante consciencializar-nos enquanto sociedade que essa é uma realidade que existe e não é possível separá-la do nosso quotidiano e do dia-a-dia.”

Esta enfermeira dos cuidados paliativos do Hospital de São João, esteve na décima edição do TEDxPorto para falar da sua experiência a acompanhar doentes terminais. E de que forma  confiança lhes devolve o controlo da vida que se esvai. “Cada pessoa deve ser sempre o autor da sua biografia, escrever este capítulo da terminalidade.”

Aqui entra a confiança. “É importante que a pessoa em fim de vida confie nela própria, restabeleça essa confiança consigo para encontrar recursos para ultrapassar uma situação de extrema adversidade, que é o confronto com a sua própria finitude”, explica a enfermeira ao SAPO24.

“Depois, a pessoa em fim de vida tendencialmente usa focos de segurança, que são as pessoas — podem ser amigos, familiares, e até os profissionais de saúde. E é efetivamente nos profissionais de saúde que muitas vezes ela vai confiar os desejos, as crenças, os medos, os mitos, como forma de restaurar a segurança e ultrapassar um momento de extrema fragilidade e vulnerabilidade”, diz Cátia.

Porém, como pode valer a pena confiar num profissional de saúde, quando nem o corpo dá garantias ou certezas? Cátia afirma que é importante manter a confiança: “porque eles [os profissionais de saúde] são as pessoas que podem ajudar cada um de nós a encontrar resposta às necessidades e uma adaptação, no fundo a fornecer conhecimento que permita responder à adversidade”.

“Exemplo: ‘eu gostaria de ser autónomo para andar e não consigo; como é que eu controlo os sintomas decorrentes da minha doença?’ É possível caminhar com o doente e com a família de forma a devolver-lhes esse controlo. Ensiná-los a lidar e a gerir e a conviver com a doença — este é o segredo para restaurar a confiança perante uma situação de adversidade como esta”, explica.

Cátia, que está no São João desde 2008, é também docente convidada para as áreas da ética em fim de vida e cuidados paliativos em várias instituições de ensino, colaborando na formação avançada nestas áreas de saúde. Com mestrado em cuidados paliativos e especializada em bioética, é ainda pós-graduada em gestão da qualidade na saúde.

Apesar do currículo, afirma que não é ela quem ensina às pessoas como encarar a proximidade do fim da vida. “É a pessoa que nos ensina; nós somos, no fundo, mediadores”, diz. “Estamos disponíveis para, na medida em que a pessoa nos confia essa tarefa, colaborar com ela nesse sentido. O que significa que cada pessoa é única e irrepetível; aquilo que vai ser a finitude da Cátia, ou do Pedro, ou do António vai ser diferente.”

“As pessoas são únicas e irrepetíveis”, insiste. “E é importante entender isso, que ninguém é dono da vida de ninguém. E apesar de nascermos com um prazo de validade, sabemos que perante a incurabilidade da doença ou um prognóstico difícil, o prognóstico não é mais do que uma incerteza.”

Assim, “é preciso restaurar a confiança da pessoa, entendendo que ela tem capacidade de mobilizar recursos internos para responder à adversidade. E é nesse sentido que digo que nós não vamos ensinar a pessoa, vamos capacitá-la naquilo que possam ser recursos técnicos e colaborar com ela nessa restauração da sua pessoalidade”.

“Apesar de ter feito formação e apesar da experiência, as pessoas de que cuido e os doentes são os meus verdadeiros mestres.” “As pessoas, cada um de nós pode ser o verdadeiro mestre neste caminho de fim de vida, na medida em que vai mobilizar recursos, vai preparar aqueles que lhe são próximos para o que vai acontecer, e por isso eu recebo muito mais do que aquilo que dou”, explica. “É verdade que enquanto enfermeira dou a disponibilidade, o conhecimento técnico, a relação”.

“Isto para mim é o centro e o coração dos cuidados de enfermagem. Mas as pessoas efetivamente são os meus mestres, são elas que me ensinam e que dão o testemunho na primeira pessoa de como lidar com a adversidade, com a morte e com a finitude”, conta.

No meio disto, como pode a Cátia ser capaz de separar o drama de um doente da vida que é a dela? Primeiro, há que perceber que “não há vida sem a realidade da morte." Só depois entra em jogo a formação, a prática, o treino. “O primeiro passo é este, é a consciência de que todos nós somos mortais, que todos vamos morrer. E os profissionais que lidam de perto com esta realidade têm de obter formação e prática neste sentido.”

“Por isso, para cuidar em cuidados paliativos requer-se formação, treino e experiência. As equipas especializadas são constituídas por profissionais treinados, com formação avançada, específica nesta área. Claro que a formação e a experiência ajudam-nos; ajudam-nos a centrar naquela verdadeira relação e a ter mecanismos de 'coping', ou seja para lidar com as emoções do dia-a-dia”, explica.

Ainda assim, “claro está que é impossível não haver de quando em quando uma identificação”. Até porque “as pessoas que vivem neste processo de doença requerem que sejamos verdadeiros e ao ser verdadeiro e autêntico há claramente alguma exposição, alguma fragilidade e alguma vulnerabilidade, que a Cátia enquanto pessoa também experimenta. Mas não significa que eu saia desta relação penalizada ou fragilizada; não, ela de alguma forma fortalece para continuar a poder ajudar outros.”