Às 8h04m, Carlos Vieira abre a porta que dá acesso à sala de troféus. Segundos antes, tinha deixado entreaberto um acesso ao relvado do Estádio Alfredo da Silva. Herdado o nome do importante industrial do século XX, é um estádio imponente, aberto, 22 mil lugares sentados, bancadas de pedra e uma tribuna com cadeiras de madeira que carregam o peso de um clube com história no futebol português.
Entre taças penduradas e fotografias suspensas na parede, apresenta-se ao SAPO24. “Sou guardião de todo o complexo desportivo do Grupo Desportivo Fabril. Todos os dias, chego às 8h00 e saio às 20h00, é conforme”, assinala.
Um complexo que Carlos Vieira viu nascer. “Assisti à inauguração do estádio Alfredo da Silva (junho de 1966). Era trabalhador da empresa, na CUF (Companhia União Fabril)”. Ali trabalhou “37 anos”. Reformou-se “em 1989”.
Tem 83 anos. Tantos quantos a data oficial da fundação do clube, em fevereiro de 1937. Uma data sobre a qual existem algumas dúvidas. “Descobrimos uma bandeira, de 1928”, desvenda. Mais tarde, fará questão de mostrá-la no meio do relvado.
Nascido no Beato, em Lisboa, Casa Piano, “adepto do Clube de Futebol os Belenenses e não da SAD”, antigo jogador, nas camadas jovens do Casa Pia, que uma lesão “frente ao Sporting” o atirou, para sempre, para fora de campo, apaixonou-se, à primeira vista, pelo então Grupo Desportivo da CUF do Barreiro, hoje Grupo Desportivo Fabril.
“Praticamente estou aqui desde 1973. Estive também em Santa Bárbara (antigo estádio) como seccionista. Após o 25 abril, fiquei ligado ao clube e só não fiz parte de uma direção (Pedro Costa)”, relembra.
O troféu do melhor público para a UEFA e FIFA
A conversa segue sem rumo certo. Carlos Vieira é diretor das instalações. Veste-se de curador numa galeria. Circula, às voltas, na sala quadrada que guarda os troféus. Aponta para um. Por sinal, o único ganho fora-de-campo. “O troféu do melhor público atribuído pela FIFA e UEFA, quando a CUF andou nas provas europeias”. Está ladeado pelo título nacional da 2ª divisão e o 3.º lugar no campeonato nacional da 1ª divisão.
Salta entre modalidades. Avulso, enumera os heróis das fotografias, legendando-as. “Joaquim Fernandes. Ganhou a Volta a Portugal, em ciclismo”. No Basquetebol “tivemos um dos melhores bases, o Cerqueira”. No remo, “dois atletas olímpicos, o Bóia e o Bastos, ali está o troféu da Regata internacional de Casablanca”. No hóquei patins, “o Vítor Domingues, campeão mundial e considerado o melhor guarda-redes do mundo". E, por fim, no atletismo, “tivemos uma pista de cinza, junto ao campo João Pedro, jovem que faleceu após um jogo com o Barreirense, a que demos o nome do antigo campo 13 de agosto”, relembra.
Centra-se no futebol. “O Arsénio, avançado, veio para aqui já no fim da carreira depois de ter sido craque no Benfica ao lado do Espírito Santo. Ganhou a Bola de Prata no pelado de Santa Bárbara. Trabalhou depois comigo”.
Apresenta mais cromos. “O Manuel Fernandes (Sporting). O Mário João, bicampeão europeu pelo Benfica, regressou à CUF, onde era trabalhador. Vítor Pereira, um dos mais internacionais em todas as seleções de jovens, jogou no Boavista e o Conhé, do Tomar e Sporting”, desfila. E até presidentes de outros clubes. “O ex-presidente do Vitória de Setúbal, Fernando Oliveira está nesta equipa (defrontou o Milão)”.
O jogo com o AC Milan (vitória por 2-0, no Barreiro) de Maldini e Trapatoni, na então Taça as Cidades com Feiras, é um dos porta-estandartes da conversa. Está bem vivo na memória de Carlos Vieira. “Vi o jogo no Barreiro. Depois, os jogadores trouxeram-me de Itália a ementa do jantar. Guardo-a no meu arquivo de recordações”, elenca este sócio às portas de meio século de associado.
“Há clubes de primeira que não têm esta história, nem as instalações”
Viaja pelas siglas empresariais que serviram às duas primeiras cerimónias de batismo. CUF e Grupo Desportivo da Quimigal, após a “Revolução dos Cravos” (1977). O GD Fabril, surge em 2000. “Mudou de nome, não por dívidas, mas sim por processos políticos e mudança de nome da fábrica”, explica. “Ficou Fabril, porque os sócios entenderam que devia ficar ligado à fábrica (Fabril). Nessa assembleia-geral foi apresentada outra proposta. Clube União de Futebol do Barreiro. Estava lá a palavra CUF, mas foi derrotada”, recorda.
“Continua a ser um grande clube. Com uma história muito grande. Há clubes de primeira que não têm esta história, nem as instalações”. Em Santa Bárbara ou no Lavradio. “O Eusébio e o Coluna adormeciam na sauna, quando vinham treinar com a seleção. Era o único clube que tinha”, regista.
Deixa a sala e caminha até à relva impecavelmente tratada. “Ando sempre em cima dela. Os adubos, é oferta da fábrica. Para a semana vou buscar uns sacos”, informa. Dá um recado a Pedro, um dos colaboradores do clube, antes de este puxar o fio da máquina que corta a relva. É a última aparadela antes do jogo da terceira pré-eliminatória Taça de Portugal, diante o FC Porto. Uma partida sem público, num palco que já recebeu 33 mil espectadores em partida da prova rainha que opôs o Pinhalnovense ao Sporting.
“Um clube operário que deixou de ser fortemente operário, após o 25 de abril. Tornou-se meio burguês, a coberto de ser popular”
Faustino Neves, atual presidente do clube, ajuda a colocar publicidade estática “em sítios estratégicos” para não colidir com a que será “colocada pela Sport TV”.
No cargo desde 2017, soma seis anos mais como presidente (2003 a 2009). É o mais antigo, na soma dos três clubes.
Viaja às origens da CUF. Quem liderava o clube-fábrica tinha Engenheiro como prefixo. “Não havia ato eleitoral. A maior parte, vinham empurrados pelos donos da fábrica. Tinham trabalhadores nas equipas, faziam um mandato, dois anos e iam embora. Não faltava nada, mas as responsabilidades eram grandes”, garante.
Discorre sobre o código genético do clube. “A génese operária está bem presente. É um clube de gente séria. Assume as suas responsabilidades. Somos dos poucos sem dívidas a jogadores, treinadores, fornecedores ou fisco. Tudo em dia. Somos um exemplo”, atira.
Solta, no entanto, um lamento, a olhar para trás. “É um clube operário que deixou de ser fortemente operário após o 25 de abril. Tornou-se meio burguês, a coberto de ser popular. E deixou de ser clube de trabalhadores, para ser um clube de incompetentes. No clube e na fábrica. Deram cabo das duas coisas”, referindo-se aos anos que ditaram a queda da CUF, nas divisões inferiores (1977), depois de 22 entre os grandes do futebol português. “A CUF tinha 11 mil trabalhadores e o clube, da 1ª foi parar à Distrital”.
“O clube nunca teve nada de seu a não ser o património desportivo”
Contestatário da Associação de Futebol de Setúbal e da governação autárquica do Barreiro, Faustino, filho de operários, esquece o futebol e entra no campo da política.
“Tivemos muitos presidentes comunistas no clube. Podiam olhar e ver tudo o que havia aqui, havia na União Soviética e deviam dar seguimento”. O tudo era uma fábrica “que dava guarida aos jogadores de todas as modalidades, criou emprego, os filhos dos operários tinham uma maternidade, uma creche, tínhamos um hospital, o primeiro hipermercado do país, colónias de férias para os miúdos”, recorda, com saudade. “Tudo o que tinha no Barreiro, havia na URSS. A diferença era o regime político. Estragaram tudo. Tínhamos tudo”, lamentou.
Continuou. Discorre sobre terrenos onde se insere o complexo desportivo. “O maior património”, exclama. Tenho dúvidas que haja clubes com isto”, remata. A superfície térrea, no entanto, não lhes pertence. São da família Mello.
“A família já teve tempo de se redimir das asneiras que fez ao clube. Têm este património, construído pelos antepassados. Eu, como presidente, sempre lhes abri as portas, sempre quis ser um parceiro”, vincou. “Têm sido um maior adversário na nossa casa. Quando saírem, abro uma garrafa de champanhe”, anuncia.
“Não pudemos evoluir porque um antigo presidente assinou um contrato de Direito de Superfície, por 50 anos, a favor do clube. Passaram 20, faltam 30”, suspira. “Mas, isto era nosso, tínhamos direito a isto”, frisa.
“A família Mello e quem estava na câmara municipal, tiram-nos o crescimento”, reitera. É engraçado ver os Mello e os comunistas do mesmo lado, é fantástico”, sorri.
As revelações continuam. “Parece que um grupo de empresários comprou os terrenos. Em junho de 2021, as escrituras podem ser feitas”. Caso se concretize, a partir de então, começa uma nova vida para o GD Fabril.
“Já vieram falar connosco para abdicarmos do Direito de Superfície. Aceitaremos. Em troca, pedimos, em doação, uma parcela de 44 mil metros quadrados onde está o Estádio. A partir de então, “poderemos ter algo nosso”, suspira. “Da CUF ao Fabril, o clube nada teve. Era da fábrica, depois do 25 de abril, dos Melo. O clube nunca teve nada de seu a não ser o património desportivo. E isso não se pode roubar”, assevera.
Regressar à 1ª divisão com os terrenos na mão
“Queremos ficar donos disto e, neste cantinho, que é grande, e depressa vamos chegar a 1ª divisão”, promete.
Para já, o Grupo Desportivo Fabril está no campeonato de Portugal. O orçamento do futebol cifra-se nos “4 mil euros mês”, anota. “Há clubes distritais com mais orçamento e treinadores do campeonato Portugal que ganham o mesmo”, aponta.
“Só dou duas certezas a quem vem para cá. Pago a tempo e horas e têm condições de 1ª divisão para exercerem a atividade”, garante Faustino Neves que volta a tocar numa tecla. “Temos a ambição de estabilizar no campeonato Portugal mais um ano e tentar voltar aos palcos que são dele por direito. Os campeonatos profissionais”, finaliza.
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