Se não fosse hoje, provavelmente seria amanhã. Ou depois da próxima jornada ou, se Lukaku estivesse num dia sim, só na outra. Era uma questão de tempo até que acontecesse, até que José Mourinho caísse.
Estava lá, nas conferências de imprensa em que perante as más exibições duelava com os jornalistas para relembrar quem já foi; na relação com Paul Pogba, contratação feita a pedido e tantas vezes utilizado como desculpa esfarrapada; na incapacidade tática de uma equipa com dificuldades em partir para cima do adversário com perigo e em defender com eficácia; num balneário despojado, desde a saída de Zlatan Ibrahimovic, de figuras fortes e dispostas a ir até ao fim do mundo com o treinador português.
E estava também no mais 'palpável'. Nos números, claro. O Manchester United somava a sua pior pontuação de sempre (26 pontos) à pior defesa de sempre (29 golos sofridos) a uma 17.ª jornada da Premier League. Para além disso, já foi eliminado da Taça da Liga e gastou mais de 466 milhões de euros em reforços sem que isso tivesse grande reflexo na maneira de jogar da equipa.
Era uma questão de tempo até que acontecesse. Todos sabíamos que ia acontecer, da mesma maneira que sabemos que o Toyota Corolla de 72 herdado da juventude do nosso pai não vai pegar sem mais nem menos depois de estar oito anos parado na garagem, entregue ao tempo, sem o devido cuidado.
O treinador que falou depois do encontro entre Liverpool e Manchester United (3-1), no passado domingo, está longe do treinador que um dia, no antigo estádio das Antas, deu um murro na mesa para dizer que seria campeão fosse em que condições fosse.
Esta terça-feira, o despedimento de José Mourinho do comando dos Red Devils não choca. Os adeptos não batem o pé, como quando português foi demitido na primeira vez que passou pelo Chelsea, nem dão o peito às balas para dizer a viva voz que o melhor treinador do mundo é o “Special One”. Olha-se para o comunicado emitido pela direção do clube de Manchester simplesmente como algo que sublinha perante o mundo aquilo que uma primeira temporada pintada a cor-de-rosa em Old Trafford - com a conquista da Supertaça Inglesa, Taça da Liga e Liga Europa - escondeu: os rumores acerca da transformação de José Mourinho num treinador "comum" não foram exagerados.
Existem dois tempos muito distintos na era era de José Mourinho. O primeiro começa no FC Porto, onde o português se apresentou ao mundo, levando à boleia o selo de qualidade do treinador português, com a conquista de dois campeonatos nacionais, uma Taça de Portugal, uma Supertaça Cândido de Oliveira e, acima de tudo, uma Taça UEFA e uma Liga dos Campeões. Prossegue com a partida de José Mourinho para o Reino Unido, onde assume o comando técnico do Chelsea e a alcunha de “Special One”, e onde conquista o primeiro campeonato da equipa londrina após mais de 50 anos de espera, logo na sua época de estreia. Do segundo capítulo, que numa saga de sucesso costuma ser o pior, Mourinho levou um bicampeonato, uma Taça de Inglaterra, duas Taças da Liga, uma Supertaça Inglesa.
O expoente máximo de quem era José Mourinho, um treinador diferente dos iguais, quer na postura, quer nos resultados, chega em Itália, quando na segunda época ao serviço do Inter Milão consegue um triplete - Serie A, Taça de Itália e Liga dos Campeões.
É lá que começa uma disputa épica com Pep Guardiola, depois de ter eliminado o FC Barcelona comandado pelo antigo internacional espanhol na meia-final da ‘Champions’. E é de lá que traz uma ideia mecânica, resultadista e pouco estética do futebol, longe da emoção com que tinha dado vida às suas equipas, no Porto e em Londres.
Ambos os marcos atrás citados o matariam. No Real Madrid, um futebol que não potenciava toda a qualidade que uma equipa que contava com nomes como Kaká, Cristiano Ronaldo, Karim Benzema, Di Maria ou Mesut Ozil podia trazer ao jogo, e uma disputa cega com Guardiola pelo título de melhor treinador do mundo, fez com que a passagem do português pela capital espanhola seja uma recordação distante e não propriamente de boas memórias, apesar de Mourinho ter conseguido conquistar um campeonato com o melhor registo de pontos de sempre dos merengues.
Mas em Espanha, por muito pouco prazerosa que tenha sido a experiência, outra coisa saltou à vista. Mais importante do que o futebol praticado, assistiu-se, pela primeira vez, a um balneário não estava disposto a ir até ao fim do mundo com José Mourinho.
Viria a acontecer o mesmo no Chelsea, quando o português ousou voltar onde já tinha sido feliz. Venceu na primeira época; 'morreu' no balneário na época seguinte. Depois da primeira temporada em Old Trafford, a perda de habilidade de Mourinho em lidar com os grandes egos da equipa vinha para a hasta pública, com o treinador português a utilizar conferências de imprensa para criticar publicamente os seus atletas, ainda de uma forma não muito distante daquela em que um dia, como treinador do SL Benfica, repreendeu Sabry em dois minutos e alguns segundos que ficariam marcados na história do futebol português.
Era suposto que, em Manchester, Mourinho vencesse o tempo, se renovasse. Que encarasse o legado de Alex Ferguson e reerguesse a equipa, recolocando-a junto aos gigantes europeus. Em vez disso, as contratações de estrelas como Paul Pogba, Lukaku, Henrikh Mkhitaryan e, principalmente, Alexis Sánchez, nunca pareceram encaixar (com exceção da primeira temporada, nas competições a eliminar) naquilo que o português pretendia para a equipa.
As qualidades que mais admirávamos em Mourinho, dos mind games à capacidade de unir e blindar uma equipa, de manter um balneário na sua peugada, são aquilo que hoje lhe atiramos à cara.
Sentado naquela que, quer pelo momento da carreira, quer pela importância de quem nela se sentou, pode ser considerada uma "cadeiras de sonho" do futebol, mundial, José Mourinho falhou num clube sem margem para falhanços. E falhou quando, a poucos quilómetros de Old Trafford, Pep Guardiola formava um projeto consistente, vencedor e unido, onde todos parece remar para o mesmo lado e caminhar ao lado do seu líder.
O motor do Toyota não pega, o discurso de José Mourinho não cola. Faltam peças e ninguém acha que valha a pena uma pintura, uma mudança de óleo e talvez um arranjo no motor. Ninguém, excepto Mourinho.
Hoje o português é igual a qualquer outro treinador que chegou, venceu, perdeu a mão e foi desacreditado por uma direção vergada por um sistema facilitista que despede um treinador como quem troca de gravata, e por uma opinião pública que deixou de o segurar e de relembrar, a cada momento, que estamos perante um dos mais titulados treinadores da história do futebol europeu.
No segundo seguinte ao despedimento, a Internet ramificava-se em possíveis destinos para José Mourinho. Assumindo que o português quererá continuar nos melhores campeonatos de futebol do mundo e resistir aos milhões tentadores das Arábias, China e Estados Unidos da América - fator para o qual, em muito, deve contribuir o montante de 27 milhões de euros que, avança a comunicação social britânica, o Manchester United lhe terá de pagar pela rescisão de contrato -, sobram dois grandes em crise: Real Madrid e Bayern Munique.
Apesar da necessidade urgente de uma reviravolta nos resultados, a relação entre Mourinho e Florentino Pérez, presidente dos merengues, pode não estar ainda sarada o suficiente para um reencontro. Já o Bayern Munique, a nove pontos do Borussia Dortmund, líder da Bundesliga, apresenta-se como um desafio interessante, onde o português poderá tentar mais um título nacional, depois de já o ter feito em Portugal, Inglaterra, Itália e Espanha. Para além disso, nos bávaros existe uma marca recente a bater, deixada por Pep Guardiola, e que Mourinho poderá assumir como aliciante de bater: vencer o título europeu que fugiu por três épocas consecutivas ao espanhol.
Às hipóteses de circunstância soma-se também a hipótese de coração. Apesar do Inter Milão estar de boa saúde, especialmente em comparação com as últimas temporadas, um reencontro com o último treinador que fez do clube um gigante será sempre uma opção em cima da mesa.
Por último, José Mourinho pode simplesmente ficar a afinar o Toyota na garagem nos próximos meses até que apareça um desafio verdadeiramente aliciante que o devolva ao topo, que o volte a tornar “special”. Que o tire do lugar onde vive o treinador "comum" e onde sabemos que não pertence.
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