Não são incomuns as histórias de empresas que de repente inundam um determinado mercado e rapidamente conquistam a confiança de um volume significativo de consumidores. Já vimos este fenómeno acontecer numa série de indústrias e, por norma, deve-se a um de três fatores:

  • têm um produto/serviço mais barato do que a concorrência com os mesmo nível de benefícios;
  • trouxeram para o mercado o solução completamente inovadora e que resolve um problema de uma forma mais conveniente;
  • criaram uma comunicação completamente diferenciadora que faz com que, mesmo que não tenham a solução perfeita ao preço perfeito, há algo no seu discurso que faz consumidores optarem por ela.

Os fatores não são exclusivos, mas podem ser encontrados numa qualquer empresa de sucesso nos últimos 100 anos. É por isso que a história da VinFast, uma empresa vietnamita que, há duas semanas, se tornou na terceira marca automóvel mais valiosa do mundo, despertou a atenção da maior parte das publicações.

Para se ter uma noção, a VinFast vale (à data deste artigo) 100 mil milhões de dólares, estando atrás apenas da Tesla (#1) e da Toyota (#2) e à frente de marcas como a Ford, a Mercedes e a Volkswagen. Como é que uma marca desconhecida para a maior parte do público, cujos carros provavelmente nunca encontrámos na rua, chega a um patamar deste género? Há algumas razões que podem ajudar a explicar este fenómeno.

Há 30 anos, no Vietname…

Era criado o VinGroup, um dos maiores conglomerados empresariais daquele país, pela mão de Pham Nhât Vuong, atualmente o homem mais rico do Vietname. Desde a sua criação, o VinGroup foi-se espalhando para uma série de indústrias da tecnologia ao imobiliário, da saúde à restauração e turismo. Um pouco à semelhança do que Richard Branson fez com a Virgin.

VinFast
Pham Nhât Vuong, CEO do VinGroup créditos: VinGroup

Em 2017, o grupo vietnamita decidiu apostar no mercado dos automóveis e lançou a marca VinFast, focada na produção de veículos e scooters, tornando-se também na primeira marca automóvel originária do país. Inicialmente, a aposta ia ser na produção de modelos com motor a combustível e em tornar a VinFast na revendedora de marcas internacionais no Vietname, de modo a gerar também algumas receitas iniciais.

Em 2018, lançou os seus dois primeiros veículos – O LUX SA2.0 e o LUXA2.0 – e uma gama de scooters, que começaram logo a ter algum sucesso por serem um meio mais popular de deslocação no Vietname. Nesta primeira fase, contou com o apoio de marcas internacionais como a BMW, a Chevrolet e a Magna Steyr, para desenhar e produzir os modelos de estreia em ambas as categorias.

Com base nesta oferta, a VinFast começou a crescer no mercado vietnamita (100 milhões de pessoas de acordo com censos de 2021) tanto no segmento de carros como no de scooters, ganhando popularidade num segmento cada vez mais alargado de clientes. Contudo, em 2021, a marca tomou uma decisão ambiciosa para quem ainda estava apenas a começar: abandonar por completo a produção de modelos com motor a combustível a partir de 2022 e apostar na oferta de carros 100% elétricos. Nesse ano, apresentou o seu primeiro modelo elétrico – o VF e34 – e começou a dar uma série passos que visavam a sua expansão internacional.

Devido ao contexto de pertencer a um conglomerado com presença já numa série de países, a VinFast começou a investir em fábricas e escritórios no mercado asiático, na Europa, nos EUA e no Canadá. Ao contrário de uma marca como a Tesla (ou outras rivais), que tiveram de construir a sua infraestrutura de produção de raiz, a VinFast beneficiou de recursos e know-how de produção de outros negócios do VinGroup (que subsidiavam o seu desenvolvimento) e apostou na criação de relações com stands de carros locais para fazer chegar os seus modelos aos consumidores. Por isso, apesar de não ter uma reputação no mercado automóvel, a sua capacidade e rapidez de lançamento estaria muito mais próxima de um grupo como a Volkwsagen ou a Daimler (Mercedes) do que uma nova marca de elétricos a surgir do nada com um roadmap de dez anos e não de dois.

Mesmo assim, é difícil não olhar para esta decisão da VinFast como uma pura jogada de marketing a procurar tirar proveito de uma tendência do mercado. 2021 foi o ano em que a Tesla começou a atingir valorizações recorde semana após semana não só devido aos seus resultados, mas porque havia um entusiasmo generalizado dos mercados financeiros, dos investidores institucionais aos individuais, de que estavámos num ponto de inflexão no que diz respeito à mobilidade elétrica.

Gama de modelos elétricos da VinFast créditos: VinFast

Assim, a marca vietnamita começou a produção de veículos e scooters elétricas, abriu novas fábricas e começou a entrar em novos mercados de uma forma muito discreta, quando comparado com outras marcas. Nos EUA, por exemplo, que é claramente um dos mercados prediletos, a VinFast negociou um acordo com o Estado da Carolina Norte, que representou um incentivo fiscal de 1,2 mil milhões de dólares para construir uma fábrica que vai ter a capacidade de produzir 150 mil veículos por ano. Nada mau para uma empresa que até ao final de 2022 não tinha vendido um único carro do outro lado do Atlântico.

Uma entrada em Bolsa contra a corrente

Os últimos dois anos trouxeram um arrefecimento no mercado bolsista. Muitas empresas que fizeram uma IPO durante a pandemia viram a sua valorização diminuir nos meses seguintes e outras, que tinham planeado a sua cotação, acabaram por desistir da ideia com medo de atingir um valor abaixo do esperado.

No entanto, na visão da VinFast, uma entrada na bolsa americana, mesmo que num contexto económico desfavorável, ia ao encontro dos seus planos de crescimento. Façamos um ponto de situação da marca em 2023, com base no seu relatório mais recente (com números não auditados):

Lançou os seus modelos elétricos mais recentes – o VF8 e o VF9 – que já contavam com mais de 60.000 reservas em setembro de 2023
Ultrapassou os 100 mil veículos e 170 mil scooters vendidas (elétricas e a combustível)
Atingiu uma capacidade de produção de 300 mil veículos elétricos/ano
Já conta com 118 showrooms com os seus modelos no mundo inteiro
De janeiro a setembro de 2022, período que utilizou na documentação entregue ao regulador americano SEC, registou receitas de cerca de 450 milhões de dólares, com um prejuízo de 1,4 mil milhões de dólares.

Em último caso, a própria entrada na bolsa americana era uma estratégia de comunicação para se dar a conhecer ao mercado, de uma forma que provavelmente uma campanha de marketing não o faria. E, assim, avançou. A 14 de agosto de 2023, a VinFast anunciou que ia passar a estar cotada na Bolsa de Nova Iorque através de uma SPAC (Special Purpose Acquisition Company) um modelo de cotação que permite escapar a alguma da burocracia necessária para o registo nos mercados financeiros, com uma avaliação de perto de 23 mil milhões de dólares.

Nos dias seguintes, tornou-se um dos investimentos prediletos dos investidores, nomeadamente traders individuais, que viram na VinFast uma oportunidade que já não tinham há bastante tempo. A sua valorização quase que quadruplicou passados alguns dias, ultrapassando os 80 mil milhões de dólares, e duas semanas depois a marca já valia 160 mil milhões de dólares, uma capitalização apenas inferior às lideres de mercado Tesla (1.8 milhões de carros vendidos em 2023) e a Toyota (4.9 milhões de carros vendidos em 2023). Marcas como a Volkswagen (158 mil milhões de dólares de receitas em 2023) passaram a valer menos do que a incumbente vietnamita.

VinFast
Entrada da VinFast no Nasdaq VinFast

Os mais céticos poderão dizer que se trata de pura especulação de mercado como se viu com empresas como a AMC ou a GameStop, até porque a VinFast não tinha muitas ações a serem negociadas em Bolsa (o que contribui para a oscilação de preço). Mas essas empresas não tinham números que justificassem o valor que lhes estava a ser alocado, ao contrário da VinFast que, apesar de estar ainda distante das suas rivais na mobilidade elétrica, acaba por apresentar um potencial de crescimento significativo.

Outro fator que causou algum espanto para a valorização atingida pela VinFast foi a própria tendência para uma desaceleração na procura por veículos elétricos nos mercados ocidentais que estudos recentes têm destacado, que parece não ter demovido o entusiasmo dos investidores.

Por outro lado, os menos céticos dizem que a valorização da VinFast se prende com a geopolítica e não com negócio. Numa altura em que as tensões entre EUA e a China continuam acesas e que o país asiático desempenha um papel cada vez mais importante na produção e comercialização de veículos com várias marcas locais, a VinFast não apresenta esse tipo de desafios para o consumidor americano médio e tem a particularidade de estar num mercado onde já existem infraestruturas de produção bastante avançadas que dão potencial ao seu crescimento.

Até 2026, a VinFast espera estar a produzir 1,1 milhões de carros elétricos por ano e algo nos diz que, para o bem e para o mal, a sua história não ficou por aqui.