1. Esta semana, a CNN revelou imagens de homens a serem vendidos na Líbia por algumas centenas de dólares. As imagens foram replicadas pelo globo, e entregues às autoridades líbias. O leilão filmado pela CNN, com câmara escondida, nos arredores de Tripoli, aconteceu no mês passado. Vários outros estavam a acontecer não muito longe, disse a repórter. Em Agosto, a CNN recebera imagens de homens a serem licitados na Líbia pelo equivalente a 400, 700, 800 dólares. Foi assim que, ao fim de dois meses de preparativos, uma equipa aterrou em Tripoli para tentar filmar essas vendas de migrantes do Niger, do Gana, da Nigéria, do Mali. No leilão a que os enviados tiveram acesso, a licitação sucedeu rapidamente: 400, 450, 550, 600, 650, 700... Em minutos, 12 nigerianos foram vendidos. Os traficantes chamaram-lhes “mercadoria”.
A reportagem mostra também um dos centros de detenção líbios em que se concentram dezenas de milhares de migrantes. Alguns deles confirmam a existência de leilões, contam que foram vendidos, sujeitos a trabalho forçado, abusos, espancamentos, mutilações.
A Líbia é um trampolim para tentar passar o Mediterrâneo. As autoridades estão a impedir as viagens de barco, de acordo com os interesses da União Europeia. Reféns dos traficantes que lhes prometiam a Europa, incontáveis migrantes acabam vendidos e revendidos.
2. As imagens da CNN mostram o que geralmente não é filmado, e têm grande poder de circulação. Mas a escravatura actual está longe de se resumir aos leilões na Líbia. O relatório do Global Slavery Index 2016 contabiliza 45,8 milhões de pessoas escravizadas em todo o mundo. Por escravizadas entende-se: trabalho forçado, casamento forçado, exploração sexual e trabalho imposto pelo estado. Mais de metade destes escravizados (58 por cento) vivem em cinco países asiáticos: Índia, China, Paquistão, Bangladesh e Uzbequistão. Em termos absolutos, a Índia é, de longe, o país do mundo com mais escravizados: acima de 18 milhões. Em termos relativos, quanto à percentagem de população escravizada, a Coreia do Norte está em primeiro lugar. Depois da Ásia, a África é a parte mais significativa deste horror, com vários países nos 10 primeiros lugares, quanto a percentagem de população escravizada. Como o índex sublinha, muitas destes cativos contemporâneos, sobretudo na Ásia, são a mão-de-obra de produtos depois comercializados na Europa, nos Estados Unidos, no Japão ou na Austrália.
Portugal aparece mais para o fim do índice (122º país) com 12.800 pessoas em situação de escravatura. O relatório indica-o como um dos 10 países do mundo que mais se têm esforçado para combater a escravatura moderna. Mas 12.800 pessoas ser um dos números mais baixos dá a dimensão do horror.
A grande maioria das pessoas escravizadas no mundo é mulher, 71 por cento. Elas são maioritárias em três categorias, incluindo trabalho forçado. A excepção é o trabalho forçado pelo estado, aí os homens são mais. E uma em cada quatro pessoas escravizadas não é adulta: 25 por cento de crianças.
3. Nigéria, República Democrática do Congo, República Centro-Africana, Líbia, Somália, Sudão, Sudão do Sul, Mauritânia são os países africanos nos dez primeiros lugares do index, em termos proporcionais (vários deles empatados). Mas, dada a dificuldade de registos, é provável que os números reais sejam muito maiores. Em alguns destes países vigora ainda, ou vigorou até há pouco, o estatuto oficioso de “servo” ou “descendente de escravo”: pessoas, por vezes famílias inteiras, que podem ser herdadas, vendidas ou dadas de presente. Muitas das mulheres com esse estatuto são usadas sexualmente, incluindo crianças. Muitas das crianças com esse estatuto não têm direito a escola. Em países como a Mauritânia esse estatuto pode abranger uma larga fatia da população. O antropólogo português Francisco Freire — que há anos acompanha a Mauritânia, e com quem falei antes de escrever esta crónica — acha que os 43 mil escravizados mauritanos referidos no Global Slavery Index 2016 estão muito aquém da realidade. Talvez um terço da população (pouco mais de quatro milhões) sofra ainda o impacto desse estigma.
4. A escravatura existe desde tempos imemoriais e nunca acabou. Algumas regiões de África praticavam-na antes de os navegadores portugueses terem chegado para a multiplicar e estimular, encorajando africanos a trazerem do interior cada vez mais “peças” humanas, de modo a alimentar o tráfico atlântico.
E a escravatura continuar a existir hoje, querer combatê-la, é mais uma razão — e não menos uma razão — para enfrentar de facto o que aconteceu há séculos, reconhecendo uma continuidade histórica de abuso e violência. No caso particular de Portugal, o que aconteceu entre os séculos XV e XIX. Se o império português foi a maior potência esclavagista do Atlântico durante vários séculos, essa memória tem de ser tributo e acção no presente. Não se trata de perder tempo com o tempo que já lá vai, quando o presente nos convoca para vidas em perigo. É também por essas vidas em perigo agora, essa desumanização brutal, que as crianças devem receber na escola uma imagem mais completa e justa do que aconteceu durante a expansão marítima portuguesa, terem acesso à escala: 5,8 milhões de pessoas escravizadas, tiradas de África, pelo império português. Tal como os políticos têm de integrar isto nos seus discursos de louvação à empreitada marítima. Tal como a cidade de Lisboa tem de reconhecer a existência destes milhões de pessoas junto aos monumentos glorificadores das navegações. Tudo isso junto é presente e futuro, é dignificação dos retirados da história, é tributo aos netos dos escravizados, é política aqui e agora, relevante para todos os que vivem juntos, de todas as cores e tons. Dará força a quem está vivo hoje, sobretudo aos que diariamente são alvo de indignidades, discriminação.
Que as crianças possam ter uma noção do horror da escravatura é a primeira base para combater o horror de hoje, bem além das notícias como o leilão da Líbia que em breve desaparecerão do “prime time”, e da comoção.
Líbia onde, aliás, a NATO interveio em 2011, para não falar da Somália ou dos tantos pedaços de caos espalhados por África, com mão das alianças do Norte.
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