Poucas religiões universais têm um líder supremo; que me lembre, só a Igreja Católica Apostólica Romana e o budismo tibetano.  Já a chamada Igreja Católica Ortodoxa tem 17 variantes, cada uma com o seu Primata - patriarca ou ou arcebispo. Há ainda outras subdivisões, algumas autónomas, outras dependentes das mais importantes.

O cisma ortodoxo aconteceu em 1054 e foi protagonizado pelo apóstolo Santo André em Kiev. Desde então o Primata de Constantinopla ficou oficialmente como o chefe da Igreja Ortodoxa Oriental, (que incluía Kiev e depois a futura Moscovo) mas não tem nem os poderes nem as funções do papa católico. A importância e influência dos 17 patriarcas varia conforme o país que dirigem e não tem a ver com a data da cisão; muito naturalmente, o mais importante é o Primata da Rússia, reconhecido pelos outros desde 1589. A Igreja Ortodoxa Ucraniana ganhou autonomia em 1990, mas ficou na dependência de Moscovo.

Isto, para compreender o básico da estrutura ortodoxa.

Agora, a História: como é sobejamente sabido, a tomada do poder pelo Partido Comunista da União Soviética, em 1923, decretou, entre outras coisas, o fim da religião, oficial ou particular. (Se quer os pormenores da Revolução de 1917 e subsequente domínio dos bolchevistas, veja aqui.

As igrejas foram destruídas ou fechadas e os padres assassinados. Entre 1922 e 1989 a Igreja Ortodoxa desapareceu e era praticada às escondidas por meia dúzia de crentes. Três gerações de russos foram educados dentro do “materialismo científico”, em que a religião era referida sumariamente como uma aberração burguesa - o “Ópio do Povo”, Marx dixit.

Surpreendentemente, a Igreja Ortodoxa renasceu da obscuridade em 1943 e, graças ao apoio declarado de Estaline, rapidamente subiu a um estatuto semelhante a religião oficial. Calcula-se que tenha cerca de 90 milhões de seguidores.

Em 2018 cortou relações com o Primado de Constantinopla e tornou-se, efetivamente, uma das armas de Putin para consolidar a sua influência junto da população. O chefe de Estado declarou-se oficialmente ortodoxo e o bispo Tikhon Shevkunov tornou-se seu confessor. O patriarca Kirill já disse que foi Deus que o escolheu para dirigir os destinos do país.

E passamos à atualidade. A igreja ucraniana dependia, muito naturalmente, da russa. A partir da ocupação da Crimeia e das guerras secessionistas nos donbas do leste, começaram as dissensões. A igreja russa chegou ao ponto de criar a Irmandade Ortodoxa, uma milícia mercenária ao estilo dos antigos Templários, que combate na Ucrânia e, quando morre, vai diretamente para o céu, garantia de Kirill 

Já era demais. A 20 de Agosto o parlamento ucraniano promulgou uma lei a proibir a Igreja Ortodoxa Russa - o que, aliás, não foi mais de que oficializar um diferendo já antigo, de antes da guerra, mas que se tornou imperioso. Zelensky (que é judeu e não professa nenhuma religião), criminalizou expressamente as actividades de ortodoxos que auxiliem de algum modo a causa russa.

O que deixou todos - católicos, ortodoxos e ateus - de boca aberta, foi a atitude do Papa Francisco. É verdade que, nos idos de 2016, ele e Kiril tinha assinado a chamada “Declaração de Havana” com trinta pontos largamente simbólicos que selavam uma não agressão entre as duas fés.

O que Francisco fez agora, sem ninguém lhe pedir, foi criticar - em termos diplomáticos, evidentemente - a decisão de Kiev de alinhar com a Igreja Ortodoxa Grega.

Pior ainda, o Papa sugeriu que a Ucrânia devia “ter a coragem de levantar a bandeira branca”. Não é a primeira vez que mostra as suas simpatias pela causa russa, mas nunca o tinha feito tão abertamente.

Os analistas consideram que este é o lado “sul-americano” de Sua Santidade, essencialmente anti-Estados Unidos. A questão, evidentemente, é que a invasão da Ucrânia pela Federação Russa não é da responsabilidade dos americanos, nem indiretamente. Vem do raciocínio, defendido por Moscovo, de que a presente guerra é resultado de uma provocação da NATO e de que quem manda na NATO são os Estados Unidos - duas premissas altamente discutíveis, considerando o histórico da situação.

Como afirma um artigo de opinião no jornal Guardian: “Olhando para o futuro, o papa assume que uma rendição ucraniana acabaria com a guerra, presumivelmente permitindo à Rússia manter o controle das cinco regiões que anexou ilegalmente, ou ainda talvez mais - Odessa, por exemplo. 

Provavelmente essa situação é inevitável, mas não cabe ao chefe da Igreja Católica dar opiniões sobre o assunto - como não lhe cabe comentar as disputas dentro das igrejas ortodoxas.

Não contente com este incentivo indireto oferecido aos russos - pedir a paz é aceitar cedências brutais aos ucraninanos - Francisco decidiu agora criticar os dois candidatos à presidência dos Estados Unidos por, Kamala por ser “pró-vida”, Donald por ser “anti-imigrantes”. Estas observações no momento eleitoral intenso que se vive no país são como deitar lenha na fogueira, para usar um lugar comum. Francisco acaba por aconselhar a votar no “menos mau” sem dar nenhuma indicação precisa em quem os católicos devem votar. Estes estão bastante divididos entre os “maus”, por princípios religiosos. 

Na nossa opinião, que não somos apoiantes de nenhum credo, as autoridades religiosas - sobretudo uma da importância do Papa católico - deveriam contrariar as dissensões que estão a fazer tremer o futuro e dar mensagens neutras e pacificadoras.

Estranhos, estes tempos em que vivemos.