A Europa deixou de conseguir há várias décadas converter os valores culturais de liberdade e fraternidade em influência mundial. Mas os EUA, essa América que Trump proclama grande, também está apanhada pela falta do básico para enfrentar uma pandemia.
O Ocidente exibe sofisticação, designadamente com hospitais privados dotados de alta tecnologia. Mas, do mesmo modo que este Ocidente rico descuida o combate à malária e outras epidemias que avançam pelos continentes pobres, também não se preparou para enfrentar uma pandemia. As cabeças que decidem o que é prioridade no sistema de países ricos não previram que males como os que galopam por África também poderiam avançar pela Europa e pela América do Norte. E essa falta de visão tem-se revelado pela penúria no que deveria ser a reserva estratégica de máscaras e outros equipamentos de proteção e escassez de testes de despistagem porque a indústria farmacêutica tem sido orientada para outros alvos.
O diretor-geral da OMS bem foi avisando, oportunamente. Mas a voz de organizações multilaterais tem pesado pouco ou nada sobre o governo das potências.
Nos EUA, Trump até começou por negar a gravidade do vírus. Quando percebeu que a pandemia é de tal modo uma catástrofe global que pode pôr em causa a reeleição, em novembro, a que aspira, despertou e tratou de entrar em show de combate ao covid-19. Optou, como costuma fazer, pela via nacionalista. Começou por fechar fronteiras com a União Europeia, mas com via livre para o Reino Unido do parceiro Boris Johnson. Não tardou a ter de fechar portas aos britânicos ao constatar que o vírus estava a propagar-se pelas terras de Sua Majestade.
Mas, sempre, tudo com muito escassa cooperação e ausência de liderança global contra o inimigo comum.
A Itália está agora a ser socorrida por equipas médicas da China, de Cuba e da Rússia. Se o apoio tivesse chegado logo que foi detetada a progressão do vírus, certamente teria sido possível travar a dimensão atual da calamidade.
A Europa, em cooperação com a América do Norte, foi valente no tempo da Guerra Fria e no apoio ao desenvolvimento democrático do continente a seguir a 1989.
Depois, os sistemas da economia, da finança e de algumas indústrias, designadamente a do armamento, tomaram o comando, mais ou menos remoto, dos governos dos diferentes países. Nem a cultura escapou, ficou submetida à indústria do divertimento. Alguns governantes foram voluntaristas e tentaram mudar alguma coisa. Mas o sistema instalado parecia demasiado poderoso.
Andávamos a ser alertados para a ameaça de uma calamidade resultante das alterações climáticas, proclamadas como emergência. Mas muitos interesses do dinheiro (há uma lista, até extensa, de honrosas exceções) insistem na negação. Trump, imitado por Bolsonaro, é porta-voz dessa recusa de ação pelo clima.
Afinal, a calamidade, que é global, veio de um vírus, invisível mas terrível. Esta pandemia, apesar de discursos, alguns genuínos, de grande solidariedade, já está a mostrar por toda a parte muita insegurança e falta de proteção no trabalho, pouca sustentabilidade em muitas empresas e fragilidade nos sistemas de proteção social.
Nestes dias de pandemia as bolsas dos mercados financeiros que marcam o fôlego já destruíram 30% do valor que tinham. Muitos fundos privados de pensões estão pendurados nesses investimentos. Vem aí, inevitável, outra tremenda crise financeira, económica e social, com mega-recessão global.
É a oportunidade que a pandemia oferece de, a partir do contra-ataque aos efeitos do vírus, não só sobre a saúde, também sobre a economia, dar oportunidade ao desenho de um mundo diferente, melhor.
Há um bom primeiro sinal. A Comissão Europeia, presidida por Ursula von der Leyen, alemã muito alinhada com outra mulher que se revelou estadista, Angela Merkel, já teve a coragem de lançar uma bazuca sobre um antigo tabu do Pacto de Estabilidade europeu: a regra do défice abaixo dos 3%. Esta medida sem precedentes deve ficar validada nesta semana pelo Parlamento Europeu.
Ao mesmo tempo avança a discussão sobre a possibilidade de mutualização da dívida dos Estados europeus, como forma de superar esta crise. A Europa do Norte vai mesmo conceder ao conjunto europeu, designadamente a Europa do Sul, a solução “Euro Bonds” que antes recusou com intransigência?
A crise, que toca a todos, pode fazer abater as velhas fronteiras Norte/Sul e Leste/Oeste.
A Europa, uma dúzia de anos depois de uma crise financeira importada dos Estados Unidos, está confrontada com o desastre provocado por uma calamidade sanitária que viajou da China.
É uma oportunidade extraordinária para a União Europeia, que se deixou apanhar desprevenida no combate sanitário ao coronavírus, ser capaz de se levantar e ressurgir na luta contra os efeitos económicos deste covid-19.
É uma oportunidade para os governos começarem a ser escutados e compreendidos. Para que promovam a prioridade aos valores essenciais para as pessoas, o bem da saúde, do ambiente, da solidariedade, do cuidado, do trabalho, da justiça. Em suma: com a retoma do compromisso ético de um contrato social entre os seres humanos.
A lição de realidade trazida pelo vírus pode ser uma oportunidade.
A TER EM CONTA:
Vivemos dias estranhos, extraordinários, neste “fico em casa” virtuoso para a vida. Concertos e festivais estão adiados ou anulados, os museus e os bares estão fechados. Mas uma simples ligação pela internet pode oferecer-nos sedutoras escapadelas gratuitas. Junta-se aqui algumas possibilidades às tantas que já têm sido partilhadas:
- MÚSICAS: O NYT propõe-nos 25 músicas para agora. Ou esta playlist Quarantine Party, aberta no Spotify.
- ARTES: O Google Arts Project leva-nos à contemplação das pinturas no Kunsthaus de Zurique ou do Belvédère de Viena. Irresistível, a visita imersiva a 360º ao MET, em Nova Iorque.
- EVASÕES – As webcams que nos levam a viajar pelo mundo.
- JORNAIS E REVISTAS – este, esta, esta, este, este, este, este e este.
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