Na História da Arte portuguesa vacila-se muitas vezes em classificar o mestre Grão Vasco como um pintor do Renascimento. Já o Filipe Melo – homem da música, do cinema, da televisão, da banda desenhada ou do hacking informático – é tão claramente renascentista que ninguém vacila. Há meia dúzia de anos, o Filipe convidou-me para participar num pequeno clip publicitário da Festa do Cinema Italiano. Nesse filme, inspirado pelos poliziotteschi (policiais transalpinos do final dos anos 60, início de 70), só tive que envergar o meu ar naturalmente antiquado, e isto enquanto me filmavam a conduzir um carro da época. Como qualquer animal raro e caprichoso, o automóvel trazia o seu tratador - era o proprietário, que conhecia todas as manhas do velhinho mas bem conservado carro. Deu-me as dicas necessárias para a condução, mas deu-me, acima de tudo, arrepios.

Sem saber explicar porquê, senti que podia confiar a vida àquele desconhecido que me instruía sobre uma caixa de velocidades. Homem com os seus 60 anos, olhos claros, carro verde, e eu surpreso pelo impulso de enternecimento que ele me despertava. Não foi só familiaridade, fui também invadido pelo que parecia o contentamento dum reencontro, ou o regresso reconfortante à presença dum gigante benevolente. Estupidificado pelo pasmo, só entendi o meu estado quando o Filipe (renascentista e atento) se virou para o senhor e exclamou “Você é a cara chapada do Henry Fonda!”. E era. Caramba, se era. Estava mais calvo que o norte-americano àquela idade, mas o rosto, e a maneira como aquele rosto se deixava habitar de expressões, gritavam Fonda. Não era ele mas eu, afinal, quem encarnava: dei corpo a todas as grandes emoções que o actor me havia despertado ao longo dos anos. As melhores emoções para o maior dos actores.

Não peço desculpa pelo alongar da introdução. Aprendi com o João Bénard da Costa que as homenagens sentidas não se apressam. Aprendi ainda com o Bénard que as homenagens, se sentidas, nem sempre têm sentido: têm sensações e sentimentos. Ainda pelo Bénard, e com o seu amor pelo cinema, aprendi que as homenagens sentidas têm que ter histórias da nossa vida, preferencialmente uma vida mudada por intermédio do homenageado. E, de facto, a minha vida mudou com o Henry Fonda. Mudou para melhor; tanto que ainda hoje reajo a quem com ele só se parece. Reajo para melhor.

Amanhã completar-se-ão 35 anos desde o último suspiro de Henry Jaynes Fonda. O número não é redondo o suficiente para que se assinale, mas eu sou obtuso o suficiente para que se force a homenagem. Se isto é suposto ser um artigo de opinião, então aqui vai ela: Fonda foi o maior actor de cinema de sempre. Ainda é. O meu avanço pode ser discutível, mas interessa-me pouco justificá-lo, e ainda menos abrir espaço ao contraditório. Consumada a opinião, o terreno agora vai lavrar-se para a homenagem. Vou tentar mostrá-la sentida, de forma a motivar-vos (o punhado dos que chegam ao fim dos meus textos) a visitar ou revisitar a carreira do actor. Aumentará depois o número dos que assinalam, não os 36 anos sem Henry Fonda, mas os 54 anos duma carreira que confirma a minha opinião: foi o maior de sempre.

Mudo o interlocutor e arrojo-me a fazer algo em que descreio. Dirijo-me a ti, Henry, não por achar que a mensagem vai chegar, mas porque quero que seja pública a afeição que te declaro em carta aberta. Falo com mortos, mesmo sem nisso acreditar, porque também já to vi fazer em filme. Nunca houve céu mais bonito no cinema do que aquele que encimou a tua conversa com a campa do teu irmão no “My Darling Clementine”. Não houve olhos mais tristes, nem levantar mais penoso, nem melhor actor a carregar um pêsame esperançoso. “My Darling Clementine” foi aquele filme em que arriscaste ficar ofuscado pelo teu colega Victor Mature. Ao Victor (proto-Stallone, habituado a papéis durões) puseram a recitar Shakespeare num saloon, dando a esse actor (célebre por ter sido Sansão de torso despido) a sua única cena de nudez – ainda que no momento trajasse um impecável smoking texano. Mas tu não lhe ficaste atrás, porque eras incapaz de não ser o maior, incapaz de não cativar com a tua discrição, de não comover com a subtileza do teu génio. Forte como o Sansão, sublime como Shakespeare.

Nesse filme foste o Wyatt Earp mais acoroçoado da História, e nem te contiveste a piscar o olho ao espectador, e quebrar a chamada 4th wall, quando te sentaste e levantaste as pernas, tal como tinhas feito numa outra obra-prima do John Ford, o “Young Mr Lincoln”. Aí, filmado em contra-picado para pareceres ainda mais alto, e com um nariz prostético para te assemelhares ao icónico Lincoln, fizeste das sombras do rosto e das tuas costas uma escola. Culminaste o filme com a mais vitoriosa caminhada derrotista. Ias, vicário, rumo a uma tempestade. Ias mudo, resignado à tua via àpia da guerra civil e dum atentado cobarde. Ias como um cordeiro para o matadouro. Foste o mais ficcionado dos Lincoln, e ainda assim o mais real; a estátua, a pessoa e o mito - porque só tu poderias fazer-me acreditar temporariamente em reencarnações.

Acabaste o “Young Mr Lincoln” como uma figura crística, e acabaste o “12 Angry Man” como uma figura angelical: vestido de branco, próximo da câmara, elevado e recompensado pelo próprio sorriso, com o dever de salvar vidas cumprido. Distante da câmara, de negro, vergado e embaraçado pelo desespero vai Lee J. Cobb, o homem sem alma a quem tu vetaste a vingança. Talvez a tua acção ainda venha a desenterrá-lo da amargura; queremos acreditar, e podemos – o teu olhar é convincente para a plateia, porque é redentor na tela.

Olhar de olhos claros, os melhores de sempre. Olhos invariavelmente doces que se transmutaram para a frieza do dever tirânico no “Fort Apache”, os mais livres de todos os olhos regrados. Olhos, que pela invariável doçura, sublinharam crueldade e sadismo quando o Sergio Leone quis fazer de ti um grande vilão, e tu lhe respondeste com o melhor de sempre. Olhos doces em água doce quando (voltando ao “Young Mr Lincoln”) conseguiram mudar o curso dum rio ao encherem-se de luto. Olhos que, doces, valem por mil movimentos bruscos de câmara; quando os emprestaste ao “The Wrong Man” ensinaste o imparável Hitchcock a parar-se neles.

Podia estar aqui a discorrer horas sobre os teus filmes, mas não foste o maior de sempre pelo que eu te digo, mas pelo que nos disseste tu. A tua voz é um tesouro que a morte não corrompeu. A tua presença é o culminar de uma linhagem dourada de colossos, actores que proporcionavam prazer só pela comparência; tinham a benevolência de aparecerem. Graças a ti, mesmo eu que sou um bruto, aprendi a comprazer-me com coisas elevadas como o talento. Que honra. Que inestimável legado. Por isso é que vou continuar a arrepiar-me automaticamente contigo, mesmo quando estiveres a ensinar-me a conduzir um carro antigo e tu não fores mesmo tu.

Sítios certos, lugares certos e o resto

O bom

O mau

O vilão