Desde a sua independência, em 1956, o Sudão nunca esteve em paz. Antes era uma colónia britânica, vassalo egipcío, e o maior estado da África. Em 2011 o Sudão do Sul separou-se, numa guerra religiosa violenta entre a maioria islâmica e as minorias animistas e cristãs. Aquando da independência seria uma república parlamentar, mas deu-se o primeiro golpe autoritário, feito por um tal coronel Gaafar Nimeiry, derrubado temporariamente em 1971 pelo Partido Comunista e reinstalado logo a seguir. Tudo isto com muito sangue suor e lágrimas, evidentemente.

Em 1989 foi a vez do coronel Omar al-Bashir, responsável pela morte de cerca de 400.000 pessoas, torturas, perseguição de minorias, patrocínio global do terrorismo e limpeza étnica no Darfur. Embora se tenha tornado oficialmente um estado secular em 2020, as diferenças religiosas e tribais mantiveram um estado de guerra permanente.

Assim sendo, não surpreende que o Sudão seja o país menos desenvolvido da África e esteja em 172º lugar no ìndice de de Desenvolvimento Humano. A economia é predominantemente agrícola e 60% do solo é árido.

Forças Armadas Vs Grupo Paralimitar= Guerra Civil

Bashir era apoiado pelas Forças Armada Sudanesas, SAF e pelo grupo paramilitar Forças de Apoio Rápido, RSF. Em 2019 juntaram-se para o depor, partilharam o poder durante alguns meses e zangaram-se logo a seguir, começando uma guerra civil que dura até hoje. Neste momento as RSF dominam a capital e as SAF controlam as terras agrícolas do Leste e o terminal petrolífero no Mar Vermelho. Muitas cidades estão sitiadas.

Por exemplo, em el-Fasher, no norte de Darfur, quem manda são as forças armadas, mas rebeldes de vários grupos controlam os arredores. Ir de uma cidade para outra implica passar por várias barreiras controladas por grupos distintos. A população de el-Fasher tem sido perseguida por motivos étnicos, num dos muitos genocídios que grassam noutras regiões.

É impossível calcular os mortos. Pelo menos 17.000 civis terão morrido desde Abril do ano passado, mas os números reais têm de ser mais altos. Só em el-Geneina, uma cidade do Darfur Ocidental, a limpeza étnica causou 10.000 mortos.

O pior espera os vivos; grandes áreas do país estão em situação de “emergência alimentar”, o que leva a esperar mais de dois milhões de mortos em Setembro. A violência obrigou outros milhões a fugir de casa. Um oitavo das pessoas deslocadas internamente (ou seja, dentro dos seus países) acontece no Sudão - são nove milhões, no total. Metade têm menos de 18 anos, um quarto menos de cinco. Mais de metade dos deslocamentos ocorreu nos últimos 12 meses. No vizinho Chade há mais um milhão e imigrantes forçados.

A catástrofe ultrapassa as fronteiras do país. É lá que nasce o Nilo, a coluna vertebral do Egipto. Também tem portos no Mar Vermelho, por onde passa cerca de 10% do comércio marítimo mundial. Os Emirados Árabes Unidos e a Arábia Saudita estão preocupados com os efeitos no seu comércio.

A situação militar permanece indefinida. Há vinte anos, a força mais poderosa, os Janjaweed, dirigidos por Musa Hilal, especializavam-se numa política de terra queimada e violações sistemáticas. Mas os Janjaweed desapareceram quando Hilal foi derrotado por Mahamed Hamdan Dagolo, conhecido como Hemeti, numa luta pela mina de ouro mais lucrativa do país. Agora o grupo chama-se RSF e parece que está a ganhar a guerra. Não se espera que Hemeti, dono de um conglomerado de empresas, queira ser presidente. O mais provável é que nomeie um testa de ferro para dar cobertura legal aos seus negócios.

O RSF é particularmente violento, não apenas massacrando as populações mas também destruindo infraestrutura, como hospitais e escolas.

ONU reconhece SAF, UAE reconhece RSF

Agora as reações e implicações internacionais. Como dissemos, as SAF, lideradas pelo General Abdel Fattah al-Burhan, controla o Porto Sudão que acede ao Mar Vermelho. Em Setembro do ano passado as Nações Unidas decidiram reconhecer o seu Governo, enquando as RSF são reconhecidas pela Organização dos Estados Africanos, UAE.

O reconhecimento da ONU implica que a ajuda humanitária tem de passar pela aprovação das SAF, tanto por terra (num aeroporto no Chade) como por mar. Esta ajuda é crucial para tirar da fome extrema os tais oito milhões de almas (numa população de 48 milhões); por um lado al-Burham usa a posição de líder aceite internacionalmente para chantagear a ajuda, por outro não controla as áreas necessárias para fazer essa ajuda chegar aos sítios certos.

O país que realmente apoia as RSF são os Emirados Árabes Unidos, que têm tanto fomentado a violência de Hemeti como dão apoio logístico à milícia, inclusive trantando os feridos nos seus hospitais. Os UAE tem tentado controlar esta ajuda, que inclui contrabando de material de guerra, incluído drones e mísseis anti-aéreos, que também vem pelo Chade, em contravenção contra o embargo de arnas decretado pela Nações Unidas.

As armas passam (para ambos os lados do conflito) mas os comboios da ONU não conseguem passar.

Os Emirados nos bastidores

Os Emirados consideram que se as RSF conquistarem o poder no Sudão pode ajudar os seus interesses económicos e políticos na região, que incluiem o controle dos portos e das terras agrícolas e diminuição de influênciada Irmandade Muçulmana, o inimigo eterno de Abu Dhabi (a capital dos Emirados). Além disso, querem recrutar os sudaneses para lutar na Líbia pelo seu aliado, o General Khalifa Haftar, que tem ligações estreitas ao Grupo Wagner. Várias fontes afirmam que os Emirados estão a co-financiar as Wagner, a troco destas forneceram armas ao RSF. Abu Dhabi recebe ouro ilegal de todo o continente africano, incluindo do Sudão - tal como as Wagner.

Os esforços internacionais para travar os Emirados são difíceis. Abu Dhabi investe fortemente em universidades norte-americanas, em clubes de futebol ingleses e numa série de instituições nestes dois países, criando um lobby informal para que as suas actividades mais sinistras não sejam sancionadas.

Seria difícil, senão impossível, estabelecer as relações entre interesses conflitantes na região, que refletem os interesses conflitantes no resto do mundo. Russos, americanos, franceses, emirados, todos se confrontam e se juntam para tornar o Sudão mais uma daquelas crises sem fim à vista.

Enquanto isso, quem sofre e morre são milhões de sudaneses que nem têm ideia dos interesses que estão por trás do seu destino.

Onde é que já vimos isto?