Tínhamos tudo arrumado e, gostando-se ou não das políticas e dos políticos, nunca ninguém protestou contra essa arrumação.
Sabíamos que ao governo chegariam invariavelmente três partidos, PSD, PS e CDS, de forma mais ou menos alternada e mais ou menos coligada. Que os partidos da extrema-esquerda se auto-excluiam sistematicamente de qualquer solução de governo. Que o governo cabia ao partido mais votado. Que as maiorias relativas podiam governar com a anuência dos que estivessem na oposição. Que o derrube de um governo levaria a novas eleições. Que os dois partidos do bloco central garantiam a manutenção da arquitectura institucional do país, matérias onde sempre se entenderam. Que o espectro político português era pintado num “dégradé” quase perfeito da direita à esquerda, não permitindo sequer perceber muito bem onde acabava uma e começa a outra. Que a fronteira entre a economia social de mercado e a economia estatal e intervencionada estava algures entre o PS e os partidos à sua esquerda.
Os eleitores sabiam em quem votavam, por que votavam e, contados os votos, conseguiam antecipar sem surpresas quais seriam as consequências na formação e longevidade dos governos.
Tudo isto que sabíamos tornou-se agora inútil. A Constituição não mudou mas a prática política sim. Tudo conforme as regras constitucionais - isso ninguém põe em causa - mas com um impacto no funcionamento do sistema político que é hoje imprevisível.
O jogou mudou pela conjugação de dois factores essenciais: o maior perdedor das eleições aspirou ser ele a formar governo para salvar a própria pele e a inédita disponibilidade dos partidos da extrema esquerda para, pela primeira vez depois do PREC, apoiarem um governo. A uni-los está a oposição feroz que fazem à direita, a esta direita. A separá-los está quase tudo o resto.
É certo que António Costa falhou o golpe que seria inadmissível: ser indigitado primeiro-ministro sem que, antes disso, a candidatura vencedora o fizesse e fosse submetida ao juízo parlamentar.
Apesar desse cumprimento da boa prática democrática que sempre seguimos o que se passou até aqui é já suficientemente sério para deixar marcas duradouras.
Temos agora o país político entrincheirado nas posições ideológicas mais extremadas desde, pelo menos, o embate entre Mário Soares e Freitas do Amaral nas presidenciais de 1986. A direita virou à direita e a esquerda encostou à esquerda. O tom dos discursos e das intervenções públicas deixou de ser de normal confronto e oposição de ideias e propostas e resvalou para a falta de respeito pessoal e institucional entre vários actores. A tolerância ideológica cumpre apenas serviços mínimos próprios da democracia, como os discursos de Cavaco Silva e de Ferro Rodrigues evidenciam, para dar apenas dois exemplos.
Para já, isto é apenas ainda uma coisa “lá deles”, dos políticos. Mas rapidamente alastrará. As redes sociais são, hoje, palco de declarações políticas tão tolerantes e intelectualmente honestas quanto os juízos de um jogo de futebol feitos por um daqueles chefe de claque.
Independentemente do desfecho governativo que venha a ocorrer nas próximas semanas, as feridas abertas vão durar. As acusações vão acentuar-se.
Se as esquerdas virerem a ser governo, a direita não vai calar-se e não vai perder uma oportunidade para recordar a Costa a forma como chegou ao poder: pela janela, naquela nesga de tempo em que um Presidente da República não pode dissolver o Parlamento e convocar eleições.
Se um entendimento das esquerdas não for aceite por Belém, estas acusarão Cavaco de não respeitar a vontade do eleitorado, que resultou numa maioria de esquerda.
No curto prazo, só um cenário poderá baixar esta tensão: se o PS não conseguir, assumidamente, entender-se com o PCP e o BE, desistindo de ser governo e permitindo a continuação do governo do PSD/CDS.
A médio prazo, só a realização de eleições pode “zerar contadores”, se delas sair um resultado inequívoco ou se contribuirem para a saída de cena de líderes partidários que nunca se vão entender.
Até lá, vamos ter um clima político de cortar à faca e um ambiente pesado no país. A ilusão de varinhas mágicas que aliviem a austeridade tem um prazo de validade mais curto do que aquele que hoje todos apontam ao governo que Passos Coelho apresentou esta terça-feira.
Os programas de governo aguentam tudo aquilo que os políticos lá queiram escrever mas as folhas de excel não permitem enganos. Os tempos vão continuar a ser economicamente duros, propícios a maus humores.
Outras leituras
Uma excelente iniciativa do Museu Nacional de Arte Antiga, esta de lançar uma campanha pública de angariação de fundos para comprar uma peça. Lá fora já se faz há anos, envolvendo populações e empresas. Por cá, os agentes culturais estão mais habituados a viver das contribuições forçadas que todos deixamos nos balcões do fisco. O início de uma mudança saudável?
É um dos temas destes dias. A Organização Mundial de Saúde alertou para os perigos das carnes processadas e vermelhas. Mostrando que a realidade nem sempre é preta ou branca, temos os industriais do sector confiantes, os produtores assustados e uma terceira via fora da caixa… e da queixa: devemos deixar os impostos sobre a carne em paz e comer mais legumes.
Comentários