Um rio de leite
É difícil vê-la na cidade, afogados como estamos em luzes. Mas, na escuridão dos caminhos e descampados, ainda encontramos o Rio de Prata, como lhe chamam os chineses, ou a Saia das Estrelas, na boca dos astecas, ou o Caminho dos Pássaros, à finlandesa — ou, cá bem mais perto, o Caminho de Santiago, como diziam os peregrinos para quem essa mancha servia de orientação nocturna. Já os gregos e os romanos olhavam para o céu e viam leite derramado no céu — ali estava a Galáxia ou a Via Láctea. Mal sabiam eles que os segredos do início de tudo se escondiam nessa mancha. Já lá vamos.
A olho nu, não conseguimos perceber de que é feita aquela mancha de luz. Mas, com lentes cada vez mais poderosas, lá acabámos por compreender que a Via Láctea é a luz de tantas estrelas tão distantes que não as distinguimos.
Com o tempo, houve quem estudasse a forma dessa nuvem de estrelas e — numa reviravolta surpreendente — acabámos por concluir que nós fazemos parte da Via Láctea! Nem a Terra nem o Sol são o centro do Universo: todo o Sistema Solar anda à volta da Galáxia. Quando olhamos para a Via Láctea, olhamos para o centro da galáxia.
Julgámos ter encontrado a forma do Universo: um coração denso de estrelas, com braços de estrelas à volta (num deles estamos nós), tudo a rodar. Mas as surpresas não tinham acabado...
Uma nódoa na Constelação de Andrómeda
Os telescópios permitiam ver, no meio da nossa galáxia, uns quantos objectos distantes que não eram estrelas nem se percebia bem o que fossem. Foi um francês, chamado Charles Messier, que catalogou esses intrigantes objectos. Chamou-lhes nebulosas.
Uma dessas nebulosas era, aliás, conhecida de astrónomos antigos, porque conseguimos vê-la a olho nu — está na Constelação de Andrómeda e foi catalogada com o número M31. Mal sabia Messier que aquela mancha — a Nebulosa de Andrómeda — viria a dar origem a uma das grandes surpresas da história da astronomia.
Havia quem já suspeitasse. Immanuel Kant lançou a ideia de que aquelas manchas no céu poderiam ser outras galáxias... A ideia era tão estranha, à época, como dizer-se hoje que existem outros universos — há quem proponha isso mesmo, mas, agora como então, estamos perante pura especulação.
A descoberta das galáxias
Nos anos 20 do século XX (ainda nem passaram 100 anos...), Edwin Hubble conseguiu por fim medir a distância que nos separa da tal Nebulosa de Andrómeda. Estaria a uns 900 000 anos-luz de distância. Em suma: é mesmo muito longe — extraordinariamente mais longe que o próprio centro da Galáxia. Na verdade, Hubble até se enganou: Andrómeda está a mais de 2 500 000 anos-luz. Quando olhamos para aquela mancha, não estamos a ver uma nebulosa dentro da nossa galáxia: estamos a olhar para outra galáxia.
A partir daí, com os telescópios a melhorar a cada dia que passava (o mais famoso ficou mesmo com o nome de Hubble), percebemos que as galáxias são milhões e milhões e mais milhões... Andrómeda e a Via Láctea (que deixou de ser sinónimo de galáxia e passou a ser o nome próprio da nossa galáxia) são apenas duas entre muitas.
O Universo parece ser feito de fiapos de galáxias e estas são feitas de estrelas, de planetas e de outros materiais — incluindo a famosa matéria negra, que constitui a maior parte do Universo, mas ninguém sabe o que seja. Esse segredo fica para uma crónica futura — para já, temos ainda duas reviravoltas a revelar na história da Via Láctea e companhia.
Viagem ao passado
Ao olhar para as galáxias usando telescópios cada vez mais potentes, os astrónomos perceberam que todas tinham uma luminosidade a descair para o vermelho. Porquê? Porque estão a afastar-se de nós em todas as direcções — tal como uma ambulância fica com o som mais grave ao afastar-se, um objecto gigantesco fica com uma luz avermelhada, que só se detecta com equipamentos avançados.
Se as galáxias se afastam, quer dizer que já estiveram mais próximas. Fazendo contas — e que contas! — os astrónomos perceberam que, há 13 800 milhões de anos, as galáxias estavam todas no mesmo sítio. Foi nesse momento que tudo começou (e ainda não acabou). Surgiu a teoria do Big Bang, que explicava a história do Universo (com excepção do exacto momento inicial, que continua a escapar a todas as contas). Nos anos 60, descobriu-se a radiação de fundo deixada pela expansão dos primeiros anos, uma radiação que as contas de quem desenvolveu a teoria do Big Bang já previam. O Big Bang tornou-se a explicação científica mais rigorosa para explicar a história do Universo — não explica tudo, mas bate certo com os dados que temos.
Há, claro, ainda muito por saber. Por exemplo: de que é feita a tal matéria negra que as contas prevêem, mas não se vê? Sem ela, muitas das galáxias que vemos não podiam existir, pois a gravidade das estrelas não chega para mantê-las unidas. Os astrónomos ainda têm trabalho para muitos e bons anos.
Um estranho tom de azul
Agora, a última reviravolta. A Galáxia de Andrómeda, a galáxia que foi a chave para descobrir todas as outras e perceber que a nossa galáxia não está sozinha, não apresenta o tal desvio para o vermelho. Não está a afastar-se. A sua luz tem, aliás, um ligeiro desvio para o azul. Está a aproximar-se, tal como acontece com um punhado de galáxias próximas.
Ou seja: daqui a uns bons milhões de anos (muitos milhões!), a Via Láctea e Andrómeda — que tem aproximadamente 12 000 000 000 000 de estrelas — vão chocar, transformando-se numa só galáxia. Nenhum de nós estará cá para ver, mas, quando acontecer, será como se derramassem ainda mais leite pelos nossos céus. Pelo menos, não será surpresa. Aquela mancha na constelação de Andrómeda ficará cada vez maior.
Fica a sugestão: se está numa cidade, num destes dias, pegue em si e percorra uns bons quilómetros até à escuridão do campo. Olhe para a Via Láctea e, com ajuda de alguma das aplicações que enxameiam os telemóveis, procure também a Galáxia de Andrómeda.
A luz que irá entrar nos seus olhos saiu de Andrómeda há 2,5 milhões de anos, quando os humanos que então existiam olhavam para a noite estrelada e coçavam a cabeça. Teriam já, digo eu, os relampejos de curiosidade que nos levaram a inventar telescópios e a fazer contas e mais contas para perceber, afinal, que manchas no céu eram aquelas. Essa curiosidade já nos deu umas quantas surpresas — nem imagino as que estão por vir...
Marco Neves | Professor e tradutor. Escreve sobre línguas e outras viagens na página Certas Palavras. O seu livro mais recente é História do Português desde o Big Bang.
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