Lembra-se das dezenas de opções de género que o Facebook pôs à disposição de utilizadores de vários países a partir de 2014? “Transgénero”, “cisgénero”, “fluído”, “intersexual”, “assexual”, “não-binário”... Já são comuns em alguns círculos, não apenas numa rede social da Internet, e aparentemente servem para que cada um se defina e mostre e entenda como pessoa. Mas não é assim tão simples.
“Transgénero”, por exemplo, tem sido utilizado para descrever diversas identidades, incluindo transexuais que desejam submeter-se a cirurgias e tratamentos hormonais e os que o não desejam, mas é uma palavra originária de dois centros de poder, medicina e psicologia, segundo Jack Halberstam, professor de inglês e de estudos de género na Universidade de Colúmbia, em Nova Iorque. Ao ser aplicada por académicos e grupos de militância identitária, “transgénero” veio legitimar a supremacia do discurso científico, através do qual os respectivos especialistas juram apenas descrever a realidade e nunca intervir sobre ela.
Halberstam reflecte sobre estes temas num livro essencial com data do ano passado, “Trans*: A Quick and Quirky Account of Gender Variability”. A atenção ao que escreveu talvez aumente na medida em que recua um certo alarido “trans-mediático” com início em 2011 e óbvio esmorecimento em fins de 2017, quando as atenções passaram para o movimento feminista Me Too.
O autor está de visita a Lisboa nesta quinta-feira, 18, para uma palestra no âmbito da conferência “Queering Friendship”, organizada pela investigadora Ana Cristina Santos na Fundação Portuguesa das Comunicações. De origem checa, nascido no Reino Unido em 1961, e há muito estabelecido nos EUA, Halberstam é uma voz luminosa das Teorias Queer e tem seguidores em meios académicos portugueses, razão por que já cá esteve em 2015, na Culturgest, com a conferência “No Church in the Wild: A Estética da Anarquia”.
O livro de que estamos a falar tem essa marca de originalidade. Com chancela da University of California Press, em prosa de raiz académica – prefácio, sete capítulos, notas e bibliografia em 165 páginas –, revela-se fundamental para compreendermos as questões identitárias, muito para lá da simplificação militante que contamina o discurso jornalístico.
O filósofo Michel Foucault é uma referência no pensamento de Halberstam e aparece na bibliografia com a “História da Sexualidade 1: A Vontade de Saber”, de 1976. A partir dele, Halberstam questiona a época de presumível diversidade que se vive no Ocidente, uma “produção artificial de multiplicidade”, diz, exemplificada nas opções de género do Facebook. Porque “ter um nome que nos designe pode ser tão prejudicial quanto não ter nenhum”, lança o autor.
É verdade que a recente multiplicação de palavras para nomear identidades tem muitas vezes origem nos próprios nomeados, nasce do sentimento de si, está fora da medicina e dos sistemas de classificação científica que herdámos do século XIX, tantas vezes usados para justificar separatismos étnicos, hierarquias de normalidade, projectos políticos supremacistas ou práticas massivas de mutilação e aniquilação em hospitais (lobotomias e choques eléctricos em homossexuais, como está bem documentado).
E, no entanto, este novo vernáculo não-normativo continua a produzir os mesmo efeitos da linguagem que teria ficado para trás: a hierarquização, a separação e a hegemonia das categorias “sexo” e “género”.
Sugere Halberstam: não basta que um jovem de 18 anos considere ter fluidez de género para deixar de ver um mundo dividido entre géneros ou de actuar como se eles não existissem. Daí o salto do autor para questionar os pais que defendem uma mudança de género dos filhos que em tenra idade manifestam essa vontade: não estarão a forçar as crianças a um papel rígido e normativo, mesmo se a mudança de género é na aparência um acto de autodeterminação?
Acrescentamos: da mesma forma, a lei sobre “autodeterminação da identidade de género”, publicada a 7 de Agosto em “Diário da República”, sendo um avanço, insiste num sistema de classificação. Que já estivéssemos a pensar eliminar esse sistema em documentos de identificação, ou outros, ilustraria realmente uma mudança. Não seria a extinção do sexo biológico macho ou fêmea, nem do quadro psíquico masculino e feminino, antes o fim das categorias sociais “homem” e “mulher”. Será que este debate importa?
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