E eis que, quando julgávamos que os Óscares estavam condenados à irrelevância mediática na qualidade de desgastado sarau celebratório de falsas virtudes, um tabefe mudou tudo. De forma surpreendente, até porque estamos a falar de uma festa em que a atribuição de prémios cinematográficos tem vindo a decorrer em simultâneo com um campeonato de pureza moral, o tabefe não foi transversal e veementemente condenado. Pelo contrário, há mesmo quem patrocine uma espécie de “legítima defesa face a ‘agressão’ por piada”.
É o caso de Filipa Maló Franco, que, num texto publicado neste mesmo jornal, optou por comparar a “violência” da piada de Chris Rock à efetiva agressão de Will Smith. Nas últimas horas, tem sido popular o argumento, o mesmo que o título da crónica de Maló Franco encerra, de que “a violência física não é mais grave do que a violência psicológica”. Ora, a julgar pela moldura penal de ambos os crimes, não me parece ser isso que o Código Penal indica - parece-me antes uma forma de se dormir bem quando se está abertamente a desvalorizar uma agressão, colocando no mesmo plano aquele que agride uma pessoa e aquele que está a desempenhar o seu trabalho. É um argumento que não só desvaloriza a violência física, como menoriza os reais casos de violência psicológica, como aqueles em que mulheres bem menos protegidas do que Jada Smith são coagidas e ameaçadas por parceiros ainda mais tóxicos do que Will Smith.
É verdadeiramente fascinante que este caso tenha invertido as prioridades morais de Hollywood. Nos últimos anos, o pedido de desculpas tem-se tornado numa instituição do showbiz americano. Normalmente veiculada através de uma captura de ecrã da aplicação “Notas”, a demonstração de arrependimento penitente e prenhe de autoflagelação vinha sendo o mínimo exigível a qualquer figura pública que visse o seu comportamento questionado na praça pública. Por exemplo, Kevin Hart ia apresentar os Óscares de 2018 mas, após o ressurgimento de piadas com 10 anos que alguns consideraram ofensivas, não só desistiu de apresentar a cerimónia como pediu desculpa diversas vezes, até sob a forma de um documentário com seis episódios. Não foi isso que foi exigido a Will Smith, que não só não fez piadas (agrediu), como não o fez há décadas (foi domingo).
O pedido de desculpas de Will Smith é capaz de ter sido o pior pedido de desculpas desde que Hollywood se especializou em exigir pedidos de desculpas. Will Smith, que na noite de domingo viria a receber um Óscar de Melhor Ator em vez de um Termo de Identidade e Residência, fez aquilo que aqueles que agora desvalorizam uma agressão não hesitariam em chamar gaslighting. “O amor faz-nos fazer coisas loucas”, desabafou o cavalheiro. Deixa-te de merdas, Will. As coisas loucas que o amor nos faz fazer são “ir à Disney na idade adulta”; “forjar interesse no reality show Love Is Blind” ou “aceitar dividir dois pratos num restaurante, sabendo que a tua opção tem tudo para ser consideravelmente superior”. Não é bater em alguém por causa de uma piada que até te fez rir, pá.
A ideia de “pai de família a defender a honra da sua dama” teve adesão inesperada. A comediante Tiffany Haddish assumiu ter sido “a coisa mais bonita que já viu na vida”. Como vemos, o sistema de valores que tem o “combate à ofensa” como a sua principal luta vê toxicidade onde ela é duvidosa e ignora toxicidade em situações em que ela é flagrante. Quando o “combate à ofensa” ofusca o “combate à masculinidade violenta”, fica clara qual é a verdadeira prioridade.
Por cá, assistimos também a um bonito exercício chamado “como tornar uma agressão nos Óscares numa boca à minha ex-mulher”, levado a cabo por um dos mais proeminentes ex-maridos do país, Ricardo Martins Pereira, vulgo “O Arrumadinho”. Martins Pereira, expondo o melindre que piadas da ex-companheira causaram na atual, identifica-se com a “sensação de revolta que cresceu no peito de Will Smith” e critica que a sociedade tenha chegado à conclusão de que “bater é errado”, acrescentando que "não conseguimos desbloquear o cérebro e sair dessa maneira de ver o mundo”.
O publisher da revista Magg, publicação que tem uma secção editorial chamada “Big Brother”, diz que “a agressão verbal, psicológica, pode doer muito mais do que a agressão física”, em declarações que podem desencadear uma epidemia de recurso indevido a analgésicos. Recorde-se que ex-blogger que desvaloriza agressões por causa de piadas porque conhece alguém que ficou consternado com uma é o mesmo que não “aceita de braços abertos” cidadãos de etnia cigana porque quando era jovem foi assaltado - um empirista, portanto. Eu até estaria disposto a aceitar o ralhete moralista que põe em sentido “os humoristas que acham que ‘vale tudo’”, mas tenho alguma dificuldade em fazê-lo quando vem de alguém que fez parte da direção do 24 Horas.
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