“Não sei o que quero, mas sei como obtê-lo.” A frase anterior traduz um verso da “Anarchy in the U.K.”, canção com que os Sex Pistols se apresentaram ao mundo em 1976. Toda a letra dessa música é curiosa, pois enquanto parece fazer a apologia da anarquia, na verdade faz-lhe uma espécie de paródia. Para muitos, o movimento punk começou efectivamente nesta canção, na tal paródia, e na caricatura maltrapilha dos seus intérpretes. Mas curioso também é perceber que, 43 anos depois, qualquer passo político no Reino Unido revela menos clareza, menos certeza e menos exequibilidade do que os versos caricaturais do “Anarchy in the U.K.”. Gente aprumada e obsequiosa do século XXI a levar uma abada de putos de cabelo espetado do século passado. “Sei mais ou menos o que quero, mas não faço ideia como obtê-lo”, poderá ter sido a versão cantada anteontem no Conselho de Ministros britânico.

Lá para a frente na canção, os Sex Pistols diziam qualquer coisa como “Quantas maneiras existem para conseguirmos o que queremos? Eu uso a melhor, eu uso a restante, eu uso o inimigo”. Não há excerto musical mais apropriado, nem mais irónico, para o momento presente, não agora que Theresa May está de mão estendida em direcção ao líder da oposição. Esta aproximação de inimigos é louvável, até pela oportunidade que nos dá - a nós que não morremos de amor por Corbyn - de ver o trabalhista cada vez mais implicado no grande fracasso político deste século. Prometo sacudir as embirrações corbynistas e o sadismo do resto do texto, mas dificilmente se me extinguirá o cepticismo.

Da última vez que aqui escrevi sobre este assunto, assumi algumas opiniões que, até sendo democráticas (a possibilidade de um novo referendo), pisavam linhas que alguns têm como dogmáticas em democracia. Embora eu não vá insistir na mesma tecla, venho recordar que a problemática do Brexit - tanto na procedência, como no impasse, como na consequência - é absolutamente inédita e intrincada, e parece que andamos a abordar uma fechadura nova com um molho de mil chaves antigas. É óptimo quando se consegue aliar decoro e bom-senso à eficácia, mas neste momento já nada se alia, só se martela. Por isso mesmo, se quisermos levar isto a bom porto, talvez andemos a apostar na caricatura inglesa errada. Já não precisamos do cavalheiro posh, cordato, afectado, de chapéu de coco e chávena de chá. Precisamos do punk-rocker selvagem, a ironizar anarquias que se invocam e não se desejam.

Esta aura de compromisso interno (que brotou do tal Conselho de Ministros de anteontem) pode, então, não ser propriamente aquilo que o Reino Unido mais precisa - pois se um acordo entre May e Corbyn soa a frente unida, a realidade é que esse acordo terá de fundamentar-se em concertações, em cedências de parte a parte que invariavelmente afrouxarão uma qualquer posição inicial. Em vez de apurar, vai diluir. Para os interesses britânicos, este não me parece o tempo de afrouxamentos ou diluições. A meu ver (e todo o engonhar dos últimos meses parece dar-me razão neste vaticínio) só há duas opções realmente válidas, ambas punk-rock, nenhuma delas frouxa: ou sair da União Europeia sem qualquer acordo, ou revogar o artigo 50 e permanecer na U.E. como até agora (exactamente a minha sugestão/ambição no último texto que aqui escrevi sobre o assunto, advogando novo referendo).

Admito incertezas em qualquer uma destas opções, mas parece ser apenas nelas que reside a capacidade de desempanar as rodas do Reino Unido. E se concordo que ambas as hipóteses trarão problemas a curto prazo, a verdade é que nenhum dos problemas será mais devastador e duradouro que o actual desgaste, e descrédito, que o Brexit está a causar no sistema político britânico.

Em traços largos, quais podem ser os maiores receios e as maiores esperanças daquelas duas opções? Na saída da União Europeia sem acordo, o grande problema passará pela perda dos pactos comerciais, o que obviamente se repercutirá de imediato na economia. Mas a luz ao fundo do túnel não é fosca, e neste exercício de optimismo tenho de concordar com os engenheiros do Brexit: com o passar de algum tempo, é muito possível (para não dizer provável) que uma economia habitualmente forte, como é a do Reino Unido, possa prosperar muito num regime de plena autonomia, sem as âncoras da Zona Euro, e com acordos comerciais revistos.

Na outra hipótese (desistir do artigo 50 e permanecer na U.E.), os maior receios prendem-se com o abalo político e o tumulto social, pois estaríamos perante recuos numa decisão legitimada democraticamente em 2016 (mas sobre isto já escrevi). Outros problemas teriam que ver com a imagem enfraquecida e embaraçada no “regresso” à União Europeia. Por outro lado, a grande vantagem desta opção seria o desapertar imediato dum garrote que muito tem desgastado a política britânica (creio que os reais danos deste impasse só se irão quantificar daqui a alguns anos) e o evitar dum período de transição muito conturbado para a economia. Para além disso, o Reino Unido tem uma preponderância internacional demasiado forte, e nunca seria tratado como pária; a sua permanência nunca seria um regresso com o rabinho entre as pernas. Estaria mais próximo do filho pródigo da parábola bíblica, recebido com pompa, mesmo depois de ter esbanjado credibilidade.

Qualquer coisa que escape a estas duas opções, a este “sim ou sopas”, a este preto ou branco, é uma gama de cinzentos sem grande definição. Enquanto se agarrar a estas mesuras, a estes soft brexits, o Reino Unido arrisca-se a ficar com um pé dentro e um pé fora, ambos no charco. Arrisca-se a estar sem voz na União Europeia e ainda assim ter de continuar a acatar-lhe directrizes - dando azo à mesma noção de subserviência que irritou e arregimentou os brexiters nas urnas há 3 anos. O pior de dois mundos, portanto.

Agora que vejo os queridos inimigos, May e Corbyn, a procurar uma solução conjunta, podia dar tréguas ao punk e citar um qualquer “We Are The World” apaziguador. Mas não; só me vêm à memória outros versos dos Sex Pistols que diziam “Não há futuro para os sonhos da Inglaterra”. O espírito de 1976 projectado num referendo de 2016. O punk não é das anarquias, é das efemérides.

Sítios certos, lugares certos e o resto

Agora, para algo completamente diferente, faço minhas as palavras do Adolfo Mesquita Nunes.