Comecemos como mandam as regras pelo princípio. Neste caso, pela cidade que acolheu a primeira das três grandes reuniões internacionais que Donald Trump manteve na semana passada. Em Bruxelas, era normal a presença do Presidente do pais criador e “superintendente” da NATO, mas mesmo assim esta situação, que outrora não passaria de uma formalidade com os discursos apropriados, tornara-se um motivo de tensão depois da desgraçada reunião do G7 no Canadá. Já lá vamos.
A segunda “perna” da tournée, a estadia na Grã Bretanha, também apresentava problemas estratégicos, sendo um deles a impossibilidade de Trump ir a Londres, dada a imensa hostilidade dos britânicos à sua pessoa; e o outro, a interferência de Trump no Brexit (a favor). Theresa May, ansiosa por um acordo comercial com os norte-americanos, tinha convidado Trump a visitar o país, o que levantou uma inédita onda de protestos. O Parlamento até votou que se recusava a receber o Presidente e um abaixo assinado contra a visita juntou dois milhões de assinaturas.
Quanto ao último espectáculo, um tête-a-tête com Putin, deixou os amigos e inimigos do Presidente muito nervosos. Sabia-se que Trump há muito tempo que queria esse encontro, contra a opinião de próximos e opositores. A Rússia está sob sanções pela anexação da Crimeia (ratificadas pelo Congresso e apoiadas por todos os países ocidentais) e há fortes indícios de que interferiu nas eleições norte-americanas. Foi excluída do G8, o grupo do oito maiores países industrializados, que assim passou a G7. Só o facto de Trump se encontrar com Putin já representava uma vitória para o líder russo, pois colocava-o em situação de discutir de igual para igual a anexação e a interferência. Como se não bastassem estas duas situações, que tornavam o encontro inoportuno, e juntavam-se outros contenciosos, como o apoio dado por Putin a Bashar al Assad, o envenenamento do espião na Grã Bretanha, o alinhamento com Teerão e o não-cumprimento do acordo de redução de armas nucleares intermédias, INF, para falar apenas em algumas das muitas situações criadas pelo autocrata russo. Quanto a estes temas, todos os comentadores concordavam que Trump não comentaria com Putin, e se fossem falados não seria numa situação de acusação e defesa. Trump sempre demonstrou uma simpatia inexplicável por Putin, como aliás se viu mais uma vez nestes dias. Chegaremos lá na devida altura da tournée.
Primeira Cidade: Bruxelas
Antes de chegar a Bruxelas, na terça-feira, dia 10 de julho, o Presidente americano já tinha dado indicação das suas intenções em vários tweets:
“Os países da NATO têm de pagar MAIS, os Estados Unidos devem pagar MENOS! Muito Injusto!”
“A União Europeia torna impossível aos nossos lavradores, trabalhadores e empresas fazerem negócios na Europa (os EUA têm um défice de 151 mil milhões de dólares) e ainda querem quê os defendamos alegremente através da NATO e pagarmos sem abrir a boca. Não pode ser assim!”
“Muitos países da NATO, que esperam que os defendamos, não só não chegaram ao seu compromisso de 2% (que é baixo), como também há muitos anos que não pagam o que devem. Irão reembolsar os EUA!”
Os próprios americanos, que são bons a fazer contas, verificaram que a situação não é exactamente assim. Os países da NATO têm de contribuir anualmente para o funcionamento corrente da Aliança, e todos o têm feito. O valor é calculado pelo PIB de cada país, e os Estados Unidos contribuem com 22%. O outro compromisso é de gastarem 2% dos seus orçamentos em defesa, o que realmente não têm feito. Dos 28 membros, só os EUA, Grécia, Grã Bretanha, Estónia e Polónia chegaram a esse valor. Contudo o incumprimento dos outros não implica nenhuma despesa extra dos Estados Unidos. Estes gastam 3,37 % do seu orçamento em defesa, mas só uma pequena parte é gasta com a NATO. A maior parte deve-se à maciça presença norte-americana em todo o mundo.
Quando receberam Trump na luxuosa sede da NATO em Bruxelas, os líderes europeus já sabiam o que os esperava; mas ninguém previa que logo ao chegar, ao pequeno-almoço, Trump se dirigisse a Angela Merkel, olhos nos olhos, para lhe dar um raspanete:
“A Alemanha, na minha opinião, é completamente controlada pela Rússia, porque lhe compra uma grande quantidade de energia. Temos de falar nos bilhões e bilhões de dólares que estão a pagar ao país contra o qual nós, americanos, os devemos defender!”
Quando a comunicação social lhe lhe pediu um esclarecimento, repetiu:
“Tenho que dizer o que penso; é muito triste que a Alemanha faça compras maciças de petróleo e gás à Rússia, enquanto nós ficamos encarregados de a defender contra a Rússia. Acho isto muito inconveniente.”
Merkel na altura ficou de boca aberta e não disse nada. No dia seguinte, a resposta veio do seu Ministro da Defesa, Heiko Maas:
“Não estamos reféns nem da Rússia nem dos Estados Unidos.”
Segundo Derek Chollet, que desempenhou vários lugares-chave na área da defesa em várias administrações americanas, ao criticar a Merkel por causa do novo oleoduto entre a Alemanha e a Rússia chamado Nord Stream 2, Trump tentava rebater a crítica de que é demasiado amigável com Putin.
Na quinta-feira, ao sair de Bruxelas, Trump deu uma conferência de imprensa em que afirmou que e envolvimento dos Estados Unidos na NATO “continua muito forte” e que os aliados tinham concordado em aumentar os seus orçamentos de defesa “como nunca se viu”. E, como sempre, deu o mérito a si próprio: “O Secretário Geral da NATO, Jens Stoltenberg, deu-me todo o crédito por ter obtido os aumentos de despesa. Acho que sim, fui eu consegui.”
Na verdade Stoltenberg não disse nada disso e fez uma análise muito mais realista dos perigos que corre a Aliança:
“Uma das minhas maiores preocupações não é a desunião duma aliança com 70 anos, mas as facções que existem dentro dela. Uma vez que o autoritarismo está em alta na Europa, a NATO tem de se esforçar para não se dividir em dois campos – um com o cada vez mais autoritário Trump, Recep Tayyp Erdogan da Turquia e Viktor Orban da Hungria e Mateusz Morawiecki da Polónia de um lado, e o grupo mais tradicional e liberal representado por Theresa May, Ângela Merkel, Justin Trudeau e Emmanuel Mácron.”
Isto confere com a opinião de Mike Carpenter, um alto funcionário do Ministério dos Negócios Estrangeiros de Obama, citado pelo “New York Times”:
“É uma pena que este governo (norte-americano), em vez de promover a democracia no estrangeiro, tenha escolhido elogiar os autocratas pelo seu estilo ditatorial. Não percebo como é que a degradação da NATO e a destruição na unidade europeia, os objectivos de Trump, sejam essencialmente o mesmo que o Presidente da Federação Russa tanto deseja.”
Segunda paragem: Grã Bretanha
Desde que foi convidado por Theresa May que Trump considerava ir à Grã Bretanha, mas foi adiando a viagem perante a hostilidade aberta de todos os órgãos de soberania e população das ilhas britânicas. Finalmente assentou-se numa situação de compromisso: não seria uma “visita de Estado” mas apenas uma “visita de trabalho”. Trump encontrar-se-ia com May em Oxfordshire e com a Rainha em Windsor, longe de Londres e das inevitáveis manifestações de hostilidade.
Ainda em Bruxelas, Trump começou logo a debitar inconveniências diplomáticas. Numa entrevista ao jornal “The Sun” (propriedade do seu amigo Robert Murdoch) disse que a Grã Bretanha estava “tumultuada” e numa situação difícil; que devia cortar todas as ligações com a UE. Insinuou que não tinha a certeza se poderia fazer um acordo comercial com os ingleses – um ponto essencial do programa de May para o futuro - e elogiou Boris Johnson que “tem potencial de ser um grande Primeiro Ministro. E insistiu na tese dos Brexiteers radicais: “O acordo que ela quer fazer com a UE não é o que foi votado pelo povo.”
A entrevista veio para a rua quando o casal May e cem convidados da nata dos negócios britânicos jantavam com o casal Trump, em Blenheim Palace, a hora e meia de distância de Londres. Caiu muito mal, como se pode calcular, mas a Primeira Ministra engoliu a pílula, como antes o fizera Merkel. O grau de inconveniência de Trump não está previsto nas normas da diplomacia, a não ser em caso de guerra.
No dia seguinte houve uma “sessão de trabalho” em Chequers, a casa de campo oficial de Theresa May, também a hora e meia de distância de Londres, onde o balão de Trump bebé flutuava à vista dos milhares de manifestantes nas ruas. Deve ter sido uma reunião, sem dúvida, sui generis, mas o que temos dela são apenas as considerações que Trump fez na aparição à imprensa que se seguiu:
“Eu teria feito de uma maneira completamente diferente (o Brexit). Na realidade até disse à Theresa May como fazê-lo, mas ela não concordou. Em vez disso foi na direcção oposta e os resultados têm sido bastante infelizes.”
Quando um jornalista mencionou os elogios de Trump a Boris Jonhson, respondeu: “Ora bem, não estou a atirar um contra o outro. Apenas disse que ele seria um grande Primeiro Ministro. Acho que ele tem o que é preciso e a atitude certa para ser um grande Primeiro Ministro.”
O título da entrevista no “The Sun” era “May escavacou o Brexit... Não vai haver acordo com os EUA!”. Aliás, estas também foram as palavras de Nigel Farage, o ex-líder da UKIP e representante permanente da direita radical britânica, que também informou a BBC que andava a discutir o Brexit com elementos do círculo de Trump e com Steve Bannon.
Sexta de manhã Trump deu uma conferência de imprensa em que leu o que a sua equipa tinha preparado para reduzir os estragos da entrevista: elogiou May e disse que estava pronto para fazer um grande acordo bilateral assim que a Grã Bretanha saísse da UE. Depois, num aparte seu, classificou a entrevista do “The Sun”, cuja gravação é pública, como “fake news”.
Na mesma sexta-feira, Trump foi ainda tomar um chá com a Rainha no castelo de Windsor. Apesar de não ser uma “visita de Estado” os ingleses trataram-no com toda a pompa e circunstância; a parada dos guardas reais, de casaco vermelho com capacetes de pelo preto com meio metro de altura, no pátio imaculado rodeado por um palácio com mil anos, é de facto impressionante. Uma oportunidade para Trump fazer mais uma das suas gaffes, passando à frente da rainha na revista às tropas – um vídeo divulgado à exaustão nas redes sociais.
Depois meteu-se no avião presidencial para a Escócia, onde passou dois dias a jogar golfe num dos seus campos.
O estado de espírito dos ingleses sobre a estadia de Trump na Grã Bretanha foi perfeitamente resumido pelo Daily Mirror:
"Insulta o nosso país, ataca o serviço nacional de saúde, envergonha a nossa rainha, sabota a nossa "relação especial", humilha a nossa primeira-ministra... e depois posa de forma presunçosa na poltrona de Winston Churchill".
A deputada trabalhista Ruth Smeeth disse ao Mirror: "Churchill corporizou o melhor do espírito britânico quando estávamos a lutar e a derrotar racistas e fascistas durante a Segunda Guerra Mundial. Dadas as terríveis acções e a retórica de Trump, ele nem sequer merece olhar para uma estátua de Churchill, muito menos sentar-se no seu lugar."
Terceira etapa: Helsínquia
Escreve Susan Glasser, no “New York Times”:
“A razão deste encontro permanece um mistério. Destina-se a debater o controle das armas nucleares? A Síria? A Ucrânia? Reabilitar a eleição de 2016? Surpreendentemente, nada é claro, e só isso torna esta cimeira muito diferente.
Não havia uma agenda concreta que tivesse sido combinada, tal como o próprio Trump confirmou na quinta-feira, e o encontro iria ocorrer apenas duas semanas depois de escolhida a data. A preparação consistiu numa única viagem a Moscovo do Secretário de Segurança, John Bolton. Voltou sem nenhum tema decidido antecipadamente como é típico nestas cimeiras. (O tema é o próprio encontro, terão dito os russos a Bolton.)”
Ainda na Escócia, Trump deu aos jornalistas mais uma pérola. Um jornalista perguntou-lhe se considerava a Rússia um adversário. “Temos muitos adversários. A UE é um adversário, veja o que nos fizeram no comércio. A Rússia é um adversário, a China também. Não quer dizer que sejam más pessoas, são apenas concorrentes.”
É assim que o Presidente dos Estados Unidos vê o mundo: uma competição contra todos, onde não há aliados nem inimigos, apenas competidores.
Putin chegou meia hora atrasado, o que a comunicação social norte-americana considerou propositado. Lá se reuniram os dois durante um par de horas. Depois de uma impaciente espera, às quatro da tarde de Lisboa apareceram para uma conferência de imprensa numa sala à cunha de jornalistas.
Primeiro falou Putin: disse platitudes diplomáticas sobre cooperação na solução dos problemas internacionais, luta contra o terrorismo – inclusive o ciberterrorismo! – e reajustamento do Tratado INF. Falou como se as relações dos dois países - atualmente “relações difíceis” - fossem apenas um percalço numa amigável continuidade. Ou seja, não disse nada do que se pode ter passado realmente na reunião pois, sendo privada (só com a presença de um intérprete), certamente que não se falou destas banalidades ou, se se falou, foi num tom e com nuances que não virão a público.
Putin não precisava, nem lhe convinha, sair deste guião politicamente correcto; ter-se encontrado com Trump já era uma vitória.
A seguir falou Trump. Começou por felicitar a Rússia pela excelente organização do Mundial de Futebol e depois entrou no osso do assunto. Segundo ele, sempre existiu uma tradição nos dois países de resolver os problemas “com cooperação e meios pacíficos”, em vez de antagonismo e guerra; e apesar de vivermos num período “particularmente difícil” nas relações, tinha esperança que a partir deste encontro melhorassem.
E afirmou que tinha comentado com Putin a interferência russa nas eleições norte-americanas e que Putin tinha “algumas ideias” sobre o assunto – como se tivessem discutido as pescas na Groenlândia, um assunto interessante mas sem consequências telúricas.
De resto, acompanhou o tom de conciliação e normalidade de Putin, celebrando alegremente a paz e a boa vontade dos dois países em que o mundo role sobre rodas.
Nas respostas às duas perguntas que alguns dos mil e trezentos jornalistas podiam fazer, Trump voltou a repetir que considerava Putin um “concorrente” (“competitor”) e não adversário e voltou, logo que conseguiu, às questões domésticas que o preocupam. “Não houve conluio”(entre a campanha presidencial de Trump e os russos), repetiu várias vezes, alinhando assim com Putin na versão da inocência russa, isto três dias depois do vice-Ministro da Justiça, Rod Rosenstein, ter oficialmente indiciado 12 membros dos serviços especiais russos, o GRU, por piratearem o site da Comissão Democrática National e disseminar milhares de posts falsos nas redes sociais para sabotar a campanha de Hilary Clinton.
Falou-se de tudo um pouco, como o problema da Síria. Trump disse que russos e americanos vão trabalhar com Israel para resolver a questão, sem especificar como e quando, ainda menos como isso será possível. No meio das respostas, Trump introduziu vários apartes verdadeiramente surpreendentes, como por exemplo que os soldados russos e americanos sempre se deram lindamente – presume-se que na Síria.
Lá veio a história dos 13 mil emails da campanha Clinton desaparecidos - “tenho a certeza de que se fosse na Rússia não desapareciam!”.
Houve um jornalista americano que teve a ingenuidade de perguntar a Putin se a Rússia tem “material comprometedor” sobre Trump. Putin riu-se, mas respondeu a sério: “Na altura, eu nem sabia quem era Donald Trump. Havia cerca de 500 homens de negócios americanos em Moscovo; vocês acham que nós gravávamos tudo o que eles faziam?”.
Terminou assim a tournée europeia de Donald Trump. Se alguma coisa surpreendeu, foi não ser nada surpreendente. O artista, igual a si mesmo.
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