A mania das bandeiras

Estou agora mesmo a ver um dos episódios de uma série que me deixa sempre bem-disposto: A Teoria do Big Bang. Uma das piadas recorrentes é o canal de YouTube mantido pelo Sheldon, o cientista com sérias dificuldades sociais.

O programa de YouTube chama-se Fun with Flags e a piada é óbvia: só uma pessoa como o Sheldon acha um tema como as bandeiras suficientemente interessante para criar dezenas e dezenas de episódios sobre o assunto.

E, no entanto, as bandeiras até são interessantes…

Não falo apenas das bandeiras nacionais, aquelas que todos vamos conhecendo melhor ou pior. Há bandeiras para tudo e para nada: desde países inventados, até associações de bairro, passando pelas bandeiras de regiões, cidades, prédios…

Em Portugal, temos bandeiras para os mais de 300 concelhos e para as mais de 3000 freguesias. Ora, olhando para as bandeiras municipais, vemos que os concelhos com sede numa cidade têm bandeiras formadas por triângulos — os especialistas chamam gironada a este tipo de bandeira. O brasão de uma cidade tem ainda cinco torres no cimo.

Na bandeira da cidade onde nasci, por exemplo, vemos os triângulos e as cinco torres:

Já os concelhos com sede numa vila têm bandeiras constituídas por quatro rectângulos (que podem ou não ser quadrados, dependendo da forma da bandeira).

Mesmo concelhos que têm cidades no seu território, mas cuja sede é uma vila têm uma bandeira com a forma típica das vilas — é o que acontece, por exemplo, em Sintra. Note-se ainda as cinco torres em vez das cinco:

As bandeiras das cidades portuguesas seguem o formato da bandeira de São Vicente, ou seja, a bandeira de Lisboa:

As cinco torres são douradas, mostrando em forma de cor ser esta a capital do país.

Não sei se o Sheldon alguma vez falou destas bandeiras no seu canal de YouTube…

A bandeira de Lisboa numa cidade espanhola

A bandeira de Lisboa é um antiquíssimo símbolo português. A bandeira nacional, aliás, é bem mais recente, embora, lá bem no centro, encontremos o brasão, que mantém símbolos antigos da nacionalidade.

Ora, o que acontece quando juntamos a bandeira de Lisboa ao brasão português? Curiosamente, ficamos com a bandeira duma cidade espanhola…

Esta é a bandeira de Ceuta. Se olharmos com atenção, vemos que o brasão não é exactamente igual ao nosso brasão actual. Há uma coroa, os castelos estão um pouco deslocados — mas não há ninguém que não veja neste símbolo um símbolo bem português.

Ceuta é pródiga em certas confusões. Afinal, é uma cidade espanhola que fica em África, num dos lados do Estreito de Gibraltar, enquanto do lado espanhol temos uma cidade… britânica. Se as bandeiras são curiosas, os mapas não o são menos.

Quem se lembrar da História que aprendeu na escola perceberá a ligação de Ceuta a Portugal: foi a cidade conquistada no tiro de arranque da expansão marítima, em 1415. Quando, séculos depois, Portugal recuperou a independência perdida durante umas décadas, Ceuta deixou-se ficar como território espanhol — embora os símbolos continuem a lembrar os séculos de dominação portuguesa.

Uma estranha língua na pedra

As recordações são como as cerejas. Lembro-me bem de visitar Ceuta, há muitos anos, com os meus pais, e de nos aproximarmos de uma igreja com uma interessante inscrição — que estava em português!

Um espanhol, solícito, aproxima-se e, simpático, informa-nos de que aquela inscrição não é a melhor. Lá nos foi dizendo que não se percebia nada. A inscrição certa era outra, ali mais ao lado.

Acompanhámo-lo, curiosos, até percebermos que nos estava a orientar para uma segunda versão da mesma inscrição — igualzinha, mas em castelhano.

Agradecemos com um sorriso — mas voltámos à inscrição portuguesa. O homem ficou a coçar a cabeça, sem perceber por que razão preferíamos a versão que não se percebia…

Ali mesmo ao lado, ondeava a bandeira de Lisboa, com um peculiar brasão português. Mal sabia eu que havia de me lembrar daquele preciso momento, muitos anos depois, ao assistir a uma série cómica sobre físicos californianos.

Crónica adaptada de texto anterior.

Marco Neves | Professor e tradutor. Escreve sobre línguas e outras viagens na página Certas Palavras. O seu mais recente livro é o Atlas Histórico da Escrita.

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