As escolhas democraticamente eleitas por todo o mundo têm nos obrigado a uma reflexão ampla sobre a democracia. É um tema difícil que, inevitavelmente, acaba com a frase de todos conhecida: "não é um sistema perfeito, mas não se encontrou ainda melhor". O que, até prova em contrário e face às alternativas, é, sem dúvida, verdade. Mas também é verdade que o conceito de participação popular se alterou radicalmente nos últimos cinco anos, mercê da explosão das redes sociais, e com consequências, aos mais diferentes níveis, que ainda ninguém conseguiu efectivamente perceber.
Por causa dos acontecimentos em França e na Turquia, na semana passada, falei com várias pessoas que vivem em cidades como Paris, Nice, Istambul, Ancara e Londres. Pessoas que não se conhecem umas às outras – nenhuma delas. Pessoas com contextos de vida diferentes, com profissões diferentes, com idades diferentes. Em todas, senti a mesma apreensão. Em nenhuma, senti ódio ou vontade de alinhar por qualquer extremismo. Uma delas falou comigo, ao telefone, enquanto a noite de Istambul era disputada pelos militares ditos golpistas e o "povo de Erdogan", aquele que as mesquitas chamaram à rua para defender a nação. Ainda o desfecho era incerto e já me dizia do outro lado da linha que, de certeza, que Erdogan teria tudo controlado. "Acho que no domingo está tudo resolvido", comentava na madrugada de sábado. No domingo, estava tudo não apenas resolvido como perdida qualquer réstia de esperança que a Turquia não se torne mais um problema – um problema de uma dimensão que só conseguimos imaginar e temer.
Em Istambul, como em Paris, ou em Nice, as pessoas com quem falo só querem ter uma vida normal. Tomar o pequeno-almoço com a família, levar as crianças à escola sem recomendações especiais, ir trabalhar sem pensar duas vezes no trajecto, ter amigos sem pensar no bilhete de identidade, visitar amigos sem que lhes seja pedido bilhete de identidade, jantar fora porque é sexta-feira, talvez ir dançar, talvez ir ouvir música. Na loucura, quem sabe ir assistir a um fogo de artifício. E poder rir, mesmo que se seja mulher – a quem a tribo Erdogan recomenda recato na via pública. Uma vida estupidamente normal.
Esta normalidade daqueles com quem falo não é exactamente a mesma que as televisões me mostram. Nem aquela que as redes sociais comentam. Em Cleveland, nos Estados Unidos, terra que consagra como primeiro postulado da constituição o direito a procurar a felicidade, vejo pessoas iradas com Hillary Clinton, gritando pela sua prisão, vomitando ódio a cada sílaba. Hillary está longe de ser uma candidata entusiasmante. Nem vale a pena dizer que nunca será Obama, porque isso era admitir que sequer estava no mesmo plano. Não se comparam metros com litros.
Mas este ódio? Katty Kay, jornalista e apresentadora da BBC, vai na 17ª convenção republicana que acompanha. Diz que nunca viu nada como isto. "Sinceramente, não sei se é por Mrs. Clinton ser mulher. Talvez seja porque está há tanto tempo na política ou porque o seu servidor de email faz parecer que ela pensa que está acima da lei. Mas o ódio que lhe votam é viciante e visceral. Isto tornou-se a convenção do "prendam-na". Perguntem aos delegados sobre Mrs. Clinton e vejam-lhes o brilho nos olhos – ela é o "mal", uma "mentirosa", e "perigosa"."
Reparem, estas são as mesmas pessoas que querem ver Donald Trump presidente da América. As mesmíssimas pessoas que não querem a sua opositora porque, deduz-se, não se reconhecem na maldade, na mentira e no perigo.
A insanidade.
Trump, o agitador, o atiçador de serpentes, o quase-inimputável, parece até um tipo de moderado quando a isto apenas responde: "Vamos derrotá-la em Novembro".
Se a democracia é a escolha da maioria, precisamos mais do que nunca de saber quem é esta maioria. Há ódio nas pessoas normais – sempre houve. Mas esse tem sido sempre o triunfo da humanidade sobre a bestialidade: vencer o ódio, começando pelos ódios de cada um, em prol de um bem maior, que é a sobrevivência.
Tenham um bom fim-de-semana.
Outras sugestões:
O que pode a tecnologia fazer por nós, além de naturalmente nos permitir jogar Pokémon Go (o incontornável tema lúdico desta semana)? Muita coisa e com pensamento politico à mistura. Senão veja-se esta história dos robôs-manifestantes expostos numa sala do Instituto de Tecnologias Interactivas da Madeira.
Era uma vez um reino a que chamamos unido e que em virtude de uma votação está em grande agitação interna e externa. Este reino, tem novo governo, este governo tem novas missões, estas missões são provavelmente problemáticas. Da Idade Média ao século XXI, aqui fica um retrato, mais que factual, contextual, dos dias que se vivem no reino de Sua Majestade. Um texto imperdível do José Couto Nogueira.
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