Para a História ficará aquela fatídica segunda-feira de abril em que a Catedral de Notre-Dame ardeu durante 15 horas. Recordar-se-ão os momentos de incredulidade face ao ímpeto das chamas, a imagem do pináculo engolido pelo fogo, as capas dos jornais na manhã que sucedeu o incêndio. Mas lembrar-se-á também a coragem do capelão Jean-Marc Fournier, celebrar-se-á a resistência do trio de rosáceas que nunca deixou de iluminar a catedral, contar-se-á que antes do fogo estar extinto já milhões haviam sido oferecidos para a sua reconstrução.

Podemos não saber o fim da História, mas sabemos que ela não fica por aqui. Então, celebre-se o passado para que não fique esquecido, celebre-se o futuro porque é dele a resiliência e o sonho.

E é no espírito de quem celebra, sem que a atualidade se imponha de atropelo à memória, que o SAPO24 pinta de negro a sua página principal, dando cor e luz apenas e só a tudo o que a Notre-Dame diz respeito.

Da mesma forma que registamos o desastre de 15 de abril de 2019 ponto por ponto, damos voz ao humor acutilante de Manuel Cardoso — “Fogo, Notre. 850 não é nada uma boa idade para cair, Notre.” — e olhamos para dentro em busca de garantias para que um passado comum não seja uma perda futura.

Sabemos que o mundo não pára: há escassez de combustíveis, professores em braço de ferro, equipas que entram em campo para disputar o título de campeões do esférico. O globo continuará a girar e nós vamos registar e informar, mas por agora a preto e branco, em segundo plano. Atrevemo-nos assim a tirar tempo para conversar sobre o tempo que nos foi roubado em apenas 15 horas e para pensar o que este novo tempo nos trará. 

Porque Notre-Dame é isso mesmo: Uma construção do tempo de todos nós, um reflexo da história de França, da Europa, da nossa História. Modificada, aumentada, restaurada, reconstruída, alterada, uma e outra vez, ao gosto das épocas, ao longo dos séculos, depois de ferida.

Uma Catedral (outra vez) em construção, numa Europa (ainda) em construção.

2019 marca agora um revés e um recomeço. Mas Notre-Dame — a catedral que inspirou Victor Hugo, Matisse, deslumbrou Marcel Proust e Sigmund Freud — continua de pé, com as suas torres firmes. E o trabalho segue, tal como a História.

Há quem veja neste recomeço a “oportunidade extraordinária” para acrescentar algo do século XXI  à catedral que é “uma memória viva da cultura europeia”. Talvez. Para já há perícias técnicas a fazer, património para restaurar, rumores para desfazer, heróis para celebrar.

Na noite do incêndio, Jean-Marc Fournier, capelão da brigada de bombeiros de Paris que confortou os feridos no atentado ao Bataclan, em 2015, entrou numa catedral ainda chamas para salvar a Coroa de Espinhos que os cristãos acreditam ter sido usada por Jesus Cristo na crucificação. A Fournier juntaram-se tantos outros e das chamas resgatou-se também a túnica de São Luís — uma peça do sec XIII que se acredita ter pertencido ao único rei francês reconhecido como santo — um pedaço da cruz em que Jesus Cristo foi crucificado e um prego utilizado para o fazer. O órgão principal da catedral não ficou queimado, mas os danos sofridos ainda estão por apurar. Depois de rumores partilhados nas redes sociais sobre danos nas rosáceas, o porta-voz de Notre-Dame, André Finot, garantiu que “os vitrais não foram tocados, as três belas rosas de Notre-Dame, que datam dos séculos XII e XIII, ainda lá estão, e esta manhã não se mexeram”.

Seguem assim, iluminando o tempo que será agora de reconstrução. "O pior foi evitado, ainda que a batalha não tenha sido vencida”. As palavras são de Emmanuel Macron, que na noite da tragédia apelou a uma mobilização de peso (a que os franceses atenderam) e hoje, num acesso de otimismo, falou sobre uma reconstrução em cinco anos.

O debate sobre o futuro da catedral ainda vai no adro, mas há outra procissão que marca passo: a do futuro da Europa.

No dia em que a catedral ardeu Macron ia dirigir-se ao país para anunciar medidas de redução de impostos, esperando desta forma colocar um ponto final nos protestos dos coletes amarelos.

À data das primeiras demonstrações, Francisco Sena Santos escrevia no SAPO24 que “o protesto não é de direita nem de esquerda. Não se vê qualquer marca ideológica. É gente de classes médias e baixas que está farta de políticos e de sindicalistas, gente que se sente desprezada pelos poderes, povo que protesta contra injustiças fiscais e contra a má qualidade de serviços públicos.” Estávamos em novembro de 2018. O país, França.

São estes europeus que nos dias 23 a 26 de maio vão também às urnas para decidir o futuro de uma Europa cuja paisagem política mudou muito desde as últimas eleições europeias. Da crise migratória ao Brexit, passando pela afirmação de partidos e movimentos nacionalistas contrários aos valores de solidariedade fundadores da União Europeia.

Unidos na dor, chocados pela perda de algo que nos faz sentir europeus sem nos roubar a identidade, hoje, 16 de abril, somos todos franceses, somos todos europeus, somos todos Notre-Dame.

Seremos?


Ficha Técnica: Esta edição especial do SAPO24 contou com a direção de Rute Sousa Vasco (MadreMedia), coordenação de Inês F. Alves (MadreMedia) e João Dinis (MadreMedia), design de Luís Carmona (SAPO) e Mariana Wang (MadreMedia) e implementação de Nelson Duarte (SAPO). As imagens que ilustram este especial foram trabalhadas com objetivo de parecer um vitral, utilizando a aplicação Prisma.