As palavras e os números com que construímos a História

Alexandra Antunes
Alexandra Antunes

Hoje, 19 de abril, é o chamado Domingo de Pascoela. Passou uma semana desde o dia de Páscoa. Olhamos em volta e tudo é diferente. Continuamos com a vida semi-parada. Dentro de casa, se nos for possível.

A semana passada, católicos e protestantes em todo o mundo viviam dias estranhos. Hoje foram os crentes ortodoxos, que celebram a ressurreição de Cristo uma semana depois por terem outro calendário. Também eles tinham programado festividades para diversos locais que ficaram quase desertos, à semelhança do que aconteceu na Praça de São Pedro, no Vaticano, e em tantos outros sítios.

Contudo, permitam-me recuar no tempo, antes de voltar às notícias do dia de hoje.

Nesta mesma data, em 1506, também Domingo de Pascoela, deu-se o "Massacre de Lisboa": na capela do Convento de S. Domingos, alguém reparou no brilho anormal num crucifixo, o que foi considerado milagre e levou a que a igreja se enchesse de fiéis. Contudo, alguém disse que não era milagre nenhum, mas apenas o reflexo de uma candeia acesa.

Esse indivíduo, um cristão-novo — um judeu recém-convertido ao cristianismo —, foi arrastado para o exterior, onde foi agredido e morto por uma multidão. Foi este o início de uma perseguição pela cidade, que durou três dias, e onde terão sido mortos cerca de 4000 cristãos-novos. Os cronistas Damião de Góis e Garcia de Resende assim contaram a história. Em frente à Igreja de São Domingos, para que não nos esqueçamos do episódio, está um memorial em forma de Estrela de David, com letras discretas referindo as "vítimas da intolerância e do fanatismo religioso", mas sem precisar os números que mancham a nossa História. Quantas vezes reparamos nele?

Posto isto, voltemos à atualidade, ainda na componente religiosa — e falemos de palavras.

O Papa Francisco defendeu hoje que a batalha contra a pandemia da Covid-19 é um "tempo para eliminar as desigualdades" e "o vírus" do egoísmo, palavras ditas durante a missa do Domingo da Misericórdia.

"Agora quando pensamos numa lenta e difícil recuperação da pandemia, insinua-se precisamente este perigo: esquecer o que foi deixado para trás. O risco é que sejamos atingidos por um vírus ainda pior, que é o do egoísmo indiferente", alertou o chefe da Igreja Católica durante a missa que decorreu com as portas fechadas e sem fiéis presentes devido às regras de contenção da pandemia.

No fim, agradeceu aos jornalistas: "Obrigado pelo vosso trabalho e por estarem a trabalhar ao domingo, em vez de estarem na cama. Muito obrigado, obrigado. É importante a comunicação". (Cá estamos, Papa Francisco!)

Por cá, no que diz respeito a celebrações de cultos, o primeiro-ministro vai reunir-se na segunda-feira com o Cardeal Patriarca de Lisboa, Manuel Clemente, para "preparar o levantamento das limitações às celebrações religiosas".

Contudo, será certamente um decisão tomada sem esquecer os constantes alertas. Um deles veio esta manhã, por parte de Marta Temido, ministra da Saúde. "Um gesto imponderado, uma saída desnecessária, podem deitar tudo a perder", afirmou numa clara alusão ao festejos do dia 25 de Abril ou 1 de Maio, e que se estende a tudo o resto.

Partilhadas as palavras, e para reforçar o apelo, os números ajudam: segundo o boletim epidemiológico hoje publicado, Portugal regista 714 óbitos por covid-19 (mais 27 do que no sábado, um aumento percentual de 3,9%) e um total de casos confirmados que ascende a 20.206 casos (mais 521, representando uma subida de 2,6%).

No resto do mundo, os números vão também contando a história. Itália regista 433 mortos — o número mais baixo de vítimas desta semana — e confirma tendência de descida; a Áustria registou apenas 59 casos de infeção; o governador de Nova Iorque diz que a pandemia está em fase descendente; França regista quase 20 mil mortos na totalidade e o Reino Unido registou mais 596 mortes nas últimas 24 horas.

Para terminar, querendo deixar por um bocadinho as contas, deixo três sugestões, todas elas relacionadas com palavras:

  • Para ler: mais no campo da ficção, mas com referências ao Massacre de Lisboa, o livro O Último Cabalista de Lisboa, de Richard Zimler, pode ser uma forma de aprender sobre a época e sobre este episódio em si;
  • Para fazer: guarde uns minutos para puxar pela cabeça e faça estas palavras cruzadas, organizadas pelo Instituto Camões;
  • Para aprender: de onde vem a palavra "filho"? Marco Neves, cronista do SAPO24, ajuda a perceber. E, diz o próprio, há uma surpresa embaraçosa por lá escondida.

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