A queda de Eriksen, a firmeza de uma equipa, o alívio de todos. O dia em que o futebol nos deixou a todos de coração nas mãos
Não se pode dizer que, no extenso calendário de jogos deste Euro2020, um Dinamarca-Finlândia fosse das partidas que mais entusiasmasse, não obstante ambas as equipas terem jogadores de grande qualidade. Um deles, Christian Eriksen, médio do Inter de Milão de 29 anos, foi o protagonista de um episódio no Estádio Parken, em Copenhaga, que tornará este jogo absolutamente inesquecível, pelos piores motivos.
Ao final da primeira parte, ao receber uma bola fruto de um lançamento lateral, o médio colapsa no chão. Qualquer dúvida quanto a uma lesão muscular ou fratura que o tivesse feito perder o equilíbrio ficou dissipada quando foram dois dos jogadores da Finlândia nas imediações que de imediato alertaram que o caso era grave. O árbitro Anthony Taylor, ao aproximar-se, teve igual entendimento.
Entraram logo em campo dois membros das equipas médicas para dar assistência. A transmissão deixava ver Eriksen de olhar esgazeado, fazendo temer o pior. À medida que ambas as equipas e os perto de 11 mil adeptos tomavam consciência do que se estava a passar, um jogador destacou-se pelo sangue frio: Simon Kjaer, o capitão dinamarquês, que tentou socorrer de imediato o colega e, mesmo afastado pelos enfermeiros, manteve-se de gatas a supervisionar toda a situação.
Nisto, à medida que os segundos, e depois os minutos, se foram passando, a transmissão da UEFA ia deixando ver olhares consternados e lágrimas a correr, tanto da parte dos jogadores de ambas as equipas como dos adeptos nas bancadas. As equipas médicas, no entanto, tentavam reanimar o jogador fazendo uso de um desfibrilhador, o que inevitavelmente trazia à memória casos trágicos de jogadores mortos em campo por ataques cardíacos.
Contrariando o voyeurismo das câmaras — a UEFA terá de explicar porque decidiu fazer deste caso um espetáculo televisivo ao manter a transmissão, por mais que isso tenha facilitado o trabalho daqueles que acompanhavam o jogo de computador à frente — a equipa da Dinamarca assumiu uma postura de solidariedade notável. Com um Thomas Delaney contendo as lágrimas a comandar as tropas, fizeram um círculo à volta de Eriksen e da equipa médica — entretanto reforçada com mais elementos e uma maca —, impedindo os olhares rapinantes das lentes sobre o camarada caído.
Um momento dramático, contudo, não passou despercebido. A transmissão deixou revelar a presença de uma mulher em lágrimas com o equipamento da Dinamarca junto ao relvado, a ser confortada por Kjaer e o guarda-redes da equipa, Kasper Schmeichel. Mais tarde se confirmou ser Sabrina Kvist Jensen, namorada do jogador.
Entre aplausos dos adeptos à postura dos jogadores — e ao selecionador dinamarquês Kasper Hjulmand, que também atravessou o campo sozinho para obter novas de Eriksen — e o choro entalado nas gargantas dos muitos presentes, ao fim de 10 minutos foi dada ordem de saída dos atletas, das equipas técnicas e do grupo de juízes da partida para os balneários. Pouco depois, foi Eriksen a abandonar o terreno, mas de maca, ladeado pelos colegas.
Com a preocupação, começaram a chover as mensagens de apoio e preocupação. Uma destacou-se de todas as outras: a de Fabrice Muamba, ex-jogador que sobreviveu a um ataque cardíaco em campo em 2012 e escreveu “por favor Deus”. Do lado português, tanto a Seleção Nacional a título coletivo como Cristiano Ronaldo a título individual expressaram solidariedade e desejaram as melhoras ao jogador. “Estou a contar voltar a encontrar-te em campo brevemente, Chris! Mantém-te forte!", escreveu o avançado português.
A indefinição agravava os temores: numa fase inicial, a UEFA apenas anunciou que uma “emergência médica” ditou a suspensão do jogo. No entanto, aos poucos foram surgindo sinais animadores: o primeiro foi a publicação de fotografias tiradas pelos profissionais da Agência France-Press mostrando Eriksen na maca de olhos abertos e aparente consciência, parecendo apoiar a cabeça com a mão. Depois, as mensagens oficiais: o jogador estava hospitalizado em Rigshospitalet, no centro de Copenhaga, e estava “estável”. Depois, foi o próprio agente do jogador a revelar que este estava acordado e a falar.
Ainda que o pior cenário já tivesse passado, sobravam perguntas por responder. Uma delas: será que haveria jogo? Qual seria o grau de estabilidade daqueles jogadores, os que viram um colega — de profissão e/ou de equipa — caído? A resposta veio em breve também: sim, seria retomado às 19:30 e a pedido de Eriksen, que terá em videochamada pedido aos colegas para continuarem.
O reencontro em campo teve a emoção prevista. Os adeptos de ambas as partes — que enquanto aguardavam novidades, gritaram todos por Eriksen no estádio — aplaudiram tanto a equipa da Finlândia como da Dinamarca. Aliás, a própria equipa finlandesa recebeu os rivais de braços apertos.
Outras questões, porém, mantém-se por responder: qual será o futuro de Eriksen? Poderá o jogador alguma vez regressar aos relvados? Ainda não é sabida a extensão das lesões nem as causas: nas transmissões televisivas dos canais portugueses, os vários especialistas contactados suspeitam de uma síncope cardíaca — que, felizmente, não deverá ter provocado danos cerebrais —, mas o atleta ainda vai ser sujeito a exames para que se compreenda o que ocorreu. Mais provável é que, pelo menos, não volte a jogar neste Europeu.
Outra questão passa pela postura dos decisores quanto à forma como tem lidado com os seus maiores ativos, os jogadores. Não se coloca aqui em causa se a UEFA pressionou os atletas a voltar ao campo, ainda que a última palavra sobre avançar com jogo e sujeitar os atletas ao trauma fosse sua.
Além disso, há que discutir a forma como o calendário desportivo tem sido desenhado nesta fase de pandemia, com muitos futebolistas espartilhados entre competições e sem ter tido folga no ano passado dado que os seus campeonatos acabaram tão tardiamente. Aliás, numa triste ironia, a Federação Internacional de Associações de Futebolistas Profissionais tinha exigido este sábado numa carta aberta passe a haver uma maior proteção de saúde e segurança para atletas, pedindo que o calendário de competições seja "mais justo e razoável" no futuro.
No marcador, a história de jogo, essa, até foi altamente inesperada: a Finlândia marcou um golo no único remate enquadrado que teve, por intermédio de Joel Pohjanpalo, que não celebrou — ao contrário de Romelu Lukaku, que na outra partida, entre a Bélgica e a Rússia, se dirigiu à câmara para dizer "Amo-te, Chris", após marcar golo. Na sua estreia num campeonato europeu, a novata Finlândia bateu um ex-campeão europeu, mas esse resultado peca por irrelevância face ao que se passou antes. Eriksen sobreviveu e o futebol respirou de alívio.
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