Refugiados ucranianos recebidos por russos. O que está em causa?

Pedro Soares Botelho
Pedro Soares Botelho

O que se passa?

O semanário ‘Expresso’ fez hoje capa com um caso concreto de uma denúncia feita no início do mês pela embaixadora da Ucrânia em Lisboa: uma estrutura da câmara municipal de Setúbal para o acolhimento de refugiados ucranianos tinha na equipa duas pessoas com alegadas ligações a Moscovo. Segundo o jornal, pelo menos 160 refugiados ucranianos já terão sido recebidos por Igor Khashin, antigo presidente da Casa da Rússia e do Conselho de Coordenação dos Compatriotas Russos, e pela mulher, Yulia Khashin, funcionária do município setubalense, num gabinete criado para acolher os refugiados que chegam àquela cidade.

O jornal afirma que Igor Khashin, líder da Associação dos Emigrantes de Leste (Edintsvo), subsidiada desde 2005 até março passado pela câmara de Setúbal, e a mulher, terão, alegadamente, fotocopiado documentos de identificação dos refugiados ucranianos, no âmbito da Linha de Apoio aos Refugiados da Câmara Municipal de Setúbal.

Igor Khashin e a mulher terão também questionado os refugiados sobre os familiares que ficaram na Ucrânia. O jornal refere ainda que Igor Khashin é um dirigente associativo com dupla nacionalidade, que se apresenta como “gestor de projetos”, e que as associações a que terá estado ligado eram referenciadas nos sites da Ruskyi Mir e da Rossotrudnichestvo, instituições estatais criadas pelo Kremlin para divulgar a cultura e o mundo russos, mas que, segundo fontes citadas pelo jornal, “podem servir de cobertura a elementos dos serviços secretos” da Rússia.

Inna Ohnivets, a embaixadora da Ucrânia, disse no início de abril à CNN Portugal que “associações pró-russas têm uma ligação muito estreita à embaixada russa, e podem receber informações sobre os dados pessoais dos refugiados e também sobre os familiares que participam no exército ucraniano. E esta informação é interessante para a inteligência russa”, acrescentou. Na mesma altura, também a Associação dos Ucranianos em Portugal alertava "infiltrados pró-Putin em Organizações Não Governamentais (ONG) que apoiam os ucranianos".

A câmara de Setúbal já se explicou?

Sim. Num comunicado enviado ao SAPO24, o gabinete de André Valente Martins (CDU), diz que que retirou do acolhimento de cidadãos ucranianos a técnica superior referida pelo jornal e que vai pedir ao ministério da Administração Interna que proceda a uma averiguação sobre a receção de refugiados por russos alegadamente pró-Putin.

A autarquia disse também que, “após tomar conhecimento de afirmações proferidas, há duas semanas, pela Embaixadora da Ucrânia em Portugal relativamente a esta associação [Edintsvo], a Câmara Municipal de Setúbal questionou formalmente e no próprio dia, por ofício, o senhor Primeiro-ministro, pedindo que se pronunciasse sobre a veracidade destas declarações e esclarecesse com a maior brevidade possível se o Alto Comissariado para as Migrações mantinha a confiança nesta associação, não tendo obtido resposta até ao momento.”

Mais tarde, porém, o gabinete de António Costa veio dizer que, afinal, “a carta que o Presidente da Câmara Municipal de Setúbal dirigiu ao Primeiro-Ministro no passado dia 11/04/22 é um protesto sobre declarações prestadas pela Embaixadora da Ucrânia em Lisboa, à CNN, e foi reencaminhada para os efeitos tidos por convenientes para o MNE.”

“Na referida carta não é solicitada qualquer informação sobre a Associação EDINSTVO, nem sobre o cidadão Igor Khashin”, conclui uma nota enviada por São Bento.

Só acontece em Setúbal?

Não. Segundo o presidente da Associação dos Ucranianos em Portugal, há organizações com supostas ligações ao Kremlin pelo menos também em Aveiro, Albufeira e Gondomar.

Em declarações à Lusa, o presidente da Associação dos Ucranianos em Portugal disse hoje que há “por todo o país” elementos pró-Putin nas organizações que estão a acolher refugiados ucranianos, alertando tratar-se de um fenómeno que se repete em toda a Europa.

“Desde que os refugiados começaram a chegar a Portugal, em março, começámos a receber alertas de que tinham sido recebidos por pessoas de elementos pró-russos que se faziam passar por elementos de organizações internacionais e até ucranianas”, contou Pavlo Sadoka, garantindo que as denúncias chegaram “de norte a sul do país”.

Nestes encontros, os ucranianos acabados de fugir da guerra temiam pela sua segurança assim como dos familiares e amigos que tinham ficado no país, acrescentou Pavlo Sadoka.

A Associação dos Ucranianos em Portugal alertou “há mais de um mês, os serviços secretos portugueses (Serviço de Informações de República Portuguesa) para a presença de agentes infiltrados nas organizações que estavam a dar apoio aos refugiados e a recolher informações sobre as suas famílias”, disse.

“Os russos têm a melhor rede de espionagem de todo o mundo e utilizam todo o tipo de esquemas. Claro que nós não podemos provar, porque não somos nenhuma agência de investigação, mas a História diz-nos que esta é uma situação muito perigosa”, explicou Pavlo Sadoka.

Segundo o representante da associação, esta situação está a repetir-se por toda a Europa: “A Associação de Ucranianos em Portugal esteve reunida esta semana com outras organizações e vimos que é igual em toda a Europa”.

E estas câmaras já deram explicações?

Falou o presidente da câmara municipal de Aveiro, o social-democrata Ribau Esteves, que lembrou que foi “o primeiro político português a alertar que, no acolhimento aos refugiados, nem todos são pró-ucranianos”.

“O que eu disse é que havia em Aveiro cidadãos ucranianos a apoiar a chegada de refugiados que eram pró-russos, e nem tudo o que é ucraniano é bom, pelo que é preciso ter cuidado”, declarou à Lusa. “Estamos a falar de um país, a Rússia, que usa espionagem como nós usamos o ar para respirar e é preciso não sermos ingénuos porque estamos a falar de uma guerra, onde vale tudo menos tirar olhos e a Rússia é conhecida no mundo historicamente ser um país que trabalha bem a espionagem”, concluiu.

Ribau Esteves garantiu também que, desde que foi eleito, há oito anos, a câmara de Aveiro não concedeu qualquer apoio à Associação de Apoio ao Imigrante, alojada em São Bernardo, embora o tenha feito no tempo do seu antecessor, Élio Maia.

“Nós, em Aveiro, temos um interlocutor da comunidade ucraniana, o padre Vazil, pessoa a quem reconhecemos idoneidade e credibilidade e que nos ajuda a referenciar interlocutores complementares credíveis”, explicou o presidente da autarquia. A comunidade ucraniana é a terceira comunidade estrangeira mais numerosa na região, com quem a câmara de Aveiro prefere se relacionar através do pároco da Igreja Ortodoxa Ucraniana.

O que tem o PCP a ver com isto?

Foi o ‘Expresso’ que assinalou no título da sua peça que a situação estava a acontecer numa autarquia liderada pela CDU. O presidente da câmara municipal de Setúbal, André Valente Martins, do Partido Ecologista "Os Verdes", foi eleito pela lista da CDU (PCP/PEV/ID) nas últimas eleições autárquicas. Os outros municípios entretanto denunciados pela Associação de Ucranianos em Portugal são liderados por coligações do PSD/CDS-PP (Aveiro e Albufeira) e pelo PS (Gondomar).

Para o Iniciativa Liberal, no entanto, é importante perceber “se de facto nesta altura o PCP está a favor da paz ou está a favor do agressor”, disse a deputada Joana Cordeiro. Tal como o Chega, que aponta para o partido de Jerónimo de Sousa: “Setúbal não é comunista, não pode ser comunista nem pode ter esta visão pró-russa”, disse o deputado Bruno Nunes, eleito por Setúbal, em declarações aos jornalistas no parlamento.

O líder comunista, questionado se a situação pode prejudicar o PCP, disse desconfiar que “esse é o objetivo”. “A primeira pergunta que se coloca é de facto se isto é um caso único ou se existe uma generalidade de associações que são solidárias com os imigrantes”, respondeu, após questionado se o PCP vai acompanhar os pedidos de audição no parlamento do presidente da câmara de Setúbal anunciados por quase todos os partidos. “Portanto não percebemos o enfoque em relação à câmara” de Setúbal, acrescentou.

Questionado se esta é uma questão sensível, dado que os dois países estão em guerra, o secretário-geral do PCP referiu que “aquela associação, aqueles que lá estão associados convivem bem uns com os outros”, ressalvando no entanto não ter “informações precisas”.

E agora?

Vários partidos chamaram já o presidente da câmara de Setúbal ao parlamento para esclarecer a situação. Todos os partidos com representação na Assembleia da República reagiram.

Para além da reação do gabinete de António Costa ao comunicado da câmara de Setúbal, também a secretária de Estado da Igualdade e Migrações enviou hoje ao Alto Comissariado para as Migrações (ACM) um pedido de esclarecimento na sequência destas notícias.

Em comunicado, o gabinete da secretária de Estado Sara Guerreira indica que o pedido foi dirigido à alta-comissária, Sónia Pereira, com caráter de urgência. A secretária de Estado “pediu também esclarecimentos aos parceiros locais do ACM, como a Rede de Centros Locais de apoio à integração de migrantes e associações locais”, acrescenta o comunicado.

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