Prefácio
Como É Que É Ser Um Morcego? foi publicado há 50 anos na The Philosophical Review (Outubro de 1974). Nele tentei mostrar que a subjectividade irredutível da consciência é um obstáculo a muitas das soluções propostas para o problema mente-corpo. Desde então, a consciência tornou-se gradualmente um tópico central de debate em filosofia, psicologia e neurociência, e os problemas especiais suscitados pelo seu carácter distintivo têm recebido a maior atenção. Não há concordância sobre como lidar com esses problemas: algumas pessoas acreditam que a consciência pode ser arrumada numa visão materialista do mundo; outras, entre as quais me incluo, acreditam que a realidade da consciência implica que as ciências físicas dêem uma descrição incompleta da ordem natural; outras ainda acreditam que a nossa concepção comum da consciência pode ter de ser abandonada ou revista se for incompatível com o materialismo.
Talvez por ter apresentado o problema usando um exemplo particularmente vívido, o ensaio tornou-se uma referência-padrão em muitos destes debates e nas teorias que eles geraram. No início dos anos 70, eu tinha uma casa de campo, na Pensilvânia, e os morcegos faziam os seus ninhos nos madeiramentos. Ao anoitecer, saíam para ir caçar o jantar, mas ocasionalmente um deles perdia-se e acabava por entrar na casa, provocando-me uma experiência alarmante de contacto íntimo com uma criatura alienígena. Suponho que o morcego sentiria o mesmo.
Pensar no morcego tornou-se parte das minhas reflexões correntes sobre o problema mente-corpo e ajudou-me a desenvolver uma nova forma de o formular. Ao chamar a atenção para algo que não sabíamos e não podíamos saber sobre a experiência do morcego – nomeadamente como é que era para o morcego –, apesar de podermos estar confiantes de que o que não sabíamos era real, tinha a esperança de levar as pessoas a reconhecerem que havia mais na mente do morcego do que aquilo que podia ser captado por uma descrição fisiológica ou comportamental do tipo que, em princípio, nos é acessível através da observação. E ao explicar porque é que esta característica da experiência do morcego era inacessível para nós, esperava definir o seu carácter crucial e essencialmente subjectivo.
O ensaio foi concebido como uma contribuição para a discussão do problema mente-corpo, e a questão do morcego era apenas um passo subsidiário na argumentação para a conclusão principal – em particular, que a subjectividade da consciência constitui um obstáculo à redução do mental ao físico. Mas o morcego ganhou vida própria e tornou-se uma referência-padrão noutra área de debate que foi gradualmente ganhando proeminência durante o mesmo período – o tópico da consciência animal. Tal como aconteceu, posso ter contribuído de outra forma para tornar esse tópico cientifica- mente respeitável. Em 1973-1974, fui professor visitante na Universidade Rockefeller e um dos seus luminares era Donald Griffin, o zoólogo que tinha descoberto a ecolocalização nos morcegos. Concordou gentilmente em encontrar-se comigo e tivemos longas conversas não só sobre morcegos, mas sobre a consciência animal em geral e a relutância dos biólogos e psicólogos em falar sobre ela ou mesmo em reconhecê-la. Ficou convencido de que se tratava de um assunto importante e negligenciado, e o resultado foi o seu livro The Question of Animal Awareness, que teve uma influência significativa, levando as pessoas a pensar o tema de forma séria. Actualmente, este campo progrediu ao ponto de existir uma vasta investigação sobre a consciência e a cognição não só de mamíferos e aves, mas também de peixes, moluscos e insectos.
O meu ensaio é por vezes mal interpretado, como se nele se afirmasse que, pelo facto de o carácter subjectivo da consciência estar fora do alcance das ciências físicas objectivas, estaria também fora do alcance da compreensão científica. Pelo contrário, creio que o que ele mostra é que a compreensão científica não se deve limitar ao tipo de teoria de uma realidade externa objectiva, baseada na observação partilhada, que caracteriza as ciências físicas. A realidade da consciência requer uma expansão das nossas ideias científicas para acomodar o que não está de acordo com a concepção física de objectividade.
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