I

A ilha amanhece escura, escondida debaixo do seu lençol nebuloso. É como se uma preguiça a tomasse na sua cama atlântica. Os pássaros mantêm a sinfonia que lhes agrada, apitando alto no plano que se prolonga da enseada vulcânica onde os corvinos decidiram erguer a vila.

Na estrada para o Caldeirão, veem-se cá de baixo as carrinhas descendo a escarpa dum verde grave, que se afoga no cinzento do céu. Hão de ter ido às vacas. É que lá em cima, são elas as donas da ilha. O povoado concentra-se numa breve língua de terra rochosa, junto dos únicos pontos onde a orografia permite a entrada na ilha (embora sem facilidade).

As vacas são bicho novo por aqui. O pasto era das ovelhas, donde vinha a lã para as boinas. O gado ovino foi desaparecendo; e, no final dos anos 1960, já a produção de vacas (que fornecem leite, carne e vitelos) tinha empurrado — por vezes de modo literal — as ovelhas pelas escarpas.

É manhã. Domingo de Pentecostes. Vejo tudo isto da janela do Hotel Comodoro. E enquanto observo a vida da ilha, nos preparos para a procissão e sopas do Divino Espírito Santo, lembro-me de pensar em distâncias e dimensões. O Corvo é perto; o Corvo é grande.

créditos: PEDRO MARQUES / MADREMEDIA

II

“Nas noites de lua cheia, se fores ao caldeirão vês o fumo das fábricas na América”, diz um homem à porta do BBC — Bar dos Bombeiros do Corvo. A piada serve para se meter com os continentais que ali vão à procura do futebol. No Porto, a seleção nacional pôs-se a medir forças contra os holandeses. Fosse o século outro e o confronto poder-se-ia estar dando neste Atlântico infinito que se avista da esplanada.

A gente quase vê a América. Do outro lado do mar, “na passagem de ano”, continua o homem, “dá para ver o fogo de artifício em Nova Iorque”. Não se vê nada. Mesmo com o céu limpo, a única evidência de terra que se avista deste navio fundeado a meio caminho entre mundos são as Flores.

A imagem é surreal: no horizonte marítimo, uma montanha. À noite, veem-se as luzinhas do presépio florentino. A um continental como eu, ainda por cima costeiro, a visão parece saída de uma realidade distinta. O mais parecido de que tenho imagem são as Berlengas, ali a planar sobre o horizonte de Peniche em dias de bom tempo.

Aqui a distância é à beira duns vinte quilómetros. A omnipresença daquela baleia de bojo alto na paisagem corvina podia apequenar. Mas não: liga-nos a uma terra e rompe o isolamento: não estamos sós na periferia.

créditos: PEDRO MARQUES / MADREMEDIA

III

É véspera do 10 de junho. Aqui no BBC, estamos como se estivéssemos noutro café qualquer, doutra vila qualquer de Portugal. Os portugueses são-no em toda a parte. E Portugal é-o em todos os territórios em que existe: ilhas e continente; embaixadas e embarcações.

Isso nota-se no entusiasmo com que aí umas duas dezenas de corvinos e forasteiros assistem num ecrã gigante a um jogo que acontece no continente, na cidade Invicta — a Liga das Nações. Há fumo no ar: aqui fuma-se. Há Sagres e Super Bock sobre as mesas. Há gritos que quase se ouvem no outro lado do Atlântico. Há sustos e braços no ar (e mãos na cabeça).

O Guedes marca. As mesas tremem, numa explosão de “Golo!”. O sotaque corvino celebra tal qual há de ter celebrado o sotaque alentejano, algarvio ou minhoto.

O jogo está a ser projetado numa tela enorme. As colunas espalhadas pela sala entoam alto o som da RTP. Não vem ao caso, mas será por ventura interessante saber que a emissora pública tem aqui no Corvo um único representante. É toda a imprensa que está na ilha todos os dias.

Exceto, claro, nestas alturas: nestes dias em que vêm para aqui equipas inteiras para levar as histórias da ilha. Este domingo, cinco jornalistas do continente andaram a ver fazer a sopa; a ver vestir as rainhas; a ver montar a procissão; a ver a procissão; a ver a missa; a ver o almoço; a ver a bola.

A nossa missão aqui não é contar o que é o Corvo. Isso cabe aos corvinos, que são eles quem conhece a terra. Nós vemos e ouvimos — às vezes só especados a um canto; às vezes a conversar, a rir, a trocar ideias.

Mas no final (do dia ou do jogo), o éter que nos une é o mesmo: Portugal. O orgulho grita de idêntica forma, mesmo que na rotunda que faz as vezes dos Aliados ou do Marquês de Pombal só sobrevoem cagarros.

créditos: PEDRO SOARES BOTELHO / MADREMEDIA

IV

O Corvo não é uma ilha. O Corvo não é uma ideia. O Corvo tampouco há de ser um modo de viver. O Corvo é Portugal. O Corvo é Cárquere; o Corvo é Cantanhede; o Corvo é Cascais. Só que este pedaço de Portugal está num refúgio encantando, num verde virgem e sentimental, com as vacas felizes e o vento cortante; com as tradições que lhe são suas e as gentes que são tudo.

O Corvo não é menos nem mais que o resto. O Corvo é só a prova de que Portugal é enorme.