A humanidade arranja sempre uma maneira de manter o bom humor durante períodos menos felizes. Com a Internet e as redes sociais, é extremamente fácil colocar uma piada no mundo; e a piada espalha-se e transforma-se, influencia outras piadas, coloca risos onde, dantes, só uma expressão de pedra acinzentava o rosto. Capicua disse-o bem, durante o seu direto: hoje temos memes, rebentando em cada canto do mundo como uma granada. Temos a originalidade dentro de nós. Quem não sabe mais como há de passar o seu período de isolamento, inventa – canta à janela, disfarça-se de dinossauro, debita relatos futebolísticos em cozinhas onde se prepara um chocolate quente...

Um vídeo é colocado na rede e, dependendo do número de pessoas que com ele se ria ou se identifique, torna-se “viral” (sendo que, doravante, será melhor não utilizar mais esta expressão, pelo menos até que o choque passe). Ideias fervilham no terreno fértil que é o tédio. Cláudia Pascoal, como nenhum artista até agora no Festival EuFicoEmCasa, teve uma brilhante: transformou-se em desenho animado, cabelo verde, t-shirt do mítico “Dragon Ball Z”, uma saudação num ecrã que era na verdade uma gravação num ecrã, antes de a vermos sentada numa cadeira balouçante que a deixou cada vez mais desconfortável ao longo do seu concerto. «Arrependi-me logo», confessou.

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Não nos arrependemos nós de a ver, a brincar como se tudo isto – esta pandemia, esta emergência – fosse território dos adultos e exclusivamente dos adultos: eles que a resolvam, nós queremos é ficar aqui sem crescer. Nós queremos tudo: 'Ter e Não Ter'. Queríamos, também, que o seu álbum tivesse sido lançado esta sexta-feira, mas por forças maiores esse lançamento foi adiado por uma semana. Assim como os habitantes da Covilhã queriam ter podido vê-la, em palco, num concerto marcado para esta noite, que obviamente não se realizou.

Mas falávamos de brincadeira. Falávamos de Cláudia Pascoal, que em 'Viver' até chama para junto de si Samuel Úria, numa chamada telefónica que era de facto uma partida: estava tudo combinado, era uma gravação. Como nenhum outro artista ao longo deste evento, Cláudia olhou para as possibilidades do Instagram e pensou: vamos gozar um pouco com isto. Uma coroa de pontos de exclamação virtuais indicava o título do seu disco. Um erro na letra de uma canção desagua num vira, e acaba no clássico mic drop do hip-hop. Um karaoke 'Espalha-Brasas' aproximou-nos ainda mais das noites de bebedeira com os amigos. E 'Tanto Faz', com o seu headbanging metaleiro, encheu-nos as medidas. Cláudia Pascoal foi puro cristal e reflectiu no céu um novo ideal: vamos safar-nos disto, pelo que até lá sigamos curtindo a vida.

A mesma mensagem teve Pedro Abrunhosa, de forma bastante mais séria. O músico portuense falou mais do que cantou, mas da forma correta: não como alguém que nos quer dar lições de moral, mas como um patriarca a acariciar-nos o rosto e a enxugar-nos quaisquer lágrimas que pudéssemos ter. E de forma poética: «É nestas alturas que nos revelamos. Só nos revelamos perante o abismo». Ou seja: é quando batemos no fundo que queremos saltar o mais alto possível, para o exterior ou 'Para os Braços da Minha [Nossa] Mãe'.

Não que Abrunhosa tenha sido sempre sério, e o seu público com ele: ao vê-lo a cantar de lábios encostados ao microfone, houve quem o lembrasse de que o objeto em questão teria de ser muito bem limpo após o concerto. Ao perceber que errou uma nota, troçou de si mesmo: «Este Covid miserável obrigou-me a reaprender as músicas todas, mas não o suficiente...». Repescou 'Vem Ter Comigo Aos Aliados' e a “velhinha” 'É Preciso Ter Calma'. Mas foi quando falou do coração que mais o sentimos, deixando um recado aos millenials («o 25 de abril é isto, termos um SNS para todos e que não pede nada»), e outro à humanidade: «Deixou de haver regiões, clubes de futebol, partidos, fronteiras, cor de pele. Somos todos iguais, todos fomos atingidos. No final disto tudo vamos todos celebrar, temos todos razões para nos abraçarmos e voltarmos a viver a vida com a banalidade que ela tinha, mas agora com uma forma profunda».

(Meditemos nestas palavras uns segundos antes de continuar)

Na mesma cidade, Capicua manteve essa toada, trazendo a guitarra portuguesa de 'Passiflora' e dedicando 'Circunvalação' aos Portuenses (“P” maiúsculo, claro está), com menção à mais bela das freguesias dessa cidade, a grande Cedofeita (sem desprimor para as outras), e acrescentando ainda ao alinhamento – e para as mães – 'Parto Sem Dor', de Sérgio Godinho. Foi uma das representantes do hip-hop neste quarto dia de festival: o primeiro foi Agir, que até começou por se mostrar com uma guitarra elétrica nos braços antes de cantar 'Até Ao Fim', 'Mountains' ou 'Respirar'. Quem sabe se não o veremos, um dia, a tocar num qualquer festival de heavy metal.

De metal, só as cordas das guitarras que se foram escutando ao longo do dia, sobretudo a de Frankie Chavez, um blues que range como se “Paris, Texas” tivesse sido filmado em Cuba, Alentejo. O músico ainda contou com dois convidados especiais: os filhos, em melódica e percussão. A guitarra de Sean Riley não lhe ficou atrás, mas acabou por sofrer bastante com a ligação: a meio de um tema novo e que ainda se encontra a ser trabalhado, o direto foi abaixo. E também há que mencionar Marco Rodrigues, que para além da sua trouxe uma outra guitarra: a de um primo, “forçado” a passar este período na casa do fadista, e que o ajudou a cantar um tema dedicado ao famoso “Senhor do Adeus”.

A abrir este quarto dia, Tomás Wallenstein trouxe um fato, um piano, e canções de B Fachada ('Responso Para Maridos Transviados'), de Luís Severo ('Amor e Verdade') e, claro, dos Capitão Fausto ('Boa Memória'). O Alex Turner de Alvalade. Armada de um cavaquinho, Catarina Munhá mostrou os temas do seu disco de estreia, “Animal de Domesticação”, de 2019. E Kalú trocou-nos as voltas: pensávamos nós que o iríamos ver na sua conta pessoal no Instagram, e foi na conta oficial dos Xutos que o apanhámos, dez minutos passavam da hora marcada. Serviu para o ver longe do seu elemento natural, a bateria, rodeado de teclados, computadores, e de um cachecol do Futebol Clube do Porto.

Tal como os de Frankie Chavez, os filhos de Nelson Freitas também tiveram direito à sua fama, cedendo-lhe a cantoria mas não renegando alguma dança ao ritmo africano – sendo claro que tarraxar em época de quarentena não é nada aconselhável. Pedro Mafama abriu-nos as portas da sua despensa e do seu 'Jazigo', enquanto mandava beijos e abraços para meio mundo, e Stereossauro navegou por entre beats e 'Verdes Anos', no cruzamento entre Portugal e futuro com o qual se deu a conhecer.

O EuFicoEmCasa prossegue este sábado com concertos de Luís Severo, Benjamim, Rui Massena, Héber Marques, Carolina Deslandes, Legendary Tigerman e Ana Bacalhau, entre outros.

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