Florence, nascida rica em 1868, faleceu em 1944 sem chegar a tomar conhecimento de que a sua gloriosa carreira de cantora lírica não era mais do que uma piada entre um grupo fechado. Em parte, porque tinha dinheiro para manter a sua mania, em parte porque encontrou um marido de uma dedicação canina – o actor inglês St. Clair Bayfield – Florence conseguiu fazer uma espécie de carreira, que culminou com uma apresentação na sala de espectáculos mais prestigiosa dos Estados Unidos, o Carnegie Hall.

Evidentemente que a brincadeira não podia chegar a tão grandes proporções; quando a má qualidade do canto de Florence chegou a um público que não tinha inclinação para ser enganado, nem sentido de humor para a qualidade, a verdade saiu em todos os jornais. Quando soube, Jenkins teve um ataque cardíaco e morreu um mês depois, mal acreditando na injustiça que lhe tinha sido feita. A história desta cantora sem talento musical pode ser vista nos cinemas no filme "Florence, uma diva fora do tom", ainda em exibição em Portugal.

Ora bem, nós portugueses, que sempre nos achamos menores no campo das artes, mesmo quando são artes tragicómicas, também tivemos a nossa diva ridícula! Mantidas as proporções, Natália de Andrade, foi até uma cantora mais surreal do que Florence.

Natália é mais recente; nasceu em 1910 e faleceu em 1999. Logo aqui, há muito a seu desfavor, uma vez que apanhou uma época de maior divulgação musical, com um público mais vasto a aceder aos meios de reprodução – rádio, discos, televisão e suportes digitais. O “mundo lírico” já incluído no mundo musical como um todo.

Outras duas situações jogaram ainda mais contra ela, em relação a Florence; Natália era muito pobre e nunca teve um marido que a apoiasse e protegesse do mundo cruel.

Filha de uma cantora, Maria de Andrade, estreou-se num concerto da mãe no Casino de Espinho, em 1936. Com a morte do marido e pai, as duas Andrade ficaram numa situação económica muito difícil, vivendo na pobreza, dependentes da generosidade de amigos. Parece que Maria de Andrade cantava razoavelmente – pelo menos não desafinava – e apresentou-se em público até perder a voz.

Natália, depois daquela apresentação em Espinho nunca mais se calou, mas só viria a gravar um disco muito mais tarde, em 1964. Desafinava muito a cantar, mas achava-se, de facto, fantástica e tinha a postura de uma diva. Numa dada altura, como já via mal, alguém sugeriu que usasse óculos. Resposta de Natália: “Acha que eu vou usar óculos, sendo a Maria Callas uma aprendiza ao pé de mim?”

Segundo os testemunhos e algumas aparições na televisão, ela não andava; flutuava enquanto fazia gestos com os braços e levantava o queixo altivo, como uma diva. Sempre sorridente, feliz, simpática com o pequeno grupo de fãs que a aplaudia compassivamente, mas que também se divertia à sucapa.

Marcou presença no programa de artes de Carlos Pinto Coelho, “Acontece”. Depois, Júlio Isidro convidou-a para o seu programa musical, “Passeio dos Alegres”, onde fez uma apresentação tão ridícula que algumas pessoas do público tiveram de sair do estúdio para não estragar tudo com os risos.

O grande sucesso – se assim se pode dizer – veio em 1996, com Herman José, que fez troça de uma de suas músicas, “O nosso amor é verde”, e a convidou para o programa.

No mundo musical e da rádio, os profissionais evitavam dar a sua opinião sobre Natália. Não a queriam magoar, pois tinham consciência da sua sinceridade e pena da sua pobreza, ao mesmo tempo que não viam razão para lhe estragar o sonho de grande diva.

Olga Prates, na altura na Suíça, limitou-se a dizer que uma canção de Natália seria transmitida... no dia 1 de Abril.  O pianista Adriano Jordão salientou a raridade e dificuldade de haver edições álbuns de artista. E Carlos Pereira falou do fascínio da diferença, “o mesmo que provocam certos músicos de rock que destroem as guitarras ou pegam fogo ao palco”. Outra afirmação era que “ela sabe música e vai escrupulosamente atrás das partituras e palavras”.

Natália de Andrade mereceu um registo cinematográfico, com o documentário “A Diva tragicómica”, de Catarina e João Gomes, de onde retirámos estes depoimentos.

Feito com o material existente, que inclui uma apresentação particular e as presenças na televisão, o documentário vale a pena ser visto. Apenas Armando Carvalhêda, da Antena 2, assume que nunca esteve disposto a suportar o embuste caridoso: “Disse-lhe que não gostava e ela virou-me as costas, nunca mais me falou”.

Ficamos também a saber que a diva teve um fim de vida descansado, num asilo da Fundação Sarah Beirão, onde deixou saudades.

Mas o documentário também mostra um aspecto que transcende o caso de Natália, para se focar na questão mais abrangente da ética. Júlio Isidro, reconhecendo a “originalidade” da falta de ouvido de Natália, trata-a com respeito e compaixão. Mas Herman José, que se tantas vezes usou o seu brilhante intelecto e reacção rápida para fazer troça dos entrevistados, reconhece que Natália foi um dos seus alvos. Depois pergunta a si próprio se é “decente” fazê-lo; acaba por considerar que sim, em nome do humor.

Ora bem, o humor, que é uma faceta particular da inteligência – a capacidade de ver as coisas, inclusive a si próprio, com um recuo crítico e sentido do ridículo, - o humor não é um dado ético válido. Não justifica a maldade, nem a falta de compaixão. Não vale tudo, só porque é engraçado.

Felizmente Natália de Andrade, tal como Florence, não via a maldade. Se era por pouca inteligência ou por conveniência, não interessa. O que interessa é que ela teve, sabe-se lá como, a capacidade de viver com sinceridade um sonho muito superior à vida menos afortunada que lhe calhou. Ao vermos as suas interpretações inacreditáveis, o que nos move não é a troça, nem a pena, mas a partilha da sua felicidade. E é por essa atitude única que Natália de Andrade merece ser lembrada.

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