Ei-la de cabelos negros compridos e vestido simples, a dedilhar uma viola, enquanto o timbre soprano entoava algumas das baladas mais comoventes da sua geração. É esta a imagem de marca de Joan Baez, nos anos 60, quando se apresentou ao mundo como artista. Entre o folk e a música de intervenção, a presença da cantora era quanto bastava para encher o palco nos espetáculos onde era preciso usar apenas um holofote: aquele que incidia sobre si. Nascida há exatamente 80 anos, serena mas distinta, e de voz afinada para cantar mas também para mover todos os que a ouviam, Baez vir-se-ia a tornar uma das artistas mais conceituadas e socialmente interventivas dos Estados Unidos.
Do ukulele à Madona dos Pés Descalços
Tudo começou com um ukulele, oferecido por um amigo do pai, e pela vontade de praticar músicas de Pete Seeger, depois de um concerto ao qual foi com apenas 13 anos. O pequeno instrumento de cordas rapidamente passou a uma guitarra acústica. E a estada na Faculdade de Boston não duraria mais de seis semanas, já que os livros pareciam ter menos interesse do que os concertos improvisados feitos à hora de almoço, onde, explicou Baez num documentário da PBS, "recebia muita atenção". De café em café, e de melodia em melodia, dava os primeiros passos com músicas como "Barbara Allen". "Aquelas canções eram tristes, e longas, e maravilhosas e ali estava eu", contou a cantora.
A fronteira entre as décadas de 50 e 60 seria também a fronteira entre o anonimato de Joan Baez e o momento em que foi considerada "a grande revelação" do Newport Folk Festival. Foi em 1959 que subiu ao palco deste evento, ao lado da estrela do folk Bob Gibson, para cantar temas como "We Are Crossing The Jordan River". O momento foi "o mais aterrorizante" da sua vida, mas valeu-lhe o título de Rainha do Folk ou Madona dos Pés Descalços. Cinquenta anos depois, a cantora voltou a ser um dos nomes deste festival, mas desta vez com os joelhos menos dormentes.
Seguiu-se a era de ouro, literalmente. Os seus primeiros três álbuns tornaram-se discos de ouro: "Joan Baez", em 1960, "Joan Baez v.2", um ano depois, e "Joan Baez in Concert", em 1962. Mas o sucesso que a levou Baez a ser capa da revista Time, neste último ano, não foi o suficiente para evitar os ataques de pânico constantes que tinha nos concertos. Durante os espetáculos, interrompia as canções e ia para o backstage chorar e lavar a cara com água fria, até ter estofo para voltar para o palco e retomar exatamente na nota onde tinha ficado. Aquela que, à época, já era uma referência, confessou que lutou "contra isso [a ansiedade] durante anos e nunca ninguém soube".
Um outro uso da voz
Joan Baez é um ícone musical, mas a sua visibilidade foi muito para além disso. Ao longo os conturbados anos da segunda metade do século XX, destacou-se pela sua intervenção no que toca a questões sociais, chegando até a ser um elemento-chave na fundação da Amnistia Internacional nos Estados Unidos, nos anos 70. Enumerar todas as causas nas quais se envolveu a artista dá direito a uma lista infindável, que inclui a defesa pelos direitos LGBT, a oposição à pena de morte, a luta contra a violação de direitos humanos nos locais mais remotos do mundo, ou a oposição a Donald Trump com a música Nasty Man. De forma clara e sucinta, uma coisa é certa: esta é uma característica que transparece em inúmeras letras de músicas de Baez.
A cantora diz que "se assumimos o compromisso de cantar canções com significado, também temos de assumir o compromisso de apoiar as vidas que suportam isso". Durante período de Guerra Fria, não poucas foram as vezes que Baez demostrou as suas posições políticas contra a ação do governo norte-americano. A música "With God On Our Side", parte da performance do famoso concerto no BBC Theatre, em Londres em 1965, deixa pistas sobre esta posição. A cantora introduziu a música com um discurso sobre a violência militar. "Um dos maiores problemas do mundo hoje em dia é que todos os países acham que têm Deus do seu lado. Enquanto toda a gente tiver essa atitude não vai funcionar. Eu acho que Deus não pode estar do lado de alguém que lança bombas", afirmou.
Exemplo deste espírito quase militante foi a oposição à guerra do Vietnam. Durante o boom do flower power e da filosofia peace and love, em pleno Woodstock, em agosto 1969, "We Shall Overcome" foi uma das músicas escolhidas para, mais uma vez, marcar posição. No mês anterior, o então marido de Baez, David Harris, tinha sido preso por resistência ao alistamento de jovens no exército norte-americano.
Mas o tema "We Shall Overcome", que é originalmente um hino dos direitos civis negros, serviu como música de protesto em várias ocasiões. Em 1965, a canção já era parte do reportório levado por Baez no emblemático espetáculo na capital britânica. O coro do público de classe média-alta caucasiana que acompanhou a cantora fazia-se ouvir ao mesmo tempo que se agudizavam as tensões raciais nos Estados Unidos. Joan Baez interpretou no mesmo concerto o tema "Oh Freedom", uma música afro-americana pós-guerra civil. A artista chegou mesmo a caminhar ao lado de Martin Luther King em marchas pelos direitos civis dos negros.
Baez atuou ainda na Marcha dos Direitos Civis em Washington, em 1963, num dueto com Bob Dylan. Os dois artistas já tinham estado juntos antes e juntar-se-iam inúmeras vezes ao longo das suas carreiras, fazendo tournés juntos e cantando as mesmas músicas, como é o caso de "Don't Think Twice Is All Right". O vídeo de 1965, mostra Baez a cantar o tema "Percy's Song", enquanto Dylan tecla numa máquina de escrever.
"Eu acho que sou anti-casamento"
O cantor Prémio Nobel da Literatura foi letrista de várias canções da Rainha do Folk, que chegou a gravar um disco no qual todas as músicas eram escritas por Dylan, "Any Day Now", de 1968. É neste álbum que está presente a música "Love Is Just a Four-Letter Word" (O Amor É Apenas Uma Palavra de Quatro Letras). Coincidência ou não, a música foi lançada depois de terminado o namoro entre os dois cantores.
Bob Dylan foi um dos parceiros amorosos mais conhecidos de Joan Baez, a par do fundador da Apple, Steve Jobs, com quem teve uma relação no início dos anos 80. Entre estas duas relações, esteve casada com o jornalista David Harris, de 1968 a 1973. Os dois ativistas conheceram-se em 1967, quando estiveram presos na Cadeia de Santa Rita, por se oporem à admissão militar de jovens em período da guerra do Vietnam. Apesar de ter sido casada, a artista sempre fez notar o seu espírito livre no que diz respeito ao amor. Nos tempos de faculdade, quando ainda cantava em cafés, interpretou uma música chamada "I Will Never Merry" (Eu Nunca Vou Casar) e, em 1965, cantou o tema de Bob Dylan "It Ain't Me, Babe" (Não Sou Eu, Amor), depois de dizer: "eu acho que sou anti-casamento".
"O povo é quem mais ordena, dentro de ti, ó cidade"
Na bagagem, houve sempre espaço para uma viola. Nas palavras, ficou sempre claro o lema da liberdade, ou não fosse a música "Donna, Donna" uma das mais populares, onde a artista pergunta: "Porque é que não tens asas para voar como a andorinha tão orgulhosa e livre?". A canção foi a primeira a abrir um dos últimos concertos de Joan Baez em Portugal, no Coliseu dos Recreios, em 2015, o mesmo concerto onde cantou a "Grândola Vila Morena". O feito repetiu-se no último concerto em Lisboa, em 2019.
Não foi a primeira vez que a artista cantou em português. Baez interpretou ainda a música "Te Adoro". O mesmo faria com músicas em francês, como é o caso de "Plaisir d'Amour", ou em espanhol, com o álbum "Gracias A La Vida", com músicas de vários artistas sul-americanos, uma delas da chilena Violetta Parra, que dá título ao álbum, e temas icónicos para o México como a "La Llorona" ou para Cuba como "Guantanamera".
Filha de pai mexicano e mãe escocesa, a cantora fez uma versão de "Mary Hamilton", uma balada da Escócia do século XVI. Irmã do meio, de três irmãs, Baez confessou achar "que a sua família era diferente e especial". "A minha mãe era mais bonita do que qualquer pessoa. O meu pai era mais inteligente do que qualquer pessoa. E eu acho que isso é uma boa maneira de crescer", acrescenta. As suas irmãs Mimi Fariña e Pauline Marden também fizeram da música carreira, mas nunca atingiram o sucesso de Joan Baez.
Com 80 anos de vida e mais de 60 anos de carreira, são incontáveis as músicas que tornaram Joan Baez igual a si mesma, como é o caso "Diamonds and Rust", do albúm, com o mesmo nome, que se tornou o seu trabalho mais vendido. Sem esquecer as dezenas de temas que adaptou de outros artistas, tais como "Blowin' in The Wind", de Bob Dylan ou "No, Woman, No Cry", de Bob Marley, ou outros trabalhos como a banda sonora do filme "Silent Running". Em 1980, a artista recebeu o título honorário de Doutora em Letras e Humanidades pela Antioch University e pela Rutgers University, pela sua intervenção enquanto ativista política. A cantora venceu ainda um Grammy Lifetime Achievement Award, em 2007. Dez anos depois, a sua memória ficou marcada no museu Rock and Roll Hall of Fame, em Cleveland, nos Estados Unidos.
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