Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti nunca pensou que existisse tanta comida na Bíblia. Um dia, enquanto falava à mesa com Tolentino Mendonça, agora cardeal e na altura apenas padre, surgiu a ideia de estudar a alimentação através deste livro.

Do Antigo ao Novo Testamento, as referências são constantes, mas há alimentos que se destacam: o pão, o vinho, alguns tipos de carne e também peixe. A ligar tudo isto, a figura de Jesus, que vem atirar por terra algumas das regras vigentes na altura.

Para a autora do livro "A Mesa de Deus" — que demorou 10 anos até estar concluído —, cozinhar é "transformar a natureza" e, atualmente, há ainda muito a aprender com o que se fazia há milénios. Afinal, tudo era mais saudável e a simplicidade à mesa tem muito de benéfico, diz a cronista do jornal Folha de Pernambuco e investigadora gastronómica.

Mas também há alguns pormenores que ainda se mantêm nos dias de hoje. O cabrito da Páscoa é uma das coisas, e o pão e o vinho querem-se sempre à mesa. Mais do que uma história de um povo, a Bíblia vem registar também alguns princípios da afamada dieta mediterrânica — que não deixou também de ir até ao Brasil, de onde a autora falou com o SAPO24.

"A cozinha também é um espaço de experiências, um espaço de incertezas, um espaço de criação e, sobretudo, um espaço de transformação"

Na introdução, Tolentino Mendonça diz que este livro é uma entrada na Bíblia pela porta da cozinha. Enquanto leitora e enquanto autora, o que viu quando abriu esta porta?

Essa imagem de D. Tolentino, no prefácio do livro, foi muito bonita. Frederico Lourenço diz que um dos livros mais fascinantes que existem é a Bíblia, independentemente de se ter ou não ter fé. E eu entrei nesse livro fascinante tal e qual como ele disse: pela porta da cozinha.

A cozinha é esse espaço mágico onde tudo começa a acontecer. É um lugar de aprendizagem — e quem disse isso foi um pensador brasileiro, chamado Ruben Alves, que diz que no processo de aprendizagem tanto aluno como professor deviam fazer estágio numa cozinha, porque ali teriam lições preciosas de química, de física, de economia, de matemática. Acho que em nenhum outro lugar se aprende tanto a somar, diminuir, multiplicar e dividir. Mas a cozinha também é um espaço de experiências, um espaço de incertezas, um espaço de criação e, sobretudo, um espaço de transformação. Cozinhar é exatamente isso: transformar a natureza.

Eu nunca tinha lido a Bíblia antes, li-a agora quando me propus a fazer essa pesquisa e depois, consequentemente, o livro. Foi uma experiência fascinante. Sou católica, procurei fazer um trabalho completamente independente. Está ali o que está porque está na Bíblia, não emiti nenhuma opinião. Mas ter entrado por esta porta foi fundamental para a minha vida e para este meu trabalho.

"Tantas foram as refeições em volta de Jesus e em volta da mesa que Ele foi chamado de glutão e de beberrão"

Vamos ao título do livro, “A Mesa de Deus”. Mas “uma mesa não é só uma mesa". É o quê?

Isso Jesus compreendeu muito cedo. Na altura tinham várias restrições; tinham coisas proibidas, coisas permitidas. E Jesus não deu importância a nada disso, porque Ele percebeu que a mesa é um dos principais fundamentos da sociedade. A mesa é símbolo de união, de comunhão, de partilha. E então Jesus pregou, durante toda a sua passagem, a união de todos.

Aliás, até mais do que a união: a inclusão de todos em volta da mesa. E claro que, fazendo isso, rompeu grandes tabus sociais. Mas Ele juntou à sua volta e à volta dessa mesa homens e mulheres, porque na época a mulher não tinha voz para absolutamente nada, ela devia obediência ao pai e depois de casada ao marido. Ele juntou também ricos e mendigos, santos e pecadores, sãos e doentes. E tantas foram as refeições em volta de Jesus e em volta da mesa que Ele foi chamado de glutão e de beberrão. Mas nas suas pregações Ele compreendeu a importância da mesa, como símbolo de união, partilha.

Será que faz falta sentarmo-nos mais à mesa?

Acho que sim. As pessoas têm muito menos tempo. Há coisas diferentes. As mulheres, que era quem dantes tomava conta das cozinhas, digamos assim, hoje têm de trabalhar, de conciliar a vida do trabalho com a vida de casa. Então as refeições ficaram cada vez mais simplificadas, compra-se comida pronta para colocar na mesa, ninguém tem tempo de sentar a família toda em volta da mesa.

Eu faço muita questão disso, então todas as principais festas e todos os fins de semana, pelo menos num dia, reunimo-nos todos em volta da mesa. Ali resolvem-se arestas, ali projeta-se o futuro, ali conversa-se sobre o passado. É uma experiência fascinante.

Tenho a certeza que é a falta de tempo e a falta de preocupação de repartir e de dividir com os outros que está provavelmente a contribuir para este desassossego que o mundo está vivendo agora. São vários focos de guerra, cada vez está mais distante que todos tenham na sua mesa o mínimo de subsistência. O que acontece é que as pessoa estão sem tempo e sem perceber que é exatamente nesse tempo em volta da mesa que muitas coisas podem ser resolvidas.

"O Papa Francisco é também um glutão, como Jesus foi chamado. Aprecia a boa mesa"

Há pouco tempo falei com um médico que fez trabalho humanitário em Gaza e noutros países e ele dizia-me precisamente isso, que os grandes problemas do mundo se resolviam se nos sentássemos todos à mesa.

Concordo plenamente. Acho que em volta de uma mesa se resolve muita coisa. Chama-se para casa, normalmente, as pessoas com quem se quer dividir a própria vida. Mas também há outras pessoas que vêm e essa estada em volta da mesa modifica muito o foco das pessoas e a suas preocupações.

Vemos estes momentos à volta da mesa como momentos bons, prazerosos. Na epígrafe do livro cita o Papa Francisco: “O prazer de comer vem de Deus”. Como é que vê esta afirmação? 

Nós temos muita sorte por termos, nesta altura da vida, o Papa Francisco. Mas o Papa Francisco é também um glutão, como Jesus foi chamado. Aprecia a boa mesa. Então diz que não se come apenas para satisfazer as necessidades. Divide-se a mesa com as pessoas para dividir outras coisas, para partilhar outras coisas.

O principal alimento que está na Bíblia é o pão. E aquele com quem se repartia o pão era cumpanis, e foi daí que veio a palavra "companhia", a palavra "companheiro". Vem desse ato de repartir o pão. Quando se começa a dividir com os outros os problemas, as soluções, as coisas ficam muito mais leves e muito mais fáceis. Mas devemos isso ao Papa Francisco, achei essa frase dele muito boa. Comer é também um ato espiritual, não é só para satisfazer as necessidades físicas.

Maria João Lopo de Carvalho junta-se ao É Desta Que Leio Isto no próximo encontro, marcado para dia 13 de dezembro, uma quarta-feira, pelas 21h00. A autora traz "Os Cinco e o quadro desaparecido", editado pela Oficina do Livro.

Para se inscrever no encontro basta preencher o formulário que se encontra neste link. No dia do encontro receberá um e-mail com todas as instruções para se juntar à conversa.

"Os Cinco" é uma das mais conhecidas e bem-sucedidas séries literárias para crianças e jovens da autora britânica Enid Blyton, publicada e traduzida em vários países. Com o passar dos anos, deu origem a outras histórias, com as mesmas personagens, escritas por diferentes autores noutros países, como Sarah Bosse (Alemanha) e Claude Voilier (França).

Esta série literária de aventuras, escrita por Blyton entre 1942 e 1963, tem agora continuidade em Portugal pela mão da autora Maria João Lopo de Carvalho, pela Oficina do Livro (grupo Leya), a editora que detém os direitos e publicou os 21 volumes da coleção.

Maria João Lopo de Carvalho tem 61 anos, foi professora de Português e Inglês, criou uma escola de língua inglesa, trabalhou em publicidade e na Câmara Municipal de Lisboa e tem mais de 70 livros publicados, entre obras para adultos e para os mais novos.

Antes de chegar à mesa é preciso que alguém execute receitas. Mas a Bíblia não nos dá nenhuma. 

Na Bíblia não há nenhuma receita, mas sim os ingredientes que usavam para temperar, como ervas, temperos, especiarias. Há notas de como as comidas eram preparadas e tem também as técnicas de preparação do alimento, a relação dos homens com os alimentos em várias situações.

Por exemplo, enquanto vaguearam pelo deserto do Sinai alimentaram-se do que caía do céu, como o maná, que alimentava o corpo, mas alimentava sobretudo o espírito, a fé daquele povo que passou 40 anos no deserto. Quando viveram em terras distantes, isolados, com outros povos, em tempo de guerra, em tempo de paz, enquanto nómadas ou nos palácios, nas refeições simples ou nos banquetes, o que acontecia é que todas aquelas pessoas se alimentavam da mesma maneira. Tinham os mesmos hábitos alimentares, porque obedeciam aos ensinamentos da Torá. Isso foi fundamental, porque deu àquele povo, tantas vezes espalhado pelo mundo, uma identidade. Identifica-se o povo sobretudo pelo que estava na mesa.

Ou seja, a Bíblia está repleta de comida. 

O alimento está na Bíblia por toda a parte. Quando comecei a fazer a pesquisa primeiro não tinha noção da grande responsabilidade, porque não tinha formação teológica. Infelizmente, os católicos não têm o hábito de ler a Bíblia, então tive de lê-la algumas vezes. Comecei por marcar na própria Bíblia todos os versículos que referiam alimento, depois passei tudo para o computador, conferi para que estivessem tal e qual como estão na Bíblia, depois separei os versículos por assunto e descartei ainda os que tinham a mesma ideia e apenas eram ditos de maneira diferente.

Mas não tinha ideia da extensão do trabalho que seria. Foi um trabalho muito exaustivo, passei 10 anos fazendo este trabalho, além de pesquisar o que estava na Bíblia. Para poder compreender muitas das histórias tive de fazer uma pesquisa paralela, ou seja, o tempo histórico em que tudo aconteceu, as grandes civilizações daquele tempo todas em volta do Mediterrâneo. Então chega-se à conclusão que os alimentos estão realmente ali por toda a parte, têm uma importância fundamental para aquele povo e, consequentemente, para nós também, que mantemos muitos dos hábitos que eram comuns naquele tempo.

"A grande diferença, até quando falamos na alimentação, é a influência da figura de Jesus"

No tempo histórico da Bíblia há certamente diferenças na alimentação. 

Tanto no Antigo Testamento como Novo, tudo se passou no mesmo lugar. Tudo se passou em volta do Mediterrâneo, com hábitos que eram comuns a todas as culturas. Um hábito que existia entre os romanos passou também para aquele povo de Deus. E depois há Mesopotâmia, que fazia limite ao ocidente, que foi berço de toda a nossa civilização. Tudo começou a acontecer lá. Os primeiros homens fixaram-se lá, plantaram e colheram as primeiras coisas. O povo que se fixou na Mesopotâmia deixou marcas profundas entre os hebreus, os judeus, o povo de Deus. Por isso, é necessário compreender as outras culturas para compreender muito do que se passou naquele tempo.

Mas há diferenças. O Antigo Testamento é diferente do Novo no sentido de que no Novo apareceu a figura de Jesus e Ele não dava muita importância a nenhuma dessas leis de proibição relativamente aos alimentos e Jesus discordava também de muita coisa do judaísmo da época. As leis eram feitas por saduceus, fariseus, zelotas, essénios. Quer dizer, Jesus foi a grande novidade do Novo testamento. Foi quem modernizou muita coisa, tanto que Paulo, quando foi posteriormente organizar a Igreja cristã, católica, percebeu que os católicos não iriam ter as exigências alimentares que têm os judeus ainda hoje. Ele compreendeu que se Cristo não deu tanta importância, era para não se dar mesmo. A grande diferença, até quando falamos na alimentação, é a influência da figura de Jesus.

E quanto aos dias de hoje? O que mudou? 

Existem grandes diferenças, principalmente porque as técnicas de preparação desses alimentos evoluíram muito. Mas em volta de todo o Mediterrâneo falamos numa dieta mediterrânica. Naquele tempo alimentavam-se de coisas muito saudáveis. Era o leite, o azeite, o pão, o vinho.

O pão era preparado para todas as refeições, com cevada, centeio, espelta e trigo. Cabia às mulheres a preparação desse pão. As técnicas de misturar, de quebrar os grãos com a mó... hoje usamos equipamentos sofisticados. Na essência são os mesmos hábitos, modificou a evolução dos equipamentos, a maneira de preparar esses alimentos.

Muitos dos nossos hábitos nasceram ali, daí a importância do tema. Eu escrevo sobre a história dos alimentos, então achei que faltava, nas minhas pesquisas, um estudo mais profundo sobre o que se passou naquela época.

Livro: "A Mesa de Deus"

Autor: Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti

Editora: Quetzal

Data de Lançamento: 2 de novembro de 2023

Preço: € 19,90

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"Era uma alimentação muito saudável, muito rica. Quando tentamos imitar, beneficiamo-nos"

Se pensarmos um bocadinho, há realmente algumas semelhanças. Nem que seja porque pensamos sempre que há muito pão, peixe e vinho na Bíblia. 

E o cordeiro, o cabrito. Tudo isso era preparado da maneira mais simples possível. No início eram as carnes e o peixe diretamente sobre o fogo, aí evoluíram e surgiram os depósitos de cerâmica e começaram a colocar carne, tempero, verdura e deu origem aos caldos que durante muito tempo foi a base daquela alimentação toda. Era realmente muito saudável, a fritura só apareceu muito depois disso.

No fundo temos muito a aprender com esta forma de alimentação.

Eu acho que sim, temos mesmo. Não existiam esses conservantes nem nada disso. Era uma alimentação muito saudável, muito rica. Quando tentamos imitar, beneficiamo-nos. Sem dúvida nenhuma.

Falava do cabrito e do cordeiro, associados à Páscoa. 

Os hebreus passaram 430 anos no Egito, foram libertados por Moisés. Eram cerca de 600 mil pessoas, os egípcios não queriam que eles saíssem, só aceitaram por causa das dez pragas. Quando saíram, perseguiram-nos, tentaram atravessar o Mar Vermelho e foi aí que os hebreus se livraram deles. Mas como é que começou essa presença forte do cordeiro, do cabrito nas mesas judias? Antes da hora de sair, durante as pragas, todos eles fizeram uma coisa em comum: matar o cabrito e com o sangue marcar as portas principais para Deus saber que ali estavam judeus.

Depois serviram-se do cabrito, que era apenas assado. Tinha de ser um cabrito são, não podia ser doente, tinha uma série de regras. E mantiveram o cabrito e toda a ceia. Na última ceia, retratada visualmente por Leonardo Da Vinci, ele colocou na mesa apenas pão e vinho. E acho que faltou esse cabrito, que existia em todas as mesas judias, na Páscoa. Até hoje, é muito forte esta presença do cabrito ou do cordeiro nas mesas.

"O pão era o principal entre todos os alimentos. Belém, Bethlehem, a cidade onde nasceu Jesus, significa 'Casa do Pão'"

Até mesmo para católicos. É um prato que ainda está nas mesas de hoje.

Vocês em Portugal usam mais do que nós, brasileiros. O brasileiro substituiu o cordeiro pelo porco, tanto na Páscoa como no Natal. Temos pernil de presunto, pernil de porco. Mas no Natal usamos o bacalhau, que aprendemos a preparar com os portugueses. E a castanha, que chamamos de castanha portuguesa, é uma coisa maravilhosa. Aqui compramos sempre, caríssimas. Porque são importadas daí, mas estão nas nossas mesas também.

É engraçado, porque eu vivo em Pernambuco, região nordeste do Brasil, e nós tivemos a sorte imensa de sermos colonizados pelos portugueses. Incorporámos muitos dos hábitos e usamos até hoje. Num Brasil inteiro, na Baía é maior a influência do africano, no norte é mais a influência indígena. Pernambuco manteve a influência das três culturas, mas de uma maneira mais equilibrada, porque os portugueses vieram para cá e vieram para ficar, não vieram para depois ir embora, como nos outros estados. Vieram para construir as suas vidas e as senhoras portuguesas trouxeram na sua bagagem a cozinha completa: fogão, fumeiro, formas, hábitos de preparar as comidas. É muito semelhante essa alegria de ter a mesa sempre farta, cheia de amigos, de dividir com esses amigos o que está ali preparado. Isso tudo são hábitos portugueses que nós incorporámos, graças a Deus.

Há pouco referia a questão da última ceia, com o pão. Também há aqui a parte simbólica do corpo de Cristo.

O pão era o principal entre todos os alimentos. Belém, Bethlehem, a cidade onde nasceu Jesus, significa "Casa do Pão". E Jesus considerava-se o "Pão da Vida". Além de ser o mais importante, era também o mais simbólico. E, junto com esse pão, vem o vinho.

Que já vem do Antigo Testamento. 

A primeira vez que se falou de vinho na Bíblia foi depois do dilúvio, quando Noé plantou uma vinha e preparou vinho. E tomou demasiado vinho, ficou nu na sua tenda e morreu sem perdoar um dos filhos, que o encontrou nu na tenda porque bebeu mais do que devia. No início, este vinho era misturado com água, também colocavam dentro especiarias. Mas o vinho é como se fosse o complemento do pão. Na eucaristia, o pão simboliza o corpo de Cristo e o vinho simboliza o sangue.

"Era tão importante plantar uma vinha que quem o fizesse e ainda não tivesse colhido a uva estava dispensado do serviço militar"

Há outras bebidas relevantes na Bíblia?

Já se preparava cerveja, que é uma bebida fermentada. Também se preparavam licores. E o vinagre, que era importantíssimo, porque misturavam vinagre nas bebidas. Os romanos ensinaram a preparar vinagre com outras coisas e era uma bebida de muito prestígio. Mas sobretudo o vinho, a fermentação do vinho, a preparação do solo. Era tão importante plantar uma vinha que quem o fizesse e ainda não tivesse colhido a uva estava dispensado do serviço militar. Era um simbolismo importante para aquele povo.

E também o azeite, mas nem só como alimento.

Sim, sim. Servia para muitas coisas. A última coisa para que foi usado foi na alimentação — e aí não era para fritar, era para temperar a carne ou o que fosse. Antes disso era usado na iluminação, como remédio, para curar feridas. Também era usado para o cabelo, para a pele, como cosmético. Tinham uns depósitos lindos para colocar azeite nas cozinhas. Enormes, há alguns em museus pelo mundo. Eram depósitos de cerâmica.

"Não se pode preparar um prato exatamente como eles preparavam porque não há a receita, mas dá para organizar um banquete, uma festa, como eles faziam"

Há alimentos na Bíblia que não sabemos bem o que são?

Vários. Nas ervas e temperos, principalmente. Há algumas ervas em que as únicas referências são da Bíblia. Fui conversar com um botânico, para que me explicasse isto, e muitas nem sabemos o que significavam, nem o que era semelhante. Desapareceram completamente. Outras permanecem, mas muitas são cultivadas já de outra maneira, pelo que tomam outra feição.

Por outro lado, a Bíblia dá-nos também regras de etiqueta em regras e banquetes.

No Eclesiástico tem várias regras de etiqueta. Não se pode preparar um prato exatamente como eles preparavam porque não há a receita, mas dá para organizar um banquete, uma festa, como eles faziam. Estão ali regras que eram cumpridas.

Por exemplo: antes de entrar numa casa, bata à porta. Quando entrar para uma refeição, nunca se sente no lugar principal; espere que o anfitrião convide a sentar no lugar importante. Seja moderado, não fale muito. E há muitas regras em relação ao vinho: não beba vinho junto de mulher casada, o vinho fere como a cobra e morde como a víbora. Há várias regras de etiqueta, é muito interessante. Eles cumpriam isto e estão ali registadas.

Não havendo receitas, estão ali muitos indícios de como tudo acontecia, desde a preparação do prato até às regras que era cumpridas em volta da mesa. As pessoas que viviam em casas mais simples sentavam-se numa esteira no chão e a comida era posta na esteira. Já mais tarde, evoluíram e nas casas mais abastadas era uma mesa baixinha e sentavam-se reclinados, encostados em almofadas ou numa cadeira, que era como se fosse um divã baixinho.

Eram regras realmente muito rigorosas?

Era de bom tom as pessoas cumprirem. Acho que quanto mais simples a casa, menos exigiam regras de etiqueta. Essas regras eram mais para casas em que as refeições eram divididas, nos grandes banquetes e essas coisas. Mas eram todas cumpridas, sim.

A questão das festas lembra-me o episódio das Bodas de Caná, em que Jesus está num casamento. 

As Bodas de Caná mostram o segundo milagre de Jesus, quando ele transforma água em vinho. Não existia festa sem vinho. E foi Maria que disse a Jesus: meu filho, acabaram os vinhos. E Jesus transformou a água em vinho.

"Eu gosto muito de cozinhar e muitas vezes estou a preparar alguma coisa e automaticamente lembro-me de como era, como faziam nesse tempo, o que tinham disponível"

E há outros milagres com comida.

Há milagres, muitos milagres. Ele sobretudo curava os que estavam mais necessitados, ressuscitou gente. Mas em volta da mesa e com comida foi sobretudo pão e vinho, mas peixe também. Jesus, já ressuscitado, apareceu nas margens do grande lago de Tiberíades, o mar da Galileia. Como os discípulos não conseguiam peixe, Jesus disse para lançarem as redes para o lado direito e pescaram e foram muitos os peixes. Depois, Jesus assou peixe e comeu pão. E, antes disso, houve também o milagre da multiplicação dos pães e dos peixes, que alimentaram muita gente.

Se fosse agora até à cozinha para fazer uma refeição inspirada pela Bíblia, o que escolhia?

Ai, eu agora compraria um peixe fresquinho, pescado muito recentemente, temperava esse peixe e colocava várias verduras em volta dele. Colocaria papel de alumínio e ia ao forno por volta de uma hora, uma hora e meia, duas horas, até que estivesse assado.

Estou falando de uma peixe grande, de forno. Faço muito na minha casa, porque a minha família é grande e todos gostam muito. É o peixe preparado da maneira mais simples, um peixe inteiro. Vai para a mesa inteiro, numa travessa.

Eu gosto muito de cozinhar e muitas vezes estou a preparar alguma coisa e automaticamente lembro-me de como era, como faziam nesse tempo, o que tinham disponível. Por exemplo, o pão naquela altura era feito depois de moer os cereais com a mó. No Deuteronómio tem uma passagem que diz "nunca vendas a tua mó, porque estarás vendendo a tua vida; não penhores a tua mó, porque estarás penhorando a tua própria vida". Davam muita importância a todo o contexto. A cozinha era o lugar principal das casas, como é hoje. É o coração da casa. A alma da casa está na cozinha.