João diz que só faz sentido conhecer o mundo a cinco. Para Rute, que foi, em casa, professora dos filhos, o tempo em terra já valeu a pena. Sem data fixa de partida — e de retorno — durante dois ou três anos são eles cinco a bordo. Arrancam com um estágio no Algarve, seguindo-se a travessia do Atlântico e regressam quando tiverem de regressar. Até lá vão aproveitar cada minuto, cada local e pessoa com quem se vão atravessar.

"Venho ter com a Rute e o João, o casal que vai dar a volta ao mundo de barco com os filhos". As palavras saem-me da boca à porta do Centro Náutico de Algés, The Lisbon Boatyard (Estaleiro de Lisboa). É a senha de entrada que leva o segurança da portaria a abrir a cancela e a apontar para uma carrinha branca de marca Ford, modelo Transit. "Estão ali", ouve-se.

Ali fui ter. Foi assim dia 15 de janeiro, numa primeira visita agendada depois de ter sido alertado para a história dias antes na vizinha Doca do Bom Sucesso. O mundo dos barcos e da vela é propício a estas pontes.

A frase "venho ter..." e a resposta "estão ali..." repetiu-se por mais duas vezes, tantas quantas as visitas informais ao local onde João Monarca, 48 anos e Rute Gonçalves, 43, passaram o último ano e meio a recuperar um veleiro (com 30 anos) adquirido há dois em Amesterdão, Holanda, com um propósito: dar uma volta ao mundo num barco à vela. Eles e os três filhos: a Marta, 13, o Afonso, 7 e a Carmen, 4.

Parte da inspiração para esta viagem nasce na história que acompanharam de um casal açoriano. "A visão dela e dele são diferentes e a viagem tem a ver como a forma como encaramos os desafios. Ele não estava preparado para imprevistos e mudar o planeamento. Ela trouxe a perspetiva otimista das coisas", relata Rute.

A outra quota-parte da responsabilidade recai, acima de tudo, em João. "Sou o culpado disto tudo", assume em tom reservado. "A ideia do João vem de sempre”, interrompe Rute. "Conheço-o há 20 anos e sempre disse que queria viajar pelo mundo. Acho que faria mesmo que não tivesse esta família", antecipa.

João regressa à conversa. "Já tinha feito travessias, da Austrália para a Tailândia e Mediterrâneo", recorda. "Esta é outra história", exclama.

"Ainda pensámos fazer sozinhos quando fôssemos mais velhos" mas reconhece que "fisicamente é pesado, e quanto mais velho, pior", sublinha. A perceção das dificuldades a bordo advém do trabalho na sua empresa náutica de passeios turísticos, em Cascais. "Velejadores mais velhos, franceses, alemães, que dizem que não é fácil e por isso muitos não continuam e ficam por cá. Embora a ideia não fosse essa, passou a ser. Aos 60 ou 70 anos o nosso corpo não aguenta", alerta.

"Não é a crise de meia-idade", garante. "Mas mostrar o mundo só se faz com as pessoas de quem se gosta. Só faz sentido com os miúdos", deixa escapar sem timidez.

Para Rute, a viagem tem um significado. Interior. "Estar mais tempo com os filhos, conhecermos melhor e de forma mais intensa a família", atira. "Não me queixo da vida, saía às 8h00 e chegava as 20h00, o normal de uma família, mas sentimos que os miúdos crescem depressa e não contribuímos para o crescimento deles", suspira.

"O barco é o único meio possível no nosso orçamento para fazer uma viagem do género. E aqui levamos a casa às costas", acrescenta João.

créditos: Miguel Morgado | Facebook "5 a bombordo"

De local de trabalho a quarto de brinquedos. Barco transformado em casa de família

"Domum". Casa, em Latim. O barco que leva esse nome de batismo será, a partir de abril, a nova casa de João, Rute, Marta, Afonso e Carmen.

O barco, a tal casa, foi comprado em Amesterdão. Rute fez uma viagem, o João, várias. Trouxe o barco, "a navegar". Foi escolhido "para esta viagem", desvenda Rute. "Não teria um barco com quilha aparafusada. Escolhi este, de 1989, com essa premissa", garante o skipper que é obcecado por segurança conforme descreve a sua mulher.

"Estava em pior estado do que se pensava", reforça Rute. Em especial o casco, recorda João que foi pau para toda a obra, desde desmanchar o barco por dentro às soldaduras, passando pela pintura, arranjo das madeiras do deck, as bombas de refrigeração do motor e muito mais.

"O barco era branco. Ficou azul, por estética". Rute solta uma enorme gargalhada. "Tinha que dar algum toque, o resto fui assistente de carpintaria, mudei canalizações...", continua a rir. "Fiquei a conhecer o barco e a mim própria", remata.

Durante meses a fio, suspenso por andaimes, em doca seca, com cabos elétricos à mostra e parafusos à solta, tintas espalhadas, descascado, o barco foi o local de trabalho do casal e, nas horas vagas, o quarto de brinquedos dos filhos.

A conversa decorre com o Tejo a nossos pés. "O João é menos de planear. Eu como trabalhei 20 anos numa empresa (Galp, onde é gestora de marca, empresa da qual pediu uma licença sem vencimento) que necessita de tudo organizado e o planeamento é fundamental. Sou a tal do Excel, tenho tudo planeado", explica Rute.

Rute e João olham para o barco. Voltam atrás no tempo. "Foi empenhar as finanças para viajar com o risco da tal folha Excel rebentar", sorri, de novo. "Prontos, não há. 100-120 mil euros e são para arranjar", alerta João. "Foi recuperado pelas nossas mãos", diz orgulhoso.

Aulas em casa e a bordo. Estágio no Algarve à espera que a janela do Atlântico abra

Em mais um flashback (regresso ao passado), Rute relembra que o início da aventura começou há 4 anos. "A sério, o projeto foi pensado com o nascimento da Carmen", a filha mais nova. "Quando deveríamos ir para que do ponto de vista deles faça sentido", questionaram-se criando uma baliza entre a "idade da mais velha e da mais nova", contextualiza. "A mais nova vai apreciar, não estuda ainda e podemos dar mais atenção aos outros dois", refere.

Os três filhos de João e Rute deixaram a escola em setembro e começaram a ter aulas em casa. Ainda antes de içarem as velas, "só isso já tinha valido a pena se, por algum motivo, não fossemos já tinha valido a pena", reforça. "O que eu conheci dos meus filhos em quatro meses intensos... a licença maternidade é diferente", garante Rute, que é filha de uma professora (reformada) que deu uma ajuda neste arranque.

Foram meses em casa a "acompanhar, ensinar e a entender a evolução" dos filhos. A mais velha está no ensino online, numa escola americana. "O que ela ganhou de autoconfiança, responsabilidade e organização. Sem pressão, define o que estuda". Já Afonso está no ensino doméstico após requerimento ao Ministério da Educação. "Era um miúdo tímido mas em casa está mais aberto". Em relação a Carmen, de 4 anos, "não percebe bem ainda e pergunta quando voltamos para casa", graceja.

E, depois, volta à folha de Excel. "Arrendámos a nossa casa e fomos viver para casa da minha mãe. Poupámos todos os dias, cortámos no que não se dá por isso como nos jantares fora, compras; e se já não era pessoa de muita compra e passei a comprar menos...", frisa.

Deixaram para trás "roupas, brinquedos" e "demos um passo importante para os miúdos perceberem que podem viver bem e felizes noutro lado", relata. "Têm tudo num caixote, partilham mais com menos. O problema da escolha da roupa desaparece", descreve.

créditos: Miguel Morgado | Facebook "5 a bombordo"

Este "estágio" em terra vale para o que se segue no mar. E se em terra Rute conduz quase sempre a conversa, na água, João entra e entrará mais em ação.

Depois de vários adiamentos, depois de terem programado tudo para saírem em finais de 2018, início de 2019, fosse pelos imprevistos, necessidade de mais e mais reparações do material, fosse pelas condições meteorológicas dos últimos dias na semana do Carnaval, o batismo de mar aconteceu somente no passado fim de semana, um momento que contou com a presença de toda a família.

Em "meados de abril" os cinco partem rumo a sul, ao Algarve. A ilha da Culatra servirá de balão de ensaio para o que dali para a frente se segue.

Ali ficam em estágio e em testes a aguardar a janela de oportunidade da travessia do Atlântico, que deve acontecer lá mais para o final do ano. E se tiverem de arranjar algo a bordo "é mais barato fazê-lo em Portimão" do que se avançassem já para o Mediterrâneo, confidencia João na véspera de colocar o barco em água.

"Vamos gozar cada momento, cada sítio e cada pessoa que comecemos"

"A rota é o mais clássico. À volta do Equador. Não vou tanto ao mar do sul. Gosto dos 30° para cima e 30° para baixo do Equador", descreve, enquanto desmancha os andaimes debaixo do olhar do filho Afonso, antes de se juntar às irmãs nas brincadeiras em cima do veleiro.

Caraíbas, canal do Panamá, Pacífico, diversas ilhas até ao norte da Austrália, Indonésia, Tailândia, Índia, canal do Suez que permite a entrada no Mediterrâneo e a chegada a Portugal constam do mapa de intenções.

Sobre o trajeto, João é cirúrgico no discurso. "Primeiro definimos as travessias (que demoram mais de 20 dias em que são só os cinco e o oceano). O resto, ajusto. Não gosto de estar aqui, vou para o outro lado. Conheces gente que te diz não vale a pena ir por ai, é melhor ir para acolá. Aprendi isso na travessia da Austrália".

João, que já tem experiência, antecipa que daqui para a frente o que "conta menos é a mesmo a vela", desvenda. "Ser um MacGyver conta mais", surpreende. "Estão sempre coisas a avariar. Por isso, para além de saber ler as cartas de navegação temos que saber arranjar as coisas que se estragam porque não estamos ali para ganhar regatas".

Sobre datas? "Já mudei 20 vezes", exclamava Rute no passado mês de janeiro. "Ter uma data para partir e uma para chegar não é possível. A data de partida já vimos que não é, houve muitos imprevistos com o barco, mas é importante ter uma data mesmo que não a cumpramos. Se não a temos, nunca mais arrancamos", disse, então. "Aqui temos a questão do tempo, o que demora certo percurso e se o tempo te permite ir naquela data ou tens que esperar duas ou três semanas por causa da meteorologia, dos ventos", continuou.

Regresso? "Isto tem que ser cruzado, o trabalho que dá, o esforço... estou há meses a trabalhar numa obra e trabalhei a vida toda num escritório e o investimento pessoal é para viver cada momento e não estar stressado com o dia que voltamos", antecipa.

Por isso admite "voltar quando tiver que voltar. E se tiver que voltar antes, por causa das crianças ou por uma questão profissional que nos obrigue, não vamos fazer a volta ao mundo a correr só para dizer que a fizemos", continua. "No limite deixamos o barco em qualquer lado se tivermos que voltar. Vamos gozar cada momento, cada sítio e cada pessoa que comecemos", garantiu. Momentos que vão ficar registados em https://www.facebook.com/5abombordo/. "Os cinco do lado bom do bordo", explica.