O contexto
A história é conhecida. A 28 de junho de 1914 em Sarajevo, Bósnia-Herzegovina, Francisco Fernando, herdeiro do trono do império Austro-Húngaro, juntamente com a sua mulher, a duquesa de Hohenberg, são assassinados por um nacionalista sérvio.
Poucas semanas depois o Imperador austro-húngaro Francisco José, pressiona o pequeno reino sérvio com um ultimato. A Sérvia aceita a maioria das condições, mas a Áustria-Hungria nega-se a ceder qualquer uma das suas exigências e a 28 de Julho de 1914, Francisco José declara guerra à Sérvia.
Nas semanas seguintes, organizam-se alianças na Europa que se dividem em duas: de um lado, a França, a Rússia, e a Grã-Bretanha; do outro, a Alemanha e a Austro-Hungria. Portugal entraria na guerra posteriormente, a 9 de março de 1916, para se juntar aos aliados contra a Alemanha e a Austro-Hungria.
O chanceler alemão Theobald von Bethmann-Hollweg acreditava numa guerra cirúrgica: “Esta tempestade pode ser violenta, mas breve, muito breve. Conto com uma guerra de não mais de três meses ou, talvez, no máximo, quatro meses...”. Guilherme II, o Kaiser alemão, terá dito às suas tropas à partida para a frente: “Estareis de volta antes das folhas caírem das árvores”.
Como é sabido, nada disso aconteceu e até à assinatura do armistício, a 11 de novembro de 1918, teriam morrido já cerca de 10 milhões de soldados, 12 milhões de civis, tendo ficado feridos cerca de 20 milhões de pessoas. Depois deste massacre entre nações irmãs, a Europa nunca mais seria a mesma.
O primeiro Natal
No Natal de 1914 os soldados combatiam enterrados na lama das trincheiras e entre o fogo da artilharia. A possibilidade de uma trégua viria do papa Bento XV, ao apelar para que durante o período do Natal o tinido das armas cessasse. A Alemanha concordou, mas a outra parte do conflito discordou. No entanto, o magnetismo da época do Natal afirma-se por si mesma, catapultando os participantes diretos do campo de batalha para a história universal.
Ao analisarem-se os registos escritos dos soldados sobre o sucedido, percebe-se que a trégua terá sido da iniciativa das tropas alemãs estacionadas nas trincheiras próximas de forças britânicas. Logo no dia 24 de dezembro começavam a armar árvores de Natal ornando-as com velas acesas que posicionavam ao longo das trincheiras da frente oeste.
Certamente mais sensíveis pelo contexto onde se encontravam, distantes das suas famílias, mas com memórias vivas de natais passados, os soldados viviam com mais emoção os momentos de oração e de culto. Robert de Wilde, Capitão Comandante da Artilharia Belga, descreveu no seu "journal de Campagne" uma missa em Pervyse, nas proximidades da linha da frente: “Os soldados cantavam. Foi irreal, sublime. Cantavam: "Minuit, Chrétiens", "Adeste fideles", "Les anges de nos campagnes", todas as músicas que cantávamos quando éramos pequenos. Os Natais de há muito tempo voltavam, todas as coisas que conhecíamos na infância, a família, o campo, a lareira, os nossos olhos deslumbrados pela árvore com as suas velas cintilantes, todas as coisas que agora revivemos nos nossos filhos."
Nas trincheiras os soldados britânicos pareciam surpreendidos com as árvores iluminadas enfileiradas nas trincheiras alemãs e até, em alguns casos, também lanternas ou tochas. Informaram as chefias daquilo que observavam, as chefias responderam que não deviam disparar, mas antes observar com atenção as ações dos alemães. E observavam, entre outras coisas, que os militares alemães começavam a entoar cânticos de Natal como o muito popular e universal “Stille Nacht” (Noite Feliz).
As cartas
Nos registos do décimo sexto regimento de infantaria (3º da Vestefália) conta-se que a força do espírito de Natal parecia emergir logo nos serviços eucarísticos: “na pequena capela improvisada e repleta, pequenas árvores de Natal tinham sido ali iluminadas, e durante uma leve geada, flocos de neve branca caíam sobre o telhado danificado e o sacerdote pregou então um sermão muito comovente a todos os soldados. O pequeno órgão e a banda do regimento (...) acompanhavam as várias companhias nas suas canções. Inúmeros presentes e correspondência chegavam das suas casas (...) para serem entregues às companhias estacionadas nas trincheiras.
Episódios como este também aparecem nos registos das memórias do príncipe herdeiro Guilherme da Prússia, filho do Kaiser, então comandante do Quinto Exército Alemão na região de Argonne, particularmente quando na véspera de Natal decidiu visitar "os seus rapazes" na linha de frente e que descreve do seguinte modo: "... por toda a parte o espírito dos rapazes estava muito alegre. Cada abrigo tinha a sua árvore de Natal, e de todas as direções vinham sons de vozes masculinas que cantavam as nossas antigas e requintadas canções de Natal. Kirchhoff, o cantor de concertos, que durante algum tempo foi oficial auxiliar do nosso Quartel-General, cantou as suas canções de Natal naquela mesma noite santa nas trincheiras da linha de frente do 130 º Regimento. E no dia seguinte, contou-me que alguns soldados franceses que tinham subido ao parapeito continuaram a aplaudir, até que finalmente foi-lhes dado um bis. Assim, no meio das amargas realidades da guerra das trincheiras, com toda a sua miséria, uma canção de Natal fez um milagre e lançou uma ponte de homem para homem.”
Um correspondente do "Daily Telegraph" confirmou estes acontecimentos. Relatou um desses episódios após uma conversa com um soldado francês ferido que conheceu alguns dias depois do Natal num hospital de Paris: "Ele disse-me que na noite de 24 de dezembro os franceses e os alemães saíram das suas respetivas trincheiras para se encontrarem no meio delas. Eles conversaram, mas também trocaram cigarros, etc., e também dançaram juntos em círculos."
O capitão R. J. Armes, um oficial regular de 38 anos do Estado-Maior 1/Norte, juntou-se de bom grado e escreveu nessa mesma noite tudo o que vivera numa longa carta dirigida à sua esposa:
"Acabei de passar por uma das cenas mais extraordinárias que se possam imaginar. Esta noite, na véspera de Natal, subi às trincheiras para cumprir o meu serviço. O fogo era permanente e as metralhadoras do inimigo estavam a disparar contra nós com toda a força. Então, por volta das sete, o tiroteio parou.
Eu estava no abrigo a ler um jornal e a organizar a correspondência. Foi relatado que os alemães tinham iluminado as suas trincheiras ao longo de toda a frente. Já há algum tempo que estávamos a comunicar uns aos outros desejos de Natal e outras coisas. Resolvi sair e eles gritaram “não atirar” e então de alguma forma a cena tornou-se pacífica. Todos os nossos homens saíram das trincheiras e sentaram-se no parapeito, os alemães fizeram o mesmo e começaram a conversar entre si em inglês e num inglês mau. Subi ao topo da trincheira e falei alemão e pedi que cantassem um “lied”, o que eles fizeram, cada homem cantou muito bem e cada lado aplaudiu e aplaudiu o outro. Pedi a um alemão que cantara um solo para cantar uma das canções de Robert Schumann. Ele cantou os 'Os Dois Granadeiros', esplendidamente. Os nossos homens foram uma boa plateia e gostaram muito de seu canto”.
Relatou também que combinaram enterrar os mortos tombados entre ambas as trincheiras para depois concluir: “desejamos uns aos outros boa noite e uma boa noite de descanso, e um feliz Natal – despedimo-nos com uma saudação. Voltei para a trincheira. Os alemães cantaram 'Die Wacht am Rhein', soou muito bem, e com uma boa noite voltamos todos para as nossas trincheiras. Era uma cena curiosa, uma noite linda de luar, as trincheiras alemãs com pequenas luzes acesas e os homens de ambos os lados reunidos em grupos nos parapeitos".
Significados
Celebrara-se assim um dos natais mais enternecedores da história militar que se repetiria também em várias frentes no Natal do ano seguinte. No entanto, no contexto de uma guerra cada vez mais marcada pela dor e pela morte, as nações em conflito criaram restrições cada vez mais violentas que impedissem os seus soldados de darem mostras de humanidade e de amizade para com os seus irmãos europeus do outro lado da trincheira. Com isso, nos anos que se seguiram, os sinos do Natal deixaram de repicar no campo de batalha para celebrar o nascimento do emissário do amor e da compaixão, para darem lugar ao som tonitruante dos canhões e à tentação totalitária inimiga do verdadeiro significado do Natal.
*Este artigo é inspirado por um artigo publicado por mim no Jornal i no Natal de 2014 e pelo filme “Feliz Natal” (“Joyeux Noël”) de Christian Carion (2005). Inclui excertos de cartas retiradas do livro “Christmas Truce – The Western Front, December 1914” de Malcolm Brown & Shirley Seaton (Pan Books, 2001).
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